Som, movimento e corpo

Atonalidade, síncope, dissonância 

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Na natureza existem sons, melodias, ritmos, mas  música é um fenômeno unicamente humano. Seja de forma completamente intuitiva quando alguém cria para si mesmo, cantarolando ou assobiando algo que só ele conhece, quando faz um ritmo batendo palmas ou usando qualquer objeto, seja usando padrões e referências já estabelecidos para a notação e expressão desses sons e muitos outros num sistema complexo de instrumentação e canto. 

A partir de certo momento histórico,  a evolução das técnicas, dos instrumentos e da maior complexidade herdada das tradições religiosas e folclóricas impôs a criação de um sistema codificado de registro,  compartilhamento e progressiva exploração das composições. Sua matriz mais importante, que chegou quase absoluta em nossos dias ,foi o conceito de tonalidade. A idéia de que é necessária, na criação musical, uma hierarquia de sons regidas e interligadas numa escala vertical e horizontal de co-relacoes de poder.

Pelo universo de combinações matemáticas e sonoras possíveis que vêm desse conceito aplicado à música, esse sistema permite uma operacionalização dos sons, uma maior capacidade de transmissão e ensino dos conceitos e práticas instrumentais, enquanto seu oposto, que ocorre na atonalidade (construção da música sem se pautar pelo tom de forma hierárquica conduzindo a harmonia) implicaria um aumento massivo exponencial das possibilidades de criação musical. Essa seria, a princípio,  a forma mais natural, enquanto o princípio tonal é artificial e se baseia em convenções. 

Alguns compositores, principalmente a partir do final do XIX e início do XX, sabendo disso ,e do relativo esgotamento da fórmula tonal clássica pela enorme produção no período ,  aventuraram-se por esse caminho,  mas isso nunca se tornou  uma tendência . Não se trata, nem de longe, de falta de talento ou objeto dos novos trabalhos. Boa parte dessas obras são peças magistrais, com toda a característica do gênio e testemunhos do enorme esforço de criação. Mas por uma outra razão, que envolve complexidade de estrutura e principalmente por não encontrar os ouvidos adequados, jamais foi tida como uma alternativa à altura. Por essa razão, o princípio tonal ainda reina, mesmo nos estertores.

Por que a nova fórmula não é usada com mais frequência?

Conduzido pelo arranjo culturalmente  inventado em torno do tom, tão potente, harmônica e coerente soará a música para qualquer um em nosso meio. Isso porque somos formados naquele som, naquela forma de ouvir. 

Sucede o contrário,  para as composições que não obedecem o padrão tonal. Mesmo para os que não conhecem o clássico, ao ouvirem as principais obras desde o séc XVII ao XIX, criados durante duzentos anos de produção massiva, a maioria  segundo esse cânone, em poucos minutos haverá uma adaptação, um consentimento interno com o que se ouve, o corpo segue junto, cooptado.

Simples de entender na história.  Nem tão simples no conceito. Na história,  o tonal é cartesiano, matemático, surge numa determinada época em que o mundo passa por imensa transformação no conhecimento . O som é previsível e obedece a uma rede hierárquica e convencional de vibrações menores e maiores, soando singular em melodia ou simultaneamente de forma harmônica, e se torna quase uma certeza absoluta quando usada. Seu uso massivo a partir de Bach,  coaduna-se á visão de mundo recém-advinda da modernidade,  abandonando em definitivo os modos e instrumentos medievais-renascentistas e abandonando os instrumentos transitórios do barroco (ainda que sua influência sonora fosse durar mais)

No clássico,  já na concepção tonal, a mente atenta sintoniza um som, um acorde ou determinada harmonia e quase consegue de imediato, mesmo sem conhecer teoria musical, imaginar o passo seguinte, fração de segundos antes dele se realizar. E a partir dessa percepção, percebe as variações  do sentimento conjunto de júbilo, terror, alegria, tristeza, êxtase, no conjunto. Isso causa no ouvinte uma sensação inconsciente de conforto pelo reconhecimento do terreno.

De modo contrário, quando o tom não é utilizado como regência, torna-se insuportável de se ouvir por alguém do nosso tempo. Será aquilo que soa para nós como um terrível e irreconhecível som aleatório ou coisa tão irritante quanto. Alguém se lembrará logo de uma voz em absoluto desafino, alguma coisa se quebrando, um arranhão na pele, uma sucessão de gritos, chiados e gemidos ou coisa parecida, algo profundamente tão irritante que chega a doer. Sem qualquer padrão a ser incorporado, e com tamanha variação anárquica dos sons isoladamente, a tendência de frustração e dor se abate sobre o corpo.  Aqueles volteios melódicos sem origem e destino, com a garganta ou instrumentos explorando altos e baixos absurdamente distantes e aparentemente sem qualquer relação num tempo curto e espaçando-o abruptamente, isso violenta nossos ouvidos acostumados a uma outra sonoridade mesmo com muito boa vontade do ouvinte.

Essa segunda experiência, da música atonal desreferencializada, como praticada, por exemplo, no Japão e na China milenares, e em alguns países árabes até hoje (diferente do atonal de alguns clássicos europeus como Debussy, Mahler, Tchaikovsky e principalmente Prokofievsky, -- talvez o mais poderoso deles no uso desse instrumento -- porque nesse caso, apesar de não haver o domínio do tom absoluto, admite-se variações em uma hierarquia menor, mantendo-se a idéia de outras referências internas em formato rede neural sem um núcleo central dominante, enquanto os orientais são absolutamente isentos dessa hierarquia ).

A utilização do tom como conceito , a partir de Bach e do fim do Barroco, põe o cânone ocidental em cima da percepção . E isso tem enorme influência sobre o corpo e a forma da mente perceberem os sons. Com a música tonal, a partir daí, iniciando-se com o clássico, surge a noção de dons dominantes e subalternos, além de um sistema matemático de cromatização. Educa-se os ouvidos e o corpo para um determinado modo de ouvir e experimentar.

Os sons existem na natureza, som do trovão, da chuva, do pássaro, da cascata caindo, mas o tom é uma invenção humana. É a sintonia convencional de como se chama a frequência contínua de determinado padrão que se repete ou mantém, e a partir daí, a criação dos derivados numa cadeia de sete notas para possibilitar seu controle, havendo uma relação de poder e controle dentro dessas notas a partir do momento em que se escolhe o tom da composição, que pode favorecer timbres graves e tensos que torcem e crispam os corpos, usados nos temas de guerras e tragédias, nas aberturas ou temas sacros, ou ao contrário,  dependendo da utilização do campo harmônico,  a rede formada por essa relação entre as diferentes notas e acordes pode induzir calma e deleite ao facilitar a criação musical do movimento de fuga, comédias, passeios no campo ou festividades.

Paralelo ao uso da tonalidade, o modo como essas notas pertencentes a uma escala em rede eram utilizados em sequência, criava um mundo à parte . Mais antigo que o sistema tonal, o modo utilizado em alguns casos era considerado demoníaco na idade média,  assim como havia os modos preferidos de Deus e dos anjos. Não precisa dizer as razões.  Os "modos demoníacos ", obviamente são os sons que induzem movimento e abertura,  éxtase, alimentam no corpo o pulso incontido do movimento.  Mais efetivos se acompanhados de flautas, pandeiros, tambores.   Os modos celestiais,  para acalmar o sangue, próprio da lira, harpa, primeiros teclados barrocos . Estudos recentes sugerem a utilização massiva desse sistema na Grécia antiga pelas festividades de Dionísio,  acompanhado dos versos destinados à excitação de corpo e espírito,  os "Ditirambos".

As curiosidades são muitas, por aqui, principalmente sobre o caráter arbitrário dessas criações, que depois passaráo a ser seguidas como verdades cristalinas e únicas. Os sons que existem na natureza,  trovão,  raio, Cachoeira, pássaros são,  zd alguma forma,  metaforizados por seus equivalentes nessa escala formal e inventada, e passam a ocupar uma simbologia à parte. É aqui que vão surgir as figuras da síncope,  no ritmo,  e da dissonância, usada na criação de acordes com determinados efeitos especiais quanto à sua capacidade de interagir com os corpos que ouvem.

Com a criação da música tonal, a forma do corpo experimentar o som muda. Dentro de um enorme leque de possibilidades, utiliza-se uma das fórmulas, apenas, e a partir dela toda a possibilidade musical hoje existente. Mas não esgotam-se as chances de criação sonora num sentido lato, colocando em cena todas as outras que foram deixadas de lado.

Mahler costumava dizer, sobre sua música de criação atonal, que a música tradicional clássica -- já no seu tempo -- estava com o campo tomado, e não havia mais muito o que criar nesse sentido. Certamente pensava nos trabalhos gigantes de todos que o antecederam, o próprio Bach, Mozart, Brahms, Beethoven, Vivaldi etc.

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Síncope, dissonância e movimento corporal 


(Work in progress).......