Henry Miller

 


No ano em que completa 45 anos de sua morte, Henry Miller não podia ser mais atual. Sendo seu texto brilhante e provocativo como é, além da originalidade ao temperar um enorme conhecimento de Filosofia e Arte com altas doses de erotismo autobiográfico, não era de se esperar que em nossa triste época sabotada por políticas do asco e fundamentalismo moral e "religioso" do pior naipe, isso tivesse alguma celebração, a não ser algum descontinho especial aqui ou ali em livrarias que bem conhecem o autor e a demanda dos felizes leitores.

A um tempo, a constatação da atualidade e necessidade de Miller pela evidência feliz de mostrar que um outro mundo é possível sim, e mostrar como uma obra de arte resiste, recusando-se a ser rotulada, datada ou mal digerida pela atitude comum do leitor apressado de nossos dias que desaprendeu a ler e empobrece as infinitas vias de interpretação apenas com o juízo raso de suas crenças e preconceitos morais de época. 

O leitor em nosso tempo não vê o que lê, não lê o que vê, nem elabora. Há uma incapacidade de elaborar, não porque realmente não possa em absoluto, mas porque tem preguiça . E embora ele não saiba, esse tipo de preguiça nem sequer é gratuita e com efeito foi pensada em termos estruturais para ser assim. Falamos aqui da esfera de apreensão (espírito e intencionalidade) e não compreensão num sentido estritamente racional. É preciso apreensão, pegar com as mãos, mergulhar porque do contrário a arte não alimenta. No aspecto cartesiano somente, embora a compreensão possa tirar o leitor da estaca zero, limita os vôos.

O leitor portanto não aprofunda e não reflete em profundidade mais porque não quer, porque é mais difícil, porque dá muito mais trabalho, torna-se melhor e mais fácil pegar o "pensamento" de fora, seja nas redes, de outros não -leitores ainda mais mal informados etc. Uma rede de desinformação contínua. Isso ainda quando a leitura, desviada do real propósito, não transcende para ganhar outros mundos e o leitor em vez de incorporar a experiência vivida na narrativa e, como diz Barthes, "construir conjuntamente" uma leitura de um terceiro lugar como co-autor desconhece completamente a noção do imaginário, do hipotético, do onírico e até do delírio quando o caso, e passa a cultuar a celebridade como se o escritor em suas limitações e pequenezas humanas demasiado humanas fosse de fato aquilo que escreve, seus personagens, seus temas, suas narrativas.

Nosso leitor médio,  quando lê, é sequer sem o tempo de aprofundar-- isso num país de não leitores -- e também porque o próprio sistema calculando milimetricamente uma falta de tempo estratégica para fazer cessar a todo custo a introspecção, eliminar sempre que possível a capacidade de contemplação e vivência aprofundada, elementos indispensáveis ã arte, as vivências, à reflexão em geral, nosso leitor portanto apenas flutua num mar de má formação reproduzindo  num subtexto mental não o texto que está bem à sua frente, mas sim os valores arcaicos e o cabedal de preconceitos e noções empacotadas do qual foi vítima ainda desde muito cedo no aparato de instituições típicas que se empenham em formar robôs sem delas conseguir se libertar nem mesmo em sonhos. 

Alguma relação disso com fundamentalistas? Claro, amigo, a fé manipulada seja religiosa, política ou futebolística sempre conduziu massas desde a Roma antiga. Alguma relação com a violência do Estado tentando se garantir e perpetuar em armas mesmo por questões mínimas que em outro tempo se resolveriam sem mais por arranjos diplomáticos? Claro, amigo, quem não pensa não questiona a ordem estabelecida, apenas cumpre ordens. Como Eichmann na estação de trem famosa despachando judeus para Auschwitz na segunda guerra: "O senhor sabia que esses trens da morte levavam 1 milhão de pessoas para campos de concentração?" "Mas eu apenas cumpria ordens". 

Alguma relação disso com um certo ar de infelicidade resignada que todos carregam nas ruas, nos ônibus, nos shoppings? Sim, toda. A incapacidade de vivenciar o próprio tempo de vida de uma forma "não -produtiva" em termos capitalistas, quando a idéia de ficar à toa seja por meia hora virou o novo demônio a ser duramente combatido.

Alguma relação disso com uma super estrutura que, vai lá, vai cá, flerta o tempo inteiro com o Fascismo? Evidente. A permissão cessada de viver em maior profundidade ou certo relativo controle do tempo próprio de vida -- isso tudo dificulta o próprio reconhecimento de si no cotidiano e seus movimentos, afetando a vida individual e ao fim asl qualidade das dinâmicas coletivas, tudo mastigado por um sistema que volta descaradamente cada vez mais ao neoliberalismo selvagem descartando como casca morta qualquer assistência da minguada social democracia.

A um juízo mais ácido, a outra evidência menos feliz da necessidade do texto rico de Miller aos nossos dias é quando se percebe na máquina de moer das décadas que hoje qualquer coisa que lembre a idéia (equivocada por si só) de evolução ou progresso humano está cada vez mais relegada ao fracasso.

A direção do mundo parece ser mesmo a barbárie,  a total inaptidão da empatia e o estreitamento progressivo do limite geral de compreensão mais plena de tudo que nos cerca, isso sendo  substituído pela pressa maquinal, a incapacidade do leitor a que Nietzsche chamava de "ruminar" , deter-se pelo tempo nem longo nem curto mas essencial para absorção de qualquer tema, arte, obra, seja música, texto, escultura etc antes de sair vomitando besteiras e mal entendidos aos quatro cantos do planeta, isso tudo sendo substituído por mais um segundo de exposição ou mais um pensamento raso. Tornou-se muito mais importante o "relatar o vivido" mesmo que por falsas auto narrativas espelhadas do que alcançar o tempo e a fruição necessárias para a experiência de si ou qualquer sentido real de troca ou partilha.  E o pior é que não se pode culpar individualmente o leitor, pois se trata de um vírus de época do qual infelizmente poucos parecem ter se vacinado.

Salve o anarquista Henry Miller e a coragem do texto, salve a esperança de multiplicação da virtude da ruminação no leitor. Vida longa à capacidade de contemplação, reflexão e aprofundamento, caminho necessário contra um sistema moedor de carne. Que aumente a visão de mundo para indivíduos que possam compor uma totalidade mais rica e menos medíocre, que melhorem as interpretações e elas sejam mais generosas quando o pensamento raso insistir em querer seu lugar.

Que seja superado o espírito desta época rasa.