Pulsão, Sublimação e Imaginário no "Werther", de Goethe


"Ah, se pudesses expressar tudo isso, se pudesses imprimir no papel tudo aquilo que palpita dentro de ti com tanta plenitude  e tanto calor, de tal forma que a obra se tornasse o espelho de tua alma, assim como tua alma é o espelho do Deus infinito".... ("Werther", J. W. Goethe)


"E se adormecesses? E se, no teu sono, sonhasses? E se, no teu sonho, subisses aos céus e ali colhesses uma estranha e bela flor? E ainda se, ao acordares, tivesses a flor na tua mão... Ah, como seria, então?" (S.T. Coleridge)



A noção inovadora para a época, uma bomba existencial  onde subitamente os "sentimentos do mundo" passam a contar muito mais do que os "pensamentos sobre o mundo", colocaria em definitivo à margem da história o peso absoluto das abordagens racionalistas para a  sua interpretação, até então propagadas pela filosofia sistemática do século das luzes e pela ciência de época. Onde está a razão agora, depois do baque, onde está o equilíbrio, aonde se escondeu qualquer bom-senso quanto o mundo de repente se transforma e o ente é tomado por essa poderosa força ancestral que o conduz como  de olhos vendados na corda fina sobre o abismo entre as paixões, sob o risco de algumas  vezes, para alcançá-las ele renegar até mesmo a própria vida, o maior bem individual em favor de uma sensação, uma pulsão, um motivo patriótico, um arroubo nacionalista, um anseio passional de amor, um toque, um sorriso um olhar, uma expectativa de acalentar seus desejos no corpo ou na alma do ser amado, o objeto que o faz delirar?

Longe do estereótipo consolidado de jovens adolescentes idealistas iniciando-se em rebeldia contra os pais excessivamente conservadores na virada do XVIII para o XIX, o romantismo foi muito além na história, absorvendo o pulso das ruas em suas artes, depois saltando também num processo contínuo dos livros e das artes para as ruas e para as casas, para as igrejas, para as assembléias, das ruas para os campos de batalha e daí para os amplos salões de conferência e política mundo afora. O pulso romântico de toda uma era, com sua ênfase no indivíduo, a acentuação do lírico, da consciência burguesa mais amadurecida depois de algumas décadas da Revolução Francesa, cujos ideais guardavam muito de sua essência embrionária, esse pulso traz em si a particularidade de não apenas ter eclodido num dado momento histórico, configurando-se num motor de imensas transformações, mas por se constituir numa força capaz de se misturar como poucos á própria presença da vida, levando indivíduos e multidões a agirem movidas mais pelos sentimentos que qualquer razão.

O pulso romãntico, numa época pré-modernista que para nosso olhar contemporâneo seria tristemente tachada de ingênua demais ou extemporânea, poderia ser deflagrado nesse contexto por qualquer estímulo que inflamasse os sentidos do cidadão europeu, não se restringindo necessariamente aos sentidos físicos:  a recente formação dos estados nacionais contribuiria fortemente para esse senso coletivo de unidade, de não-dissociação do coletivo-nação, a noção física agora, de uma direção política maior que sobrevivera à fragmentação e não por acaso tornou-se mais forte. Também pelo gosto da natureza, na revalidação das belezas típicas do campo e sua estética, misturada organicamente com a vida na cidade, diferentemente do arcadismo que cultuava apenas a vida pura na natureza, e diferente ainda dos simbolistas, que mudarão o eixo definitivamente para a vida urbana. Como noticiavam os jornais e as amplas rodas efervescentes nas capitais européias, a moda agora era a passionalidade, a não neutralidade, a tomada de posição, os arroubos em torno das conquistas nacionais na guerra, no culto da pátria ou no campo das ciências e cultura; na  pura e simples atração do sexo oposto (para os mais ousados e libertos, isso não eximiria também de abrirem-se a uma paixão pelo mesmo sexo, uma vez que a pulsão é idêntica, apenas a sua forma de expressão física ou social é que muda), também pode ser ensejada por outras forças as mais variadas , como a motivação por  uma fé arraigada, uma canção, uma poesia, uma contemplação do olhar sobre uma tarde após a chuva, ou até mesmo uma sensação exaltada de dever. Não importa muito o objeto em si mesmo, mas a forma de relação do sujeito para com ele, que pode ser ou não encorpada pelo espírito de uma época, expressos de forma marcante pela sua música, literatura, costumes, dentre outros. Não se deve esquecer que o entendimento de uma época pregressa será sempre feito lá na frente, com alguma sistematização de gostos e tendências, e enquanto se vive o momento presente, muitas vezes não se tem uma noção muito clara do que está acontecendo.

Percepção intensamente explorada nas diversas estéticas pelo romantismo é o próprio conceito de amar. Que tipo de amor é esse, em intensidade e lirismo que pressupõe desafiar as regras estabelecidas e eventualmente parece até mesmo desdenhar do corpo para buscar outras metáforas?. Ele consegue mesmo se desvencilhar do corpo, nesse processo, ou existe aí uma espécie de armadilha de tempo ? No cerne desse sentimento, o caminho inesgotável tão abertamente trilhado, desde Shelley a Beethoven, de William Blake a Byron, o  que se faz ou não se faz por amor? Até onde se pode ou se deve ir quando se ama? O definhamento romântico, alcançado sobretudo não por uma palidez do temperamento ou comedimento da vontade, antes por um excesso de energia represada e necessariamente canalizada para outras direções, esse mesmo definhamento romântico ao termo do tempo no culto do objeto do desejo, platonizado, sublimado, algo tão cultuado e difundido entre a juventude européia na segunda metade do século XVIII e depois pelo resto do mundo.

Onde está o sujeito ou o objeto no meio da sublime sensação quando ela ocorre, tornando por vezes seus onipotentes atores em meros fantoches nas mãos de forças que surgem e se desenvolvem à margem da simples razão humana? Forças que não pedem permissão ao racional, àquilo que se convencionou chamar de "mente clássica", equilibrada, razoável, matemática, cartesiana. Aonde se erguerão agora , depois desse vendaval, os conhecidos e duros limites do mundo físico que de repente parecem se dissolver no próprio ar? Existe diferença significativa entre amor e paixão? Uma vez consolidado, o amor um dia se extinguirá como o fogo pálido de uma antiga chama não incensada, ou na verdade se transformará em outros sentimentos, aumentando-se ou diminuindo-se, sentimentos às vezes tão contrários, ou  apenas máscaras artificiais de uma suposta neutralidade, que na verdade nunca são imparciais? Questões hoje tão relegadas numa época onde tudo é descartável, pessoas, sentimentos, a própria interação humana foi reduzida a uma escala mínima necessária para propiciar a sobrevivência, há dois séculos atrás tinham outra conotação, quando surgiam rompendo na Alemanha os primeiros traços fortes do Romantismo.

As variações tantas vezes trágicas e inconsequentes do amor romântico surgem pela primeira vez de forma tão cristalina e poderosa  na literatura através do belo livro "Os sofrimentos do jovem Werther", de Goethe, publicado ao menos cinquenta anos antes de se iniciar "oficialmente" o que seria reconhecido como "movimento romântico" nas artes e na filosofia alemãs e simultaneamente na Inglaterra (movimento que logo depois se irradiaria pelo mundo afora,  marcando uma das maiores influências vistas na história do pensamento), já eram conhecidas desde o início pelo próprio protagonista e alter ego do escritor alemão. Isso fica claro para o leitor que se angustia e experiencia o surgimento e crescimento dessa paixão incomensurável de Werther por Charlotte, mesmo durante os estágios iniciais que o levariam, progressivamente, de um simples encantamento pela beleza singela da jovem a uma obsessão irremediável  em tão curto espaço de tempo, contra todas as probabilidades e convenções sociais que estavam delineadas contra si. O próprio Werther, ciente que estava desse contexto, ainda assim não pode deixar de tentar lograr êxito na sua empreitada amorosa, mas confessa em mais de um momento que tinha ciência do caráter provável de projeção dos seus fortes sentimentos por Charlotte. Mas desde quando saber de algo, "ter ciência" de uma verdade quase científica,  ouvir a opinião dos "outros" num juízo unânime contra a loucura de qualquer empreitada amorosa põe amarras no sujeito ao gostar, ao querer bem, ao apaixonar-se por alguém que eventualmente não esteja ao seu alcance por qualquer motivo?

Goethe, durantes muitos anos conhecido na Alemanha e fora dela como o autor do "Werther", muito antes de surgir o "Fausto" , a obra definitiva que o consagraria entre as figuras mais proeminentes de toda a história da literatura mundial,  retrata aquele fator tão explorado nas artes, que dá ao ente apaixonado a capacidade de atribuir ao objeto de seu amor outras qualidades que apenas seu olhar consegue ver.  O olhar romântico, que dinamiza o amor, é um olhar criativo, que doa um excesso de vida a tudo que toca, e ele é motivado pelo seu objeto, diretamente. O olhar que acrescenta, o olhar que transmuta, enriquece. Nesse processo, inevitavelmente o sujeito que ama transforma-se a si mesmo numa espécie de vítima do amor à sua própria imagem,  uma vez que o algo familiar que  busca no outro pode se mostrar  justamente aquilo que lhe permita prosseguir no sonho de amar. É como se o amor criasse um vício de ser amado entre duas vidas para se fazer valer, usando para isso a subjetividade e os corpos à sua disposição. Uma apreciação um tanto narcisista, por sinal, que procura ver preenchidos no fim nada mais que seus seus próprios anseios, como jogo que se joga porque pressupõe um arquétipo de vida em movimento. Mas isso não é resposta para a questão maior, em Werther.

Porque mesmo dotado de cultura, sensibilidade e uma rara consciência de si, tudo começa quando o jovem é tomado por aquela força primal num primeiro contato com Charlotte, que brinca num jardim, rodeada de crianças. Ela não o vê, e eles ainda não foram apresentados, mas ele através das folhagens pode vê-la, em seu estado natural , livre de convenções, de ambiente social, ou qualquer artifício estético. Ele então é fulgurado pela visão, e num instante, o amor que vai persegui-lo e torturá-lo exaustivamente nos meses a seguir nasce desse olhar, desse primeiro contexto, dessa contemplação. O que vem a seguir apenas corrobora sua primeira impressão, quando percebe que a bela garota também é inteligente demais e sagaz acima da média para sua idade e seu perfil social. É culta, sabe se comunicar, toca piano, lê e ainda cuida de uma família não abastada de numerosos irmãos menores. Entretanto, junto com todo o encantamento vem o choque de realidade quando descobre que ela já está comprometida com outro jovem da mesma cidade, um moço que ele próprio acaba conhecendo e em algum grau admira por sua sorte, apesar dos ciúmes. Sofre um baque mas não interrompe o processo de se envolver cada vez mais com Charlotte. Tornam-se amigos, passa a frequentar sua casa, e ao passo que lhe é negada a chance de se aprofundar mais no laço amoroso que era seu real interesse, cresce cada vez mais sua admiração frente à amizade dela por ele e a grande angústia de ver distanciar cada vez mais seu objeto.

Progressivamente, a simples imagem da amada como uma garota  bonita e virtuosa mas simples, ainda mais para ele que vem de uma casta nobre e rica, no contexto da Alemanha aristocrática do século XVIII , um jovem promissor a quem a vida reservava de direito milhões de outros títulos, prazeres e realizações nas coisas do mundo, vai sendo substituída por uma imagem de perfeição inquestionável em todos os sentidos. é, no fundo, uma construção que se vai fazendo a partir de um primeiro contato. Uma construção que agrega todos os sentidos, o tato, a voz, o olfato, e sendo romãntico, com destaque para o olhar. A negação da realização amorosa, num primeiro momento, é a maior responsável por esse incremento de força na capacidade de amar ou é o próprio olhar do romântico, que idealizando seus maiores desejos na imagem exterior de uma jovem e desafiando qualquer contexto, riquezas, convenções ou arbitrariedades do destino, atrai para si a força criativa de plasmar num ser tão frágil  a "inteira salvação de sua alma pelo amor"?

Essas características, em geral,  é que essencialmente vão marcar a escola romântica na música, na poesia e na literatura. O romantismo, em poucas palavras, é a costura entre o  sonho e a fantasia. E como tal, vai procurar sempre enaltecer o potencial criativo do indivíduo através da imaginação. Essa imaginação tanto melhor será, quanto mais puder se expandir, daí todo tipo de "fuga" encontra um grande campo para florescer. O movimento romântico ainda não é o total desbunde, que viria na sequência contemporãnea com os "decadentes" franceses, no final do XIX e início do XX, abrindo portas para o modernismo no tom do total desencanto do mundo "paraíso perdido" da razão. Mas com muita força, o romãntico não é mais o clássico, porque tem um corpo próprio, potente e diferenciado. Por isso, embora ainda não seja a total descrença da vida mundana, pois alberga a natureza, aposta na política e acredita na religiosidade arraigada, ainda assim os romãnticos mais ousados aderiam constantemente à fuga mental, incentivada por drogas alucinógenas, ópio, êxtase através da bebida ou a embriaguez natural pelo próprio sentimento lírico. O que se propõe o ator romântico é deixar-se levar por seus genuínos sentimentos, sem racionalizar demais.  Opõe-se a qualquer tipo de equilíbrio racional como pretendiam os clássicos, como pretendia a ciência iluminista, no entanto sem se afundar no caos da crítica social e civilizatória que depois seria a ênfase modernista. O romântico acredita no progresso, é otimista quanto ao aprimoramento da sociedade e da nação, usa a natureza sem modéstia para suas finalidades , desde fonte de beleza até provedora da humanidade, e principalmente , diferenciando-o da ordem anterior,  busca o tempo inteiro a luz poderosa da subjetividade: suas palavras de lei são : fé, sonho, paixão, intuição, nostalgia,  natureza.

Aspecto curioso dessa obra  é o paradoxo evidente, de que uma vez negadas suas primeiras investidas, e  mesmo ciente dessa possibilidade, que pressupõe uma possível idealização do seu objeto, Werther não consegue se desvencilhar desse apreço desmedido por Charlotte, e cada vez mais constrói castelos de ar que de alguma forma já prenunciam o seu suicídio real ou simbólico pela impossibilidade de preencher o imenso vazio destinado á presença e à realização de sua grande paixão. Não fossem essas as duras rédeas do destino que impediriam por fim que ele se apropriasse do seu objeto, teria Werther usufruído da tão almejada felicidade na hipótese de seus planos de amor terem sido bem sucedidos? O saciar da sede do romântico pode ainda manter de pé a força necessária que, ao ser sublimada, pode criar no artista o desejo da arte?

Em julgamento a verve romantizada, platônica: subsistiria o olhar criador e sua desmedida capacidade de se apegar, de jogar luz sobre o outro após a sua consumação, ou o amor em seu estado puramente romântico é nada além dessa força potencial capaz de inflamar os espíritos, abrir a caixa de Pandora e liberar as musas que transformarão simples mortais em artistas por segundos, ou apenas enlouquecerão os cidadãos comuns em todas as épocas, classes sociais e nos mais diversos contextos tomados por uma paixão incomensurável para logo depois abandoná-los à sua própria sorte, no amargor da perda, uma perda dolorosa para o caso particular, mas de outra mão importante para o contexto da obra, que pode ser a perda de uma  não fruição  na hipótese de tudo dar errado, ou a consumação pálida de seus sonhos, percebendo somente após esse momento que aquilo não era nada além de uma doce ilusão e que o paraíso tão sonhado na verdade nunca existiu? O artista romãntico existe porque subsiste para além da vida real, a hipótese mais comum e previsível para realizações malfadadas de amores platônicos, mas sobreviveria ao contrário, no caso da investida ter êxito e seu objeto se dissipar por simples consumação? Ora, o desejo que acende a chama e ilumina a arte, em algum ponto pode ser sua própria ruína se satisfeito?

Nesse ponto, Casanova ou D. Juan poderiam ser a perfeita antítese de Werther, uma vez que para os sedutores personagens o amor não estava no objeto conquistado, mas sim na arte da conquista "em si mesma", e por isso, jamais chega ao fim. Uma vez terminada uma conquista, e usufruídos os prazeres inerentes, era hora imediata de partir em outras buscas. Werther, ao contrário, como romântico incurável, busca o "amor em si mesmo", supostamente contido naquela sobre quem depositou suas esperanças. É uma espécie de vítima de suas próprias projeções, que lançou sobre a amada. O que ele ama não é necessariamente ela própria, mas uma parte de si mesmo, que agora está exteriorizada no "outro", fazendo do "outro" algo não mais desconhecido, inabitável ou agressivo, mas a morada definitiva (e em certo sentido, artificial) do que  ama. Em última instância, alguém poderia perguntar: qual o amor maior do que aquele que temos por nós mesmos? Isso remete inclusive ao instinto biológico de autopreservação, que age por nossos meios, e fala por nossa voz. O que não quer dizer que o que sente é algo mesquinho, um interesse manipulador ou que prepare estratégias e jogos para seu próprio benefício, uma vez que aquele que se embrenha nessa força não mais possui a liberdade consciente dela dispor. Não se trata em hipótese alguma de fingimento, mas de um jogo de imagens como uma corte, uma apresentação. Sua transposição, caso ocorra, criará o "amor real" do mundo, imperfeito porque sujeito ao tempo e à vida, enquanto sua negação descambará para a arte, esquecimento ou tragédia, mas a permanência na intensidade em que se encontra dificilmente poderia ser sustentada.

Justamente por  consequência desse impasse é que o suicídio de Werther, única saída possível que o escritor  antevia para o conflito que tornou a vida do personagem  em ruínas, foi uma espécie de "saída de mestre" simbólica de Goethe, enquanto escritor, para um romance que em grande parte representou uma situação real vivida em sua longa e gloriosa vida. É como se ele,  o autor, dando voz ao personagem em sua peregrinação rumo ao infinito por meio de suas próprias mãos, conseguisse enfim sepultar de forma simbólica um assunto que para si era também nascido de um caso de amor mal resolvido, e em vez de se jogar no abismo pessoalmente, a metáfora de Werther imolando-se na "junção com o infinito" á espera de Charlotte, botava um curativo na sua ferida pessoal, de modo que ele pudesse enfim seguir sua vida e preservar seu coração para outras aventuras. Mas, se para Goethe essa questão estaria bem resolvida no futuro, como se pode denotar de sua rica biografia, plena de amores e grande pulsão de vida até seus últimos dias, já octogenário, como ficariam os muitos jovens Werther espalhados pelo mundo, cuja obra ao mesmo tempo retratou, e num segundo momento, influenciou sobremaneira, ao ponto de se chegar a acusar Goethe e o precioso livro como motivadores de uma série de suicídios juvenis acontecidos em terras européias nos anos seguintes à sua publicação? Por óbvio que seria obsceno e imponderado acusar tal obra desse tipo de responsabilidade. Seria como acusar uma caixa de fósforos por um incêndio, ou uma tesoura ou uma faca de cozinha por se tornarem armas temíveis nas mãos de um assassino.

Ora, como disse Sêneca, "Viver é acima de tudo, um ato de coragem". Por isso, o suicídio, na cultura ocidental, é tratado de forma ambivalente: ora representa, na visão do sujeito, o ato transgressor final  e vitorioso contra o mundo, contra a ordem que ele pretende rejeitar, ora representa uma espécie de fraqueza, a maior de todas, por enfatizar a falta de respeito pela vida em geral, negando em última instância aquilo que a própria centelha da divindade reflete sobre cada vivente, quando ele deixa de querer participar da mesma vibração. Saindo da órbita exclusivamente individual, matar-se é também ato coletivo, por conta das implicações familiares, sociais, fraternas e afetivas que encerra. Nessa percepção, ao contrário de significar a maior parte das vezes um extremo ato isolado de foro íntimo, o ato em si, está repleto de inter-relações numa teia infinita, posto que quando se mata a si mesmo, o ser atrai para o vácuo de uma morte abrupta, violenta e absurda toda a rede de afetos e pertencimentos que desde que nasceu habitam necessariamente ao seu redor. O suicida indiretamente mata também sua família, que além da perda e da dor do evento, fica maculada eternamente na órbita de suas relações internas pelo simples fato de constar que entre os seus , alguém teve esse trágico passamento. Mata afetivamente os amigos e convivas, pela ausência daí por diante, porque lhes impõe sua memória tirânica e terrivelmente dolorosa.

Ninguém vive isolado, mesmo que em seu mais obscuro desejo buscasse ansiosamente por essa posição. O exemplo do eremita na caverna, morando isolado no alto da montanha, tem dentro dele toda sua história social, algo do qual jamais conseguirá se desvencilhar. Sua formação e caminhada para tornar-se humano em algum momento jamais o abandonarão depois. Quase todas as religiões que já existiram desde a origem da humanidade, repudiam o ato em si, e Goethe certamente tinha plena ciência disso. Nesse sentido, ao repetir e tentar diagnosticar uma pulsão recorrente que à maneira dos belos mitos gregos põe tensão entre duas poderosas forças com reflexos na própria natureza pujante da vida, esse grande livro é  uma bela representação de uma situação tantas vezes vivida pela humanidade, exatamente por se tratar de algo icônico e transcendente em relação às suas eras históricas. Não há qualquer apologia deste ou daquele modo de vida , no "Werther", apologia desta ou daquela solução moral ou saída fácil, porque colocar-se como sujeito moral seria arruinar no artista o tanto de filósofo que ele possui, ou no escritor, o tanto de poeta que nele se alberga. Trata-se de perceber, como de fato o autor percebeu com intensa sensibilidade, ao diagnosticar precocemente o espírito poderoso de toda uma era na iminência de surgir (apesar de não haver unanimidade entre os historiadores literários, --como de resto nunca há unanimidade entre historiadores de qualquer maneira -- é notório o potente traço do romantismo que impregna os temas e os personagens nesta obra).

É algo da essência irracional do humano que em algum momento parece dirigir suas ações contra toda boa ordem plausível, que permanece naquilo que se convencionou chamar de temperamento individual, ou talvez seja um estado de espírito entranhado no pensamento coletivo do homem desde que este se fez presente sobre a terra. O  "amor platônico", retratado pelo mestre grego há dois mil e quinhentos anos atrás, já encerrava boa parte do que se convencionou chamar de "amor sem realização", que vive "apenas no mundo das idéias" ,para contrapor-se a Eros, o amor sensual, em geral. Contudo, é um enorme equívoco se confundir a conjunção dessas forças, que nascidas como potência, instinto e encarnadas, materiais, precisam ser sublimadas em seus contrários, em metáforas, em formas simbólicas próprias que foram criadas pelo romantismo para redirecionar a poderosa pulsão. Ora, não há como se iludir com as histórias românticas, apesar de sua grande beleza estética. É notório que grandes obras surgem dessa força quando redirecionada à criação artística, mas primeiro elas precisam existir, simples, como forças, ora cristalinas como o mais puro desejo de posse, ora turvas como a cobiça pelo que não se tem.

Por isso é muito mais fácil compreender os romãnticos a partir desse traço, pois não está  distante disso o sentimento que Werther nutre por Charlotte, quando a conhece. Bem assim, "Romeu e Julieta" de Shakespeare possui em sua essência a potencialização do objeto amado pela verdade evidente de sua não realização. O rapto de Helena por Páris, tema central da "Ilíada" de Homero, por sua vez mostra claramente o tanto de amor transbordante que levou  o troiano à maior loucura de todas as narrativas do mundo antigo. Ressalvadas as particularidades de cada caso, uma vez que na tragédia shakespeariana o empecilho de ordem política impede o casamento dos noivos secretos, no caso da Ilíada  é o mal-estar pré-belicista entre dois estados irmãos o que acaba desencadeando uma tremenda guerra, no caso de Werther o impedimento é de pura ordem afetiva, através de uma escolha deliberada da pretensa amante por um outro par (o que é também um traço forte do romantismo, porque se fosse na época clássica, a pretendente seria prometida a um noivo em um casamento de interesses, sem que ela pudesse sequer opinar), ainda que de certa forma continuasse guardando grande receptividade para com seu admirador nem tão secreto. Há uma certa ambiguidade no ar, quanto a isso, que o autor prefere não estender. Talvez o ar da realidade sobre o caso que ele próprio viveu? ou apenas uma saída de estilo para mostrar que afinal das contas, o protagonista não era nenhum lunático? Seja como for, Charlotte é descrita como uma boa alma e alguém de traços generosos. E é ela própria quem tenta advertir ao jovem apaixonado de que seu coração desmesurado e a inata capacidade de se apaixonar pelas pessoas, pelas coisas, poderia ainda deixá-lo doente, e ela não lhe diz isso  sem certa comoção, assim como não deixa de alimentar, por vaidade ou afeto, sua amizade e atenção durante boa parte do tempo.

Por lidar com essas forças do instinto mais puramente animal, embora operem efeito inverso na vida prática, ao contrário do que narram as aventuras dos grandes feitos heróicos que inspiram a humanidade, no caso particular do amor romântico, tudo funciona ao contrário: a sua não-realização é de fato a maior vitamina , um tônico que mantém o ente em sua constante e ávida busca do aumento da sensação de poder. Por isso tantos gênios foram tomados por suas musas no ápice de seus processos criativos? Não são poucos os que mostram isso em suas ricas biografias. Beethoven, Nietzsche, o próprio Goethe, Thomas Mann, Nabokov, Por outro lado, a realização física desse amor é algo que o sustenta ou o arruína de vez??  Há aqui também muito da luta vital entre instintos de preservação e de morte, como na mítica abordagem grega de Eros x Tânatos, tão bem reconstruída por Freud. O ente que ama, que se entrega na intensidade de uma paixão sem limites por alguém que ainda não corrobora, não partilha da mesma emoção, ou eventualmente sequer tem ciência de tal situação teria sua vontade saciada e sua fonte de inspiração cessada pela eventual posse abrupta do seu objeto??

Analisando-se friamente a questão à luz de qualquer psicologia, a  expectativa de ser amado é maior do que o amor que se doa a alguém? Ou no fundo, nunca se doa nada a ninguém, e todo ser que ama é no fundo um vampiro que busca sugar ao máximo a energia do seu par, na medida em que projeta-se inteiramente no outro, para depois tentar colher de volta justamente aquilo que plantou, e não acolher de fato a alteridade, algo que pudesse chegar como contribuição ou vivência exterior? Se for assim, então o apaixonado apaixona-se na verdade é  por si mesmo, seu mero reflexo projetado, e não acrescenta, por fim, qualidades reais à sua amada. É fato que ninguém se apaixona por alguém que não tenha qualidades, então não é por falta de qualquer beleza, carisma ou atrativos que a situação existe, ainda que esses critérios possam ser bastante subjetivos. Portanto, parece não estar no objeto em si o problema, uma vez que ele de fato tem qualidades, tem virtudes e beleza, mas na atitude do sujeito para com ele.

No caso de Charlotte, para o olhar de Werther, os diversos atrativos é o que não lhe faltam, e ele sabe disso. Ela é bonita, meiga e inteligente. Encantadora, numa palavra, além de muito jovem. Entretanto, no trajeto dessa percepção, até o fim de sua curta vida, ele acrescentará por sua própria conta e risco milhares de outros traços e essências que na verdade, em sua maioria são oriundos das suas próprias necessidades. Portanto, esse olhar apaixonado não é um olhar "em si", puro e revelador. É um olhar contaminado em algum grau com seu próprio desejo de que "assim fosse", e da qual Charlotte por fim não tem a menor culpa. Werther, como todo romântico apaixonado "cria" em grande parte aquela que será o objeto de todos os seus desejos. Mas persiste a pergunta incômoda:  o amor romântico, em toda sua enlevação ou potencial , uma vez que é oriundo em grande parte de uma projeção, subsistiria depois da posse? Poucos são os casos da literatura mundial onde o amor perfeito e acabado tenha virado história. É fato, segundo toda a literatura, da música e das artes em geral, que a descontinuidade desse tipo de amor é algo que sempre o fortalece, em vez de diminuir.....

Tomando emprestada a visão de Schopenhauer sobre o assunto, é de uma via  imprevista, uma espécie de ataque pelos flancos, que vem o golpe de misericórdia que encerrará definitivamente a questão colocada por Werther, na solução para o problema do amor romântico.  Imbuído do seu espírito terrivelmente cético e analítico, e familiarizado ao extremo com as novas descobertas sobre a biologia e a evolução humanas correntes do seu tempo, Schopenhauer, antecipando-se a Freud, Nietzsche e boa parte dos humanistas, sentencia: O amor romântico nada mais é do que o poder imenso da natureza direcionando a pulsão sexual, dourando-a em pérolas, palavras, doces, belos gestos, no culto e a na tentativa de posse da beleza para, ao fim, realizar a força animal e instintiva da procriação em benefício da espécie, mesmo que às custas do indivíduo. Dificilmente alguém dará uma sentença mais  realista do que esse duro diagnóstico. Mas seria ela a última percepção ou palavra sobre essa força ancestral que, como tantas vezes narrado na história ou na imaginação dos artistas, arrebatou tantos corações pelo mundo afora? A "saída de Schopenhauer", duzentos anos antes dos modernistas, parece ser o conselho de aprender a viver com o caos, e aproveitar ao máximo o que isso puder trazer de benefícios. Ele próprio desdenhava do amor assim posto, e era frequentador assíduo das "damas de companhia" das casas alemãs. Um mecanismo de substituição dos afetos por sexo? O desencantamento do velho ranzinza, seguindo à risca o ideal bacante, parece ter sido uma espécie de paródia precoce dos tempos modernos, ao pregar a libertinagem dos sentidos contra o aprisionamento dos sentimentos.

De  outra mão, independentemente de sua consumação na vida, não há porque se acreditar na suposição de que padecer de um amor romântico é, em si mesmo, um ato de fraqueza, de entrega, de renúncia a algum tipo de luta, enfim. Simplesmente porque falta realidade à idéia de que esse sentimento revelaria assim algum tipo de "fraqueza dos sentidos", de "futilidade" ou de "ócio burguês" das paixões românticas, como tantas vezes foram retratadas pelos tais escritores "realistas" e por  toda uma geração de pensadores forjada nas caldeiras do Marxismo ou do Positivismo, que procuraram alijar "tudo que é humano", toda subjetividade do conhecimento, para dessa forma conseguir chegar a um "conhecimento puro e objetivo do mundo". Tolice. Essa suposta fraqueza pode ser interpretada na verdade como força, mesmo com seus efeitos colaterais, pela potência que ela traz à vida, mesmo quando não se realiza. Falamos aqui da pulsão sexual, a libido, o ímpeto de vida, seja pelo erótico ou a pulsão amorosa sublimada em forma artística. De alguma forma, nao se possui o objeto do desejo, mas o desejo em si, ao incrementar-se á vida, torna-a muito mais intensa, mais plena em ser vivida. Esta é a nuance pela qual a juventude e precipitação de Werther não lhe permitiu desvendar.

Ademais, essa tal "objetividade do mundo" nunca existiu, nem no homem nem na ciência. Tudo que há são subjetividades, porque o olhar e o sentimento humano é que dão a dimensão do mundo. Justamente por isso, o que se vê sob o olhar sagaz de Schopenhauer é justamente o contrário. Ele não desdenha dessa poderosa força da natureza, nem faz coro junto aos demais "objetivistas" contra os superlativos românticos. Para Schopenhauer, esse exagero é  a espécie contra o indivíduo, articulando, planejando sub-repticiamente a sua realização. Ele apenas a desloca em sua análise e a reenquadra no seu contexto mais pertinente. Por se tratar de uma força poderosa oriunda diretamente da natureza animal do homem, e por essa força representar muito mais a sobrevivência da espécie em seus instintos e menos um grau qualquer de futilidade individual, é que se pode pensar justamente  no caráter extremamente poderoso e impiedoso das paixões, e de como elas possuem em si  mesmas uma intrincada lógica e uma razão de ser, tantas vezes suplantando as maneiras de se tentar contê-las por meios artificiais.

Enquanto Goethe "angelizou" Werther através do suicídio, porque criou através desse personagem-ícone, a eterna aura do "amor puro", não realizado, que vai aguardar sua amada no outro mundo, optando pela morte como saída, o olhar de Schopenhauer "desangeliza" os sentimentos de Werther, tornando-os humanos, demasiados humanos, como os de um corpo jovem respondendo ao mais saudável dos instintos, atendendo ao desejo de realização maior da espécie que fala através do indivíduo por diversas metáforas e que supostamente, não tendo sido alcançada sua realização por alguma razão, enseja que a suma frustração do objeto poderia naturalmente levar à própria ruína do indivíduo, ou por outro lado, uma vez saciados, na abordagem Schopenhaueriana revelaria enfim o tão reverenciado "em si" da paixão avassaladora como algo corriqueiro, para logo em seguida retomar seu status comum na órbita do dia. Em suma: Schopenhauer destrói a Quimera á luz do dia, ao opor-se contra todos e revelar seu maior mistério: a satisfação sexual, o gozo, a força primal da natureza, como antípoda ancestral do amor romântico, egoísta e incomunicável em suas crises insolúveis.

Antevendo talvez nestes traços algo do que viria a se consolidar em Nietzsche como uma das possíveis manifestações da "vontade de poder", o amor romântico, no seu ápice, tem o poder de aumentar terrivelmente essa energia individual que nada mais é que o poder da espécie refletido no indivíduo, e através desse "amor contido", sublimar de forma divina todas as energias criativas para que elas possam encontrar um canal de criação único, original. Na hipótese dessa força se realizar como natureza, o gozo será o primeiro caminho, e se esvairá junto com ele a criação. Na hipótese mais comum para o amor romântico, da sua não-realização, somente a criação artística representada por esse "plus" de energia vital no estado de graça e brilho propiciado pelo ente tomado pela força inexorável do amor, é que poderá servir aos propósitos da vida, sendo a obra de arte seu objeto final, mas sempre vinculada à vontade de vida, em algum momento.

Nesse momento, uniriam-se o grande e amado mestre Goethe, e seu discípulo rebelde, Schopenhauer, talvez? Superando as dicotomias aparentes pelas quais Werther é obrigado a se matar para superar a impossibilidade de realização da força coletiva manifestada individualmente por uma pulsão que prefere a morte á nulidade, Schopenhauer ao introduzir essas pulsões que obedecem diretamente a uma força maior da espécie, não ataca frontalmente Goethe ou seu amado Werther, mas justifica-o, sobremaneira, em outro nível de experiência do vivido.

Existe amor ou algum tipo de paixão sem sofrimento? Ou ambos estão intrinseca e inexoravelmente mergulhados no mesmo caldeirão que mistura destino e probabilidades, instintos e razão, e justamente o que caracteriza em ambos a possibilidade de vir a perder seu objeto é o que os faz tão arraigados em nosso espírito, a ponto de ameaçar a sua própria existência? o romãntico apaixonado apaixona-se exatamente pelo quê? pelo que designa como alma do ser amado, ao recolher de volta a si aquilo mesmo que necessitava e projetou nele, ele ama o corpo do outro como objeto de seu desejo, pretende a posse, e uma vez extravasando essa veia animal e seus fluidos, o que habita por trás esvaziaria-se conjuntamente para fixar-se em outro objeto não possuído? imaginando esse sentimento e simultaneamente habitando uma época estranha para seu desenvolvimento, essas perguntas não têm respostas reais, apenas imaginativas.

Werther era culto, tinha uma alma sensível e tato social, entretanto não era artista. A paixão por Charlotte o enlouqueceu a ponto de atentar contra a própria vida e procurar encerrar de vez o sofrimento, e neste caso o suicídio jamais deveria ser encarado como o foi pelas novas gerações alemãs, como um ato heróico. A saída da auto-imolação é puro escapismo, como também o foi o papel que o excesso de drogas ou bebidas desempenhou na criação de outros autores romãnticos. Heroísmo, por definição, é padecer da dor maior para que um grande problema seja superado, quando não há outra saída possível. Nesses casos, às vezes é auto imolando-se o herói para que um grupo, uma pessoa ou uma nação consiga alcançar aquilo que de outra forma não seria possível. No caso de Werther, a dor maior era a não realização do seu amor por Charlotte, e por isso não o amor em si, mas a incapacidade de sustentá-lo até o fim, o encerramento de todo sentimento pelo  suicídio deve ser encarado como ato de fraqueza e fuga que o faz sucumbir depois de lutar por um tempo. Sobretudo, um ato isolado e narcisista, uma vez que a própria notícia da sua última vontade foi cuidadosamente anotada numa carta a Charlotte, explicando suas razões em detalhes, e que deveria lhe ser entregue após o ocorrido. Apesar da beleza estilística pretendida, que fundou uma era, há uma enorme crueldade implícita no gesto, olhando-se por um viés pós-romãntico. Não há como ser esquecido por Charlotte tal gesto de anulação e perda, e a imposição forçada dessa memória é a última fala do personagem, intensificando a versão de que o amor puramente romântico jamais pode ser preenchido, suportado, ou até vivido em sua plenitude, porque o objeto de sua realização plena é uma criação. Charlotte tornou-se tão idealizada para Werther que ele jamais conseguiria ver nela quem ela realmente era: uma jovem simples, bonita e de certa forma bastante comum para sua idade. Jamais ela poderia ser a peça-chave para preencher o quebra-cabeças, o buraco negro que naufragava no espírito de seu idealizador.

Uma mesma situação, e diferentes respostas possíveis: Se para Werther (Goethe), a morte seria a forma final de fugir a um problema insolúvel, para Schopenhauer, com seu amargo senso de humor, o senso pragmático de vida, o refinado intelecto a descoberta redentora de que a força que subjaz às paixões humanas nada mais é do que o puro instinto sexual metamorfoseado em belos gestos , parece lhe dar uma vingança pessoal sobre algum provável amor juvenil mal resolvido. Arrisco supor que apenas uma alma de artista poderia superar o duro problema de forma positiva. Werther morreu porque sufocou diante da beleza. Se a pessoa que é o objeto dos desejos, quer sejam eles fantasmagóricos e idealizados como sentia Werther, ou instintivos e sexuais como pensava Schopenhauer, não é alcançada de alguma forma, sufocando naquele que tem por ela tais sentimentos, matando uma força de tal magnitude, apenas a arte poderia redimir tal ação, ao transformá-la em musa. Uma alma artista deveria saber por instinto o ponto mais alto de sua trajetória, agradecer aos deuses  pela possibilidade de poder sentir essa afecção de maneira tão intensa, e aproveitar essa poderosa sublimação para a criação.

Werther, cumprindo sem saber, um destino Schopenhaueriano de representar um indivíduo dominado pelo desejo instintivo da espécie, não é nem tanto animal nem tanto espírito, e se perde sem responder ou consolidar a única maneira possível de sobreviver ao impasse, o porquê da ensandecida busca da tal alma gêmea, algo simultaneamente tão artificial á vida e tão caro ao cerne do sentimento romântico , ou a sensação através do qual se busca preencher com apenas um indivíduo, do sexo oposto ou não, o  longo vazio existencial da alma que foi descoberto justamente quando um encontrou-se com outro pela primeira vez?? Nada mais cru, mais cruel, mais duro para sepultar um século de luzes, empertigado e arrogante, um século iluminista erigido à supremacia do pensamento humano pelas luzes das artes, da ciência e da filosofia., do que matar-se. A racionalidade inquestionável até então segurava as rédeas. Na nova ordem, contudo, nesta espécie de tentativa de retomada de um Renascimento Italiano tardio, a par das mudanças que ocorriam simultaneamente em outros campos do conhecimento, morria algum tipo de "humanidade ideal" para renascer o temido tipo "homem contemporâneo".

Agora, recolocado definitivamente em seu papel mais animal do que divino, para legitimar o sentimento secular da reinterpretação do  mundo. Entre o desaparecer da vida material como única saída para a grande angústia de um tipo de amor fantasmagórico, amor impossível porque não-real, amor-fuga de qualquer realidade, amor-projeção do amante romântico e idealizador, que visualiza seu próprio desejo em forma de delírio uma espécie de halo que envolve o ser amado (mas que o impede de visualizar quem de fato "é" o o ser amado, em sua essência) em suma, esse amor não realizado por Werther e , diametralmente oposto a ela, a animalização pura e simples de Schopenhauer do instinto amoroso por saber-se agora das forças que agem no inconsciente do indivíduo e na tendência natural da espécie, essa força capaz de fazer encenar todo um teatro dos costumes, se há uma solução do impasse clássico colocado pelo romantismo em face da realidade sólida da vida, o amor para superar esse contexto deve  tornar-se enfim  um amor de artista (situação que será muito encampada por Nietzsche, posteriormente, ex-aluno de Schopenhauer e grande admirador de Goethe), pois só a criação é realmente capaz de sublimar desejo, dor e elevação num mesmo plano material, coisa que a vida por si só jamais fará. A vida, enquanto palco neutro para comédias ou tragédias, sequer pode tomar partido. A natureza tudo contempla, sem interferir. Se não somos artistas e assumimos para nós o humano, como suportaríamos estar-no-mundo sem perecermos diante da beleza ou da completa comoção dos sentimentos? Esse poderia ser o mote principal e talvez maior influência do "Werther": para superar o sofrimento  urge amadurecermos e nos tornarmos artistas , por um lado, ao conseguirmos transformar a potência do sentimento de vida despertado pelo pulso romãntico em sublimação criadora, ou na outra hipótese, quando esse pulso ameaçar não fluir mais porque enregelou-se em projeções idealizadas insolúveis, lembrarmos a liberdade profeticamente pós-modernista de Schopenhauer ao  dar nome às pulsões instintivas muito antes de Freud e Nietzsche, e nos adaptarmos à fruição simples e direta do amor mais carnal possível. Numa palavra que é remédio: o gozo e a horizontalidade dos sentidos contra a vertical e enlouquecedora melancolia romântica.
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publicado originalmente em "O Aleph", em 12-04-2015