"Matrix", Alice e os paradoxos do contemporâneo

Lembro-me, nostálgico, do conceito de futuro exposto por  Fritz Lang, no filme cult "Metrópolis", realizado há quase cem anos... A coisa toda ficou bem pior do que o gênio alemão poderia supor. A sensação claustrofóbica e a vertigem  de estar de pé em um planeta que parece girar cada vez mais rápido, num universo em contínua expansão, a sociedade pós-industrial  criando e destruindo referenciais com tamanha facilidade e volume que torna impossível a qualquer mortal assimilar a quantidade e a qualidade de informações julgadas necessárias para a sua vida. Situação de perda, que gera um certo descontentamento ou frustração diretamente proporcional à escala em que as próprias notícias, a tecnologia ou o conhecimento são produzidos. Ou seja, quanto mais informação, maior a tendência a uma relativa perda do referencial, e maior a sensação individual (em alguns casos coletiva, quando atinge determinados grupos) de perda, de incompletude, de infelicidade, enfim, de que está faltando alguma coisa. 

Esse "QUE" que sempre parece faltar é  uma mola propulsora para vários vetores no cotidiano de nossas vidas, sem que necessariamente saibamos disso, e guarda infinitas chances de manipulação e de auto-indução  de toda sorte. Desde o pastoreio de interesses macro, políticos e econômicos, para manutenção de determinada ordem, passando pela defesa de ideais que sequer eram sonhados até poucos instantes atrás, por grupos específicos de ativistas ou indivíduos militantes nas mais diversas esferas, e que, agora parecem tão sólidos, sem se saber muito bem o porquê. Sem falar em comportamentos induzido por um certo conceito de liberdade: aquela louca vontade de sair voando da mesa para comprar aquele tênis, aquela moto potente, ou mesmo tomar aquela cerveja gelada ou uma Coca-Cola no bar da esquina,depois de se assistir a uma estimulante propaganda. O desejo frenético de possuir sua casa própria, ainda que para isso precise estar endividado durante a maior parte da sua vida útil, ou ter aquele carrão super esporte que, por sua vez, está associado àquela garota com o estilo tal. Desejos criados para serem  saciados em curto espaço de tempo, em alguns casos, e mesmo para nunca serem realizados, em outros, mas o mais importante é nunca deixarem de ser opções ativas, desejos em prospecção, como o de pertencer a esta ou aquela religião, à nação, pertencer a este ou aquele partido ou mesmo torcer por um time de futebol, que terá sido seu time de coração, desde que nasceu.

Um dos problemas é quando há falhas sistêmicas na arquitetura desse mundo e de alguma forma, elementos aleatórios que integram toda essa rede neural conseguem escapar ao seu controle, ainda que temporariamente, e percebem que o sonho sonhado lá atrás, enquanto era apenas perspectiva, se tornou apenas mais uma decepção como tantos outros, e não traz em si, como costuma acontecer, um prêmio de consolação por sua fruição. O ideal era utópico, e alimentava a alma enquanto não se realizava. Uma vez alcançado, a distopia toma seu lugar, porque não há tanta graça em consumir o sonho como imaginá-lo. Tanto maior é o problema para a manutenção da rede quanto maior for o número de pequenas estruturas ímpares, autônomas e pensantes que se desgrudam da sua matriz, como pequenas centelhas vivas, com nova maneira de perceber o mundo que os rodeia. A fruição da realidade desmascara a perspectiva subjetiva da felicidade que existe em projetar um mundo melhor no futuro. E isso não é remédio para o mal passado nem ao mesmo prevenção para os males futuros. Continuamos, enquanto indivíduos, sonhando sonhos improváveis e alimentando um sistema que  drena nossas melhores forças para projetos cuja realização é inexistente, mas cuja justificativa era só a de serem projetos vendidos para as pessoas certas, como drogas alucinógenas que fazem tudo estar supostamente conectado e mantém uma certa realidade visível no ar, sem desabar de vez. 

Um dos exemplos de como isso ocorre é que hoje, tornou-se um problema lidar com essa decepção do "depois do ano 2000..." Como se a humanidade e a história fossem obrigatoriamente se encontrar no ponto exato do fim do segundo milênio, celebrando juntas um mito denominado "processo civilizatório" em uma ceia onde se comemorariam vinte séculos de honras e glórias. Esse não preenchimento de tão grandes expectativas gerou milhares de órfãos do ano 2000, principalmente para minha geração, que já buscava uma aventura por dia desde que nasceu, e aprendeu a conhecer "o espaço, a fronteira final...” na tv, a bordo do seriado Startrek, "Jornada nas Estrelas", e andando em companhia dos fabulosos Sr. Spock e Capitão James Kirk pelos rincões do universo. Essa turma nasceu depois do incandescente maio de 1968, e nos intervalos da programação televisiva já se adaptava ao "mundo de amanhã", aquela estética à moda dos  “Jetsons”, pensando o futuro de forma inusitada, influenciados pela nova era científica americana,  vitaminada pela "conquista" recente da lua. 
O sonho maior, nossa utopia massiva e consoladora era a tecnologia tornando a vida mágica, a ciência aplicada como solução final para todos os problemas humanos. Não existia uma criança sequer, com a menor dúvida de que, quando chegássemos ao ano 2000, a humanidade estaria tranquilamente flutuando em seus carros, na verdade miniaturas de naves espaciais, na forma de motocas ou minivans, para todos se deslocarem comodamente desde uma simples ida à padaria da esquina, até o dia-a-dia normal na ida e volta ao trabalho, viagens intergalácticas na velocidade da luz, fins de semana em Júpiter ou Marte, e é claro, tudo isso sem problema algum de trânsito. Também não existiriam mais doenças, e haveria aqueles fabulosos almoços e jantares instantâneos, para quando a pessoa estivesse cansada de pensar no prato do dia, bastando pingar uma gota d'água em uma cápsula e ela se transformava num banquete sobre a mesa, contendo todos os nutrientes necessários sem forçar ninguém a comer salada. Sem falar naquelas pistolas de raios laser , objeto de desejo de todo menino da época, e que desintegravam uma casa num simples apertar de gatilho, ou ainda os fantásticos teletransportadores à moda de Einstein, que faziam a alegria da garotada nas tardes depois das aulas, quando viajávamos junto com a fabulosa “Enterprise” até os confins do universo inexplorado.
Entretanto, hoje aparentemente não há mais porque se enganar com esse ideal de felicidade futurista, pois é óbvio que, aos olhos de um adulto contemporâneo, se tudo isso tivesse de fato se realizado exatamente como imaginado lá atrás, por um menino de 6 ou 7 anos influenciado pela expansão científica capitaneada pelos Estados Unidos e o novo padrão de consumo pós-guerra, hoje esses adultos, vivendo aqueles antigos sonhos numa realidade cotidiana, provavelmente estariam entediados da mesma forma, pois seu pathos infantil, o espírito de descoberta que fazia tudo ficar mais interessante, mais colorido e vivo , uma hiper realidade, provavelmente teria se perdido da mesma forma, em algum emprego daqueles que te acorrentam comodamente em frente à tela do seu PC durante largos passos da existência. A consciência dessa situação, por si só, poderia levar a algum tipo de rebelião, revolução, uma virada de mesa, entretanto isso não ocorre... O sistema, afinal, também tem suas armas preparadas para o contra-ataque.
Alheios a essa constatação trágica, a descoberta da fórmula secreta do mundo que, de tempos em tempos apresenta falhas sistêmicas e se mostra por alguns instantes, nunca conseguimos nos dissociar por completo da idéia de que a felicidade no futuro estaria aliada visceralmente a novas descobertas científicas, isso de forma consciente ou não. Nosso sonho se transforma em delírio, e não percebemos a mudança. Essa expectativa de que a tecnologia sempre estava a um passo de tornar a vida mais fantástica foi vivida por minha geração também quando, por graça ou maldição, vivenciamos a transição de tudo que é analógico para digital. Disco em vinil (bolachão) para CD, telefone fixo para celular, máquina fotográfica reflex para digital, e ainda o melancólico fim da máquina de escrever, mecânica, tradicional, clássica, vitoriosa de longa data, "evoluindo" para o tipo elétrico, que durou ainda mais de 10 anos, até a eletrônica, um milagre da tecnologia, mas que teve vida efêmera frente ao PC, introduzindo o microchip na revolução que acabava de ser inaugurada. Com essa nova miragem, começamos a especular, sonhando acordados novamente, não mais meninos de 6 ou 7 anos, mas adultos jovens, empolgados com o sonho, todas as possibilidades de um mundo melhor e mais colorido, prenhe de um amanhã governado pela cibernética.
O conforto de imaginar um trabalho imensamente mais produtivo através do PC, criando as condições para que toda a melhor energia e atenção humanas pudessem enfim distanciar-se de tudo que é chato e cansativo, e a partir de então, dedicaríamos esse "plus" de energia vital para atividades de recreação, de contemplação e auto-conhecimento. Enfim, o computador, utilizado de forma popular, cotidiana, em larga escala, viria resgatar a humanidade de sua rotina de Sísifo, impedindo-a de continuar rolando pedras morro acima, que depois voltariam a lhe cair sobre a cabeça, obrigando-a a reiniciar o esforço. Ledo engano. Hoje, somos mais máquinas... Pensamos como máquinas. Vivemos a maior parte do tempo vidas mecânicas, rigorosamente regidas pelo fluxo dos ponteiros, do tráfego de carros nesse trânsito insólito, pessoas em filas de elevadores, nas filas de médicos, filas de estacionamento, nas praias, nos cinemas, nos teatros, hospitais e dentistas, nas escolas, igrejas, shoppings etc. Quer sintoma maior de que tudo deu errado quanto uma fila? Quanto maiores as filas, em geral, significa que tudo vai de mal a pior. O sistema não está dando conta de se auto-oxigenar, em razão do excesso de demandas. Tudo em volume, tudo em massa, massacrando as possibilidades de expansão do indivíduo, que passa a ser nutrido por outro cordão umbilical. Até os nossos rituais "sagrados" são mecânicos; para nos diferenciarmos somos mecânicos, pois escolhemos a maioria das vezes caminhos pré-pensados que parecem originais, e nem nos damos conta, pois assimilamos a mecânica como parte do nosso ser, andando a maior parte do tempo no piloto automático, para sobreviver.
Em certo sentido, ao contrário do grande sonho plantado lá atrás, pelos espíritos livres do século XVII, que preconizavam que a razão era o supremo guia, a luz para iluminar as trevas, vivemos, em função de algo exterior, uma força maior e mais obtusa, sem direção, e que parece ter fugido ao controle, a qual suga as nossas energias para se tornar um monstro cada vez maior e mais forte. Toda a energia original, que era aplicada ao trabalho, continua produtiva, multiplicada por vinte, por trinta; toda a energia potencialmente extra, que poderia e deveria ser utilizada com outros propósitos volta a ser drenada para o "monstro", o "sistema" ou como queiram chamar: como eu sempre penso por imagens, juro que o primeiro filme da trilogia hollywoodiana "Matrix" me passou pela cabeça, agora, com aquele monte de humanos em eterna vida parenteral, sendo mantidos quentinhos e vivos dentro de berçários líquidos, úteros artificiais, enquanto sua bioenergia alimenta toda a superestrutura. Importante notar que, não obstante seus corpos estivessem ali, aprisionados, suas mentes viviam mundos paralelos e virtuais em vidas confortáveis, plenas e sustentadas por softwares com essa finalidade, mas fictícias. A Distopia rasteira que alimenta nossos sonhos entubados, usando nossa própria energia para nos afastar de outras possibilidades. Até hoje ainda penso na resposta possível de milhões de pessoas a quem fosse dada a oportunidade de escolher, na clássica passagem do clássico filme (Matrix, parte I) de Andy e Lana Wachowski: escolheriam afinal a pílula azul ou a vermelha???
Apesar dos avanços inegáveis que aconteceram quanto à dinâmica e ilimitadas possibilidades de se estar em comunicação com o mundo, (afinal, a internet é muito mais do que o conceito simples de um PC conectado a outros) não houve mudança essencial quanto aos meios de lidar com o novo milagre. Ainda somos escravos de não saber ver uma saída, de não saber utilizar a nosso favor nossas melhores energias. O advento do microchip não mudou , de fato, a maneira de se pensar o trabalho na sociedade em que vivemos. Aumentou-se a produtividade, mas a cobrança por produção aumentou muito mais. Assim como a utilização de cada potencial minuto extra que, em tese deveria sobrar como resultado da interação dessa química temporal entre homem e máquina, milagre anunciado pela nova era digital, não se voltou às artes, à contemplação, ao lazer, ao trabalho voluntário ou qualquer outro prometido sonho humano que o valha. Trabalha-se muito mais hoje do que há cinquenta anos atrás. Isso tudo ainda começa no germe, quando criança. Hoje a infância é dopada constantemente com Ritalina, a droga da obediência cega e da produção fria. O sistema pretende replicar robôs, a partir do momento em que uma inteligência artificial assume o comando da máquina. Daí, quanto aos humanos,  morreremos antes de nos aposentarmos, ainda orgulhosos pelo sobretrabalho (pois essa estatística, ninguém verá publicada, e eu informo aqui, de graça: a maioria desses ataques cardíacos e AVC's aleatórios, sem quê nem hora, que acometem toda a nova geração, essa depressão silenciosa que leva todo mundo a se empanturrar de Prozac e Lexotan nesses consultórios de psiquiatras "zelosos" do seu ofício cínico e matemático, esse esforço calculado para se livrar de toda e qualquer loucura, revalorizando mais uma vez, pasmem, o mundo cartesiano em que vivemos), pois nunca conseguimos nos desligar o suficiente no restante do tempo. Trabalhamos mentalmente até mesmo quando supostamente deveríamos estar descansando. O bordão : é vergonhoso não render o esperado, não estar engrenado, não possuir a desejável dinâmica de uma roda que nunca pára, cada qual carregando em sua anima o peso da obrigação de gostar de tudo, da obrigação de ser feliz. Ora, então, a pergunta lógica que ninguém tem tempo para fazer: se não utilizamos esse suposto benefício em nosso favor, de que valeram tanta ciência, tanta tecnologia?
Vejo nessa pintura antiga, à minha frente, uma cena de lazer em um parque europeu, provavelmente em Paris, num dia ensolarado, no estilo impressionista, todos com suas cestas, vinhos , comidas e bebidas ao ar livre, rio, árvores, céu azul ao fundo, natureza sempre à mão. Não há como não sentir inveja ou nostalgia. Hoje a natureza ainda continua aí, mas aquelas pessoas que a ocupavam com aquela natural desenvoltura desapareceram. Andamos pelos parques hoje e todos estão forçadamente fazendo aquela caminhada sem graça, tesos, expressão circunspecta, regra de saúde prescrita pelo médico, e cumprida contra o relógio. Portanto, o próprio tempo fluindo livre deixou de existir, foi sugado pela nova era, reprocessado e metaforizado de volta na forma de bens de consumo cultural duvidoso para alguns de nós, que tivemos a sorte de aprender algo mais do que a mera alfabetização. A exemplo desses filmes abomináveis que encontramos em profusão hoje nos cine "blockbusters".  Qual a penitência que devemos purgar para assistir a um filme razoável hoje em dia? Afinal, nossos setboxes comprados nas promoções da internet não conseguem nos prover por tanto tempo assim limiares alternativos para evitar que mergulhemos de vez nessa lama. Isso sem falar na qualidade editorial dos jornais. Quem pode levar , em termos de linha editorial, o Jornal do Brasil, a Gazeta, Tribuna, até mesmo a poderosa Folha de São Paulo a sério? São esqueletos, fantasmas do que já foi um grande jornal. Perderam sua alma ,e hoje ficaram só os tijolos insustentáveis, operando ao prazer do mercado pagador. Mediocridade é pouco para tentar descrever a situação. É mais um signo dos tempos, da qualidade ruim do leitor sem formação, da população sem tempo, sem espírito, máquina . Processa somente o que lhe é ordenado, mastigando apressadamente, como vaquinhas perdidas num pasto artificial, uma grama que mal consegue digerir, sem porém.
Em dúvida quanto à veracidade dessas alegações? Pegue um ônibus no meio da tarde, indo do nada ao lugar algum, e repare as roupas (estou falando aqui do estilo, dos costumes da moda e não da relação simplicidade x luxo), as expressões faciais e o destino das pessoas. Ouça a música que eles estão ouvindo, ouça seus comentários e opiniões sobre a vida, sobre política, sobre o mundo "grande" dos fatos notórios ou sobre o mundo "pequeno" do cotidiano, não necessariamente nesse grau de importância. Ou chegue-se a uma janela bem alta, com ampla vidraça, num prédio próximo a movimentada rua, e observe , durante alguns minutos, enquanto toma aquela deliciosa xícara de café, do alto, a ópera da coisa toda. Um observador privilegiado, exercitando a bênção da contemplação. Observe os movimentos dessa massa disforme que daqui a pouco fará parte de você mesmo, quando você sair do trabalho e voltar a andar nas ruas. E o pior: não se vê o maestro dessa orquestra!! Não sabemos sequer se ele existe...Aquelas formiguinhas insignificantes e frenéticas lá embaixo.... Relaxe e pense, quase revoltado: fomos roubados!!!

Então, por essas e outras, fico pouco à vontade, depois de um período de férias, no qual pude constatar a extrema dificultade de tirar o pé do acelerador durante praticamente toda a  sua primeira metade. Na outra metade, fiquei vagando entre três grandes metrópoles,  mercê de shoppings, praias e daquele trânsito dos infernos. Tirando os estouros de cartão de crédito nas Megastores Saraivas da vida, só para variar, muita comida e uma ou outra banda interessante pra curtir, muito pouco se consegue diversificar. Deus, quanta repetição de padrões!! Numa abordagem micro, de repente desperto de uma espécie de sonambulismo atávico que me acomete de tempos em tempos, percebo que as mulheres usam sempre o mesmo tipo de cabelo, maquiagem, acessórios. As roupas variam somente nos contextos, mas a se observar cada um em particular, em si mesmo, vestem-se praticamente da mesma forma... São praticamente iguais, e não é que não haja beleza em na formatação final, em cada pessoa, individualmente, ou em sua composição pessoal. O problema é que isso não é mais pessoal. O que não há é originalidade, não existe a diferença quando se observam os grupos humanos em seu movimento cotidiano, isso depois de tanto esforço em fazê-la desaparecer. Nem falo dos homens porque aí já quase não há variação mesmo, nesse universo. O que era, continua sendo igual, à exceção de uma minoria, excessivamente antenada nos lançamentos semanais de estilo, e que também não são uma exceção, pois que escravos de tendências pré-fabricadas de roupa, de gestos, de comportamento e de opiniões. De forma geral, a se considerar a aparência pessoal e vestimentas como uma espécie de termômetro dos tempos e linguagem com o mundo, ambas estéticas nos dão a impressão de que o objetivo explícito é esconder as diferenças, em vez de supostamente mostrá-las, como quer fazer crer a propaganda que incentiva o consumo excessivo do glamour "customizado".

As cidades , esse ambiente macro, também repetem exaustivamente suas rotinas, condicionadas por suas arquiteturas, condicionadas por sua falta de projeto urbano, falta de ar livre, de espaços abertos, caoticamente espremidas por seus apertos imobiliários que são, em última instância, consolidados pela cegueira do Estado. Pois assim é neste país. Até o padrão de construção das novas moradias, dos novos apartamentos, é sufocante, claustrofóbico... O padrão de espaço, a famosa área útil em metros quadrados dos apartamentos de classe média construídos há 30-40 anos atrás caiu para a metade? Ou um terço? Pelo que eu saiba, nós não somos menores hoje, do que há quarenta nos atrás. Pelo contrário, acho que até aumentamos muito, em altura e largura, se não mentem as estatísticas. Não sei, mas alguém precisa inverter essa ordem o quanto antes, porque os preços, ao contrário do metro construído , foram para a estratosfera, pairando num nível irreal, totalmente especulativo. Não é diferente nas cidades menores, mas o volume assustadoramente maior dessas tendências nas capitais, assemelham-nos cada vez mais a formigas trafegando de forma mecânica em nossas rotas calculadas pelo formigueiro, o que impressiona.


O maior medo é esse, já digo logo: repetimos demais, somos pouco ousados, coletivamente. E para contradizer, individualmente , temos excesso de bagagem. Toda nossa história atual leva a esse paradoxo. A busca contínua de qualificação e especialização para um mercado, o que não corresponde necessariamente à formação de espíritos livres, as informações disponíveis nas mídias em geral, televisão, net, celular, banca de revistas ( alguém me dê, por favor, a definição de uma banca de revistas hoje? Alguém já disse, e muito bem, que numa simples edição de domingo do jornal O Estado de São Paulo há mais informações do que provavelmente todo o século passado...De qualquer forma, as bancas são um belo quadro na paisagem de concreto) aumentam muito essas possibilidades do consumo individual da solidão. Haja adrenalina, portanto. Impossível eu me desligar? Impossível a gente se desligar? Existe um aprendizado para desaprender toda essa lida? Esse desaprender-reaprender parece ser um caminho, quiçá o único. Se não , ao menos o mais plausível. Leia-se: toda essa informação para a sobrevivência, que na verdade, nos faz acumular dez vezes mais lixo tóxico mental, físico, espiritual, material do que tudo que seria realmente necessário para nos manter vivos e bem? Comunicativos, vibrantes, saudáveis, integrados holisticamente com o universo-ao-redor e bem? Ao contrário do que apregoam os ecochatos, cuja causa simpatizo, não há o menor indício de que o sistema esteja migrando em direção contrária, globalmente falando.


Não estou falando aqui, por óbvio, em alternativas baseadas em cursos de auto-ajuda, ou meditações transcendentais fáceis que tentam lhe mostrar algo em que você realmente nunca acreditou, de uma forma totalmente mais improvável ainda. Não há manuais para questões que não possuem respostas coletivas. O processo tem que passar em algum momento pela individuação, ou como diria Nietzsche: a "ruminação". Também não quero regimes de desintoxicação alimentar que me levem, com base na anemia vegan, a sentir o mundo como eterna calmaria. Sou ocidental assumido e tenho que conviver com alguma adrenalina, pois adoro carne vermelha, vinho tinto, sou inteiramente apaixonado por aquele chocolate com castanhas Talento, da Garoto, é claro, e café, esse mágico elixir que torna possível minha existência. Também adoro massas de toda natureza, e só parei mesmo de fumar porque me fazia mal , mas adorava aquela fumaça, o ar especial melancólico existencial rebeldia anos 50 que eu achava que tinha, com um cigarro na mão, certamente adquirido pelas propagandas televisivas e em filmes onde todo mundo que é legal sempre fuma, além da sensação mágica da nicotina chegando nos pulmões e dando aquela calmaria autocomplacente que todo fumante sabe. Uma praga . 

Voltando ao tema, não se trata de se convencer de que os problemas existentes nesse caos urbano são insolúveis ou um modo "externo" de viver a vida. Problemas, conflitos, lutas, são a base inafastável do estar-no-mundo, esteja você aonde estiver, mas também encerram novas possibilidades, e quem sabe novas formas de superação. Há filosofias que consideram os problemas como parte da resposta. Quanto àqueles que não se pode resolver de momento,  aprender a dimensioná-los corretamente, tarefa que exige muita sabedoria e alguma experiência, além do precioso tempo para decantar a sua corrosiva ação.  Assim , deduzimos que, com relação aos problemas recorrentes da tal "humanidade", aqueles universais que independem da época, do país, do povo que o habita e que tomariam toda uma vida na expectativa de sua resolução, e que apesar do mais apegado esforço, continuarão existindo depois que essa vida perdida se for, a melhor atitude é enfrenta-los através de uma mudança de "lugar", de "espaço", para perspectivar novos pontos de ataque.

Se há uma saída de "Matrix", ela não é constituída por um coeso bloco de propostas sólidas e politicamente corretas, demandas de grupos com bandeiras declaradas. Se há uma saída dessa máquina de moer carne, ela sem dúvida é anárquica, aleatória, individual e incondicionada.  Vislumbrar os pontos onde a rede é fraca e pode se romper é algo que eventualmente pode acontecer se você parar de voltar seu olhar inteiramente para os pseudo-problemas, às vezes criados como meros passatempos ou despistes do objetos-foco para perda de energia criadora/destruidora que poderia deixar esse sistema em alerta e recondicionar a absorção de todo e qualquer esforço para a própria manutenção da máquina por essa quimera coletiva, porque é justamente de sua atenção e sua força que eles se alimentam .

Em vez disso, quem sabe, buscar fortalecer-se num pequeno intervalo para respirar, um espaço-tempo paralelo que permita a visão crítica, enquanto tentamos enxergar os códigos, os símbolos que sustentam as estruturas,  andando por um possível corredor de escape enorme que existe entre as pessoas e as coisas, por onde você poderia dar uma escapada diária ou mensal, enfim, sumir do mapa por alguns segundos. Resumindo, retomar a intuição primitiva que seja, para encontrar, nesse espaço, algo que fizesse você se lembrar o porquê de ter que ficar tanto tempo sentado, trabalhando, produzindo mais coisas sem graça , ainda que esse fazer seja desejável por muitas outras pessoas nesse planeta ,e considerado socialmente válido, digno, útil. Enfim, um porre.

Essa "saída", contudo, é real, para um "problema real?". Num mundo que se governa por algoritmos de comportamento e números designando as coisas e seus lugares, "Defina o real", como diria o sábio estrategista Morpheus, para o herói Neo, em seu ciclo de iniciação ou redescoberta dos seus próprios poderes por um novo tipo de consciência. Ou tudo não passa na verdade de problematização equivocada  dos temas e mero escapismo causado por  uma dor da perda do pathos infantil, aquele de que falei bem ali em cima e que tornava o mundo um lugar especial e mágico? Como sobreviver à queda e à dor causadas por estar "fora" de Matrix se, matando sonhos e ideais pela constatação óbvia de que fomos logrados na sua concepção, enganados por algo implantado em nossa mente para que nos permitisse pensar que ainda somos humanos (porque sonhar é uma categoria humana), e despencando dessa forma da utopia universal civilizatória para as distopias cotidianas não haverá remédio que baste? Se assim for, à medida em que largamos para trás a primeria infância, tudo estaria irremediavelmente perdido como adultos? Prefiro pensar que esse natural espanto que faz a vida ficar melhor de ser vivida ainda não morreu, desde que possamos achar nosso espaço no mundo. Espaço este que nem precisa ser muito grande, mas não pode deixar de existir. Estou tentando dizer, ou melhor, especular sobre a existência desse espaço mágico, como naquele outro filme : “Quero Ser John Malkovich”. Lá, o espaço-ação é representado num andar inteiro que não existe, oficialmente , no prédio. É um andar secreto e ele não tem o tamanho de um andar comum, é um meio-andar, um teto mais baixo, e tem no cantinho uma porta pequena, camuflada, enveredando por um túnel que, por sua vez, escapa para muito longe, saindo às margens de uma autoestrada a quilômetros de distância do próprio prédio. Tudo isso muito Lewis Carroll , é claro, mas quem não gosta da fantástica e meiga Alice? O que importa mesmo é o espaço-fuga que existe nesse lugar. A fuga é o caminho? Afinal, existe o lado de lá do espelho? Eu realmente não sei, mas o que eu sei mesmo é que o que importa agora é achar esse lugar.
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ensaio publicado originalmente em 13-04-2014 , em "O Aleph"