Resenha : "O Ensaio como Forma" (In "Notas de Literatura - Theodor W. Adoorno)

“É inerente à forma do ensaio a sua própria relativização: ele precisa compor-se de tal modo como se, a todo momento, pudesse interromper-se. Ele pensa aos solavancos e aos pedaços, assim como a realidade é descontinua, encontra sua unidade através de rupturas e não à medida que as escamoteia. A UNANIMIDADE DA ORDEM LÓGICA ENGANA QUANTO À ESSÊNCIA ANTAGÔNICA DAQUILO QUE ELA RECOBRE. A descontinuidade é essencial ao ensaio, seu assunto é sempre um conflito suspenso “ (Adorno, “O Ensaio como Forma”)
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"O ENSAIO COMO FORMA" (Adorno)
Desnecessário dizer que se trata de um pensador essencial da cultura. Entretanto, este livro, em particular, pela beleza e ousadia de suas abordagens, merecia ser resgatado por quem tem interesse no debate cultural, e em particular, sobre a relação forma x conteúdo, não apenas no que pertine ao gênero literário, mas com possíveis derivações para as humanidades, em geral.
Sem ingenuidade, partindo da idéia (nem tão nova), mas profundamente explorada em suas consequências, de que a forma, PODE, SIM, condicionar em última análise o conteúdo do pensamento em certos contextos, no capítulo "O Ensaio como Forma", Adorno ataca o cerne do pensamento positivista tardio, arraigado fortemente na tradição acadêmica ocidental, apresentando a forma ensaística como alternativa. Esse pensamento de matiz positivista (ainda muito influente em países como o Brasil e os Estados Unidos, muito mais por sua forma subliminar de pensar o modelo de ensino-aprendizagem e multiplicação dos saberes do que propriamente por seus ideais) ,seu conceito de rigor, de método, de procedimentos e sua ideologia de produção da verdade discursiva , valores que historicamente se estabeleceram como cânones entre ciências exatas e grandemente no meio das ciências da vida, embrenhou-se continuamente também no terreno das humanidades e hoje não é difícil verificar o quanto a academia, em geral, está contaminada por esse viés em grande parte de seus cursos, suas vozes e suas formas de trabalho.
A poderosa crítica do filósofo pode ser compreendida em amplo espectro, desde a elaboração da mais simples resenha em sala de aula, onde ocorre a 'escolha' de determinadas idéias em detrimento de outras, ou desta forma específica de expressá-las em detrimento de outras. Na estruturação do sistema de grade curricular, que por analogia também obedece a regras um tanto inflexíveis. Na replicação de artigos em série para perpetuar o inchaço das matrizes de mérito e produtividade bastante estranhas, uma vez que tais escritos frequentemente são tão pasteurizados e têm tanto medo da palavra originalidade ou do exercício do pensamento próprio (medo do erro, medo de fugir a uma certa racionalidade convencional que diz que tal ou qual pensamento é mais 'verdadeiro' que outro, na sua força interpretativa) que se torna difícil imaginar que algo humano os tenha criado.
No andamento do texto, Adorno propõe o reconhecimento e a necessária crítica expurgativa do método que em grande parte é mais próprio das ciências do que dos campos de saber que envolvem as humanidades, ressaltando que não foi por mero acaso que tal configuração chegou aos nossos dias. Subjaz uma relação entre uma pujante luta política e econômica condutoras da vida material em sociedade, sendo reflexo direto disso a predominância do saber baseado em técnicas (O autor passeia por questões exploradas em profundidade também por Heidegger, mas embora o ponto de partida seja semelhante, as conclusões são inteiramente diversas. Heidegger, Nietzscheano, deixa em aberto a solução por uma possível superação individual, pois acredita no acidente, no acaso, na ação autêntica, que é no fim das contas, uma ode ao indivíduo. Adorno, marxista, pressupõe idéia de coletividade, em suas diversas nuances, sendo impossível imaginar saídas aleatórias, individuais) É esse enfrentamento que tornará possível o a criação de novos critérios e estéticas mais amplas, necessárias e desejáveis para a produção textual, sem que haja um limite prévio de sua aplicação. Caso contrário, a permanência desse tipo de saber dominante não apenas por razões teóricas, mas econômicas, também por representarem em última instância o resultado de uma luta política que compõe estruturalmente o modelo das sociedades capitalistas ocidentais, a ruptura entre o potencial transformador do conhecimento e a própria vida, operada por um reducionismo da forma de se pensar e de se expressar esse pensamento, causará uma total estagnação do modelo em torno de verdades institucionalmente elaboradas e estanques, condenando portanto o processo de reflexão à mera replicação de ideologias de dominação revestidas com a tal lógica sempre referendada pelo mesmo contexto que a gerou.
Estudantes, em geral, devem continuar sendo apenas repetidores e superficiais? Comentando os comentadores que em algum momento leram quem leu em algum outro momento a fonte? Interessante a questão levantada pelo autor há décadas. Assim, arrisca-se enregelar o pensamento contra "o novo", matando a criatividade e privilegiando o status de verdade quase escolástica agregado aos outros ramos do conhecimento, que não atendem à evidente, incontrolável e constante mutação do mundo real a que todo conhecimento deveria se vincular através da praxis. No particular, isso vale como cavalo de batalha para muitos mestres, em suas mais diversas áreas: Onde estão nossos ensaístas?Ora, estão em toda parte, potencialmente, mas não encontram sua voz. Por isso torna-se urgente e necessário o incentivo à produção do gênero Ensaio, com a abertura que ele enseja no campo da linguagem, em contraponto à aridez das formas tradicionais de expressão absorvidas, em última instãncia, do conceito funcional das ciências exatas, que historicamente tentam empurrar goela abaixo das humanas há muito tempo, Ensaio esse que, como gênero, ainda pode agregar beleza, intuição e pertencimento maior ao contexto em que surge, e que ao desafiar a matriz lógica e cartesiana com que se patenteou o pensamento no ocidente, é a fala por excelência a propor a desvirtuação do sentido de rigor e suposta "seriedade" baseado na truculência da falsa contraposição entre verdade x erro (sendo essa contraposição apenas um reducionismo lógico) e colocar uma nova ordem entre forma x conteúdo, privilegiando imensamente o conteúdo em detrimento da casca formal. Um conteúdo mutante, aberto a novas possibilidades, mas não sem seu sentido de rigor dentro dos seus próprios pressupostos, dentro daquilo que se propõe, em intimidade com seu objeto, quanto ao olhar que observa ou interage, tornando-se ele mesmo seu objeto, ao invés de apenas descrevê-lo, quantificá-lo ou reduzi-lo a modelos previsíveis.
Sejamos livres dessa 'pureza' positivista. Que 'a Peste', como queria Artaud, nos contamine em favor de um conhecimento vivo. Sejamos livres na criação e em sua natural ausência de limites. Portanto, mesmo que isso não signifique eliminar a lógica ou as formalidades tantas vezes vazias da academia, (formalidades e corpo teórico que tão bem serviram e servem aos meios dominantes, como Adorno nota bem), a retomada desse "projeto" rico que tem origem mais próxima na Renascença italiana e na modernidade daí advinda com Montaigne & cia, criará as condições para que ocorra uma mudança drástica na forma como o conhecimento e´ produzido e propagado em nosso meio. E como soa forte a voz de Adorno nos dias de hoje, como um eloquente chamado à vida, para que se produza em sala e fora dela textos mais corajosos e pensamentos de pulsão, que representem realmente o que se pensa e o que se sente, com todas as suas arestas, ramificações e texturas, e menos o que "o sistema" ordena que se pense e que sinta, atuando como um cutelo de toda criatividade e originalidade ao privilegiar a forma dura e seca com que se procede.
Lembrando o Nietzsche de "Verdades Extemporâneas", onde se questiona se o papel do Estado, implementado via sistema educacional, no fim das contas não seria mesmo desestimular e afastar o estudante do conhecimento de si mesmo e do mundo (de si mesmo dentro do mundo) ao favorecer, utilizando-se de formas preconcebidas com essa finalidade, a reprodução de cidadãos dóceis e submissos, ao castrar do conhecimento tudo aquilo que lhe é próprio na raiz, naquilo que possui de revolucionario, anárquico, sedutor, poético e vibrante ao impor-lhe formas pesadas e arcaicas de lidar com a pesquisa e o aprendizado. Dessa forma, o Ensaio pode, sim, na linha mostrada por Adorno, atuar contra essa ordem nociva, ao possibilitar a valorização da intuição, da poesia, da vivência imediata não desprezada dos sentidos por uma metodologia de conhecimento supostamente "pura e rigorosa' na busca da verdade (Platão, Déscartes, Kant) e a retomada do mundo como pulsão, respiração, ritmo, cores, sensações e cheiros como há muito tempo parece ausente entre nós. Afinal, quem em sua loucura racionalista diria ainda, nos dias de hoje, que há menos verdade ou conhecimento sobre a vida nos aforismos intuitivos e poéticos de Montaigne, Nietzsche, Kierkegaard, Agostinho ou Pascal do que nas arengas demonstrativas "ad absurdum" que governaram a idade média e ainda invadem impunemente nossos meios acadêmicos?
Que nós sejamos os felizes cultivadores e os beneficiários dessa grande mudança.
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(Livro :Adorno, "Notas de Literatura", "O Ensaio como forma".)