As Ruínas do Olho




            Céu alto e limpo, cirros aleatórios no amplo e distante azul. Pontinhos pretos em formato dáblio, girando em círculos largos e concêntricos, baixando como uma espiral, lentamente, a cada vez mais perto da visão. O sol muito quente de uma manhã de verão não respeita as raras gotas de orvalho caídas durante a noite sobre a grama e os galhos das árvores. Ele as evapora impiedosamente, com certo prazer. Há uma previsibilidade que me chama a atenção naquelas pontinhas pretas em formato dáblio, lá no alto. Aquelas asas pareciam, na verdade, pequenos mustaches voadores. Sim, eram como bigodinhos de Dali voando disparatados. A cada giro concêntrico, elas vão se tornando maiores. Urubus! Muitos. A maioria não bate muito as asas, apenas plana sobre a golfada de ar quente que sobe pela encosta criando uma nuvem de vento parador ascendente. Enorme perícia dessas aves, que giram em grupos geométricos, calculados. Abrem o círculo, por um segundo sugerindo uma fuga, para logo em seguida retomar o curso fechado em direção ao centro imaginário que só eles podem saber com perfeição. Trabalho em equipe, levado a sério, como a cerimônia do chá para os japoneses: aperfeiçoar um gesto simples, cotidiano, comum aos mortais, como o simples ato de beber chá, até que se torne, como metáfora, a magnânima arte de enfeitar e ritualizar a vida. Um simples ato de escolher, preparar e depois pegar uma xícara com infusão e levar aos lábios, agora não mais um simples ato, mas extremamente enriquecido porque entroniza sua própria história, e faz do conjunto de ações um evento com remissões infinitas à trajetória humana sobre o planeta. Assim os urubus, indo e voltando, em espirais geométricas sob a inclemência do céu azul de sol.

Minha vista vai embaçando, a cabeça doendo muito. Não tem som nenhum, mas sinto um calor enorme nas pernas. Uns vultos se mexendo lentamente ao meu redor. Há pessoas falando alguma coisa, mas não consigo ouvir, ao longe. Lembro-me de uma curva, um barulho de pneu no asfalto quente e mais nada. Há fumaça também, meus olhos lacrimejam. O que dizem essas pessoas lá fora? Falam, gesticulam, mas não ouço nada. Um deles vem agora, mais perto, e bate na porta do carro, com uma barra de ferro.  A fumaça fica mais densa e começo a sufocar. Quebram o vidro lateral e tentam puxar meu braço. Estou preso em alguma coisa. Não consigo me soltar. Também há alguém ao meu lado, aqui dentro, mas não consigo ver quem é. No fundo, perto do pára-brisas, há um urso de pelúcia queimando. Acho que é dele que vem essa fumaça toda. Sufoco.

Estou nesse jardim de grama azul, perfeitamente aparada, e seus canteiros são milimetricamente esquadrinhados. Corro sem fazer esforço. Consigo voar, quando quero.  Há cavalos soltos nesse pasto enorme sem nenhuma cerca. Digo que tenho sede e  Moira me traz uma taça de vinho. Bebemos no sofá macio de couro velho da sala, enquanto na tela gigante passa um filme noir. O criminoso já seduziu a vítima e falta apenas concretizar a ação perfeita. Sem pistas, sem testemunhas, está só, com o objeto de sua obsessão. Aproximo-me um pouco mais da tela, pra sentir o olhar dos personagens. A vítima, por fim, não teria seduzido o algoz? Filmes... a exibição acaba subitamente, e estamos em Paris, e quando vou levar a taça à boca, ela vira um tubo que é forçado por minha garganta abaixo, sem anestesia. Dor no peito. Há luzes fortes e quentes no meu rosto, sinto ainda muita dor de cabeça e pessoas de touca me sacodem freneticamente. É ela, Sandy, novamente, me dizendo que sua vida só tem sentido se for ao meu lado. Ela me dá um beijo molhado e evanesce em poeira enquanto caio num abismo sem fim. Grito, várias vezes, mas minha voz não sai da garganta, estou completamente rouco.

As aves giram mais e mais no céu azul, e agora já se pode ver mais nitidamente a ponta das asas, abertas, o formato mais largo do dáblio, penas inteiramente negras próximo do peito, com um prateado cinzento nas pontas, como se fossem cinco dedos a possibilitar a melhor regulagem do vôo. Enquanto as penas mais grossas do corpo de asa sólida e aberta recebem o influxo do vento e seguram o corpo no ar, suas penas pontais nas duas extremidades dão a sintonia fina, são os lemes permitindo um melhor controle dos movimentos rápidos e da direção. Como são aves carniceiras e não de rapina como falcões e águias, carecem das penas especializadas da cauda, que no vôo ligeiro garantem primeiramente uma apuração da descida sobre a presa em movimento, e quando já muito perto do chão, abertas subitamente, formam um leque com a missão de pára-quedas refreando o ataque depois das garras se cravarem no alvo, para que que o corpo não se espatife na terra. 

Girando a cabeça à esquerda e à direita pra fazer um último mapeamento do ambiente ao redor, agora vejo a carranca dos abutres. O bico adunco e em alguns deles a crista pendente para um dos lados. Bicho feio do cacete! Mais um pouco, e as asas agora começam a se fazer ouvir, e o que antes parecia um enorme círculo aberto, agora fecha-se cada vez mais e os galhos mais altos e secos das árvores próximas polvilham-se, gradativamente, com as figuras corcundas, as  auréolas de penugens em volta da base do pescoço em formato sinuoso. Ouvem-se os primeiros grasnados, dessa manada de seres alados que até agora há pouco planava em silêncio sobre os ventos temperados de maio sobre o morro. Súbito, um gosto enjoativo e ferroso de sangue me invade a boca. Coágulos expelidos à força. Daí que uma dor vindo de algum lugar abaixo do meu corpo dá os primeiros sinais. Sim, estou sentindo dores. Mas algo está errado, porque não consigo me coçar, ou me tocar, quando penso em levantar os braços. Continua doendo, perto do estômago. Uma dor em pontadas, que parece coceira tem hora. Penso se não comi nada errado ou estaria talvez com dor de barriga. Não me lembro. Tento colocar a mão na ferida dolorosa, com suas picadas, mas não consigo. O gosto de sangue fica mais forte. Sinto sede e muita dor de cabeça também. Imagino se ainda tem vinho na taça, peço a Sybil que me sirva mais uma, e não vejo ninguém mais na sala. Nem a tv. Tento virar o pescoço, com dificuldade, e aos poucos percebo que a terra não deixa. Os abutres cercam as árvores ao redor, pendurando-se barulhentamente em seus galhos cada vez mais próximos. Disputam a melhor posição do cinema para ver o protagonista a se afogar em seus líquidos. 

Alguém me arrasta pelo asfalto quente, e minhas costas doem, minha roupa está molhada, enlamaçada e acho que tenho um barril de água na barriga. Um barril furado, pelo jeito. Sigo arrastado, me arranhando nos cacos de vidro espalhados. Apesar de tanta água, minhas pernas parecem pegar fogo, mas não vejo nenhuma chama. Muita dor de cabeça. Começo a cuspir, minha barriga dói, e quando cuspo, sai um pouco de sangue, meus dentes da frente estão quebrados. Muita fumaça. Pessoas iniciam uma esdrúxula contagem em voz alta,  ao meu redor, como se fosse a moça do aeroporto chamando para um embarque a qualquer momento. A pressão no peito.  E de repente é Moira novamente, quem me traz mais vinho. Um vinho doce, inebriante, e a um gole já estou alto. Ela está completamente nua, e o bico dos seus seios fantásticos me roçam a boca, alternadamente. A bunda sólida se encaixa sobre minhas coxas, e ela escolhe uma das pernas e se mexe, para frente e para trás, cavalga suavemente. Sinto seu cheiro doce, irresistível, subindo na fricção do seu sexo sobre minha coxa. Luzes fortes na cara, holofotes, pessoas estranhas e a contagem infernal que nunca para. Vomito com força todo o vinho que acabei de beber. Que desperdício!

O sol cada vez mais forte vai me cegando a visão, e a esta hora não consigo enxergar mais com muita nitidez as alturas. Não há mais aves no céu. Estou plantado na terra, todo meu corpo como uma cenoura num canteiro, tenho apenas a cabeça para fora, sinto enormes dores do peito para baixo e não posso me mover, porque meus braços também estão enterrados para baixo, ao lado do tórax. O real é o que se vê? O que se pode tocar? O que se sente em termos de dores, tesão, gastura? A imaginação é o real? Suspeito viver em realidades múltiplas, sem um plano contínuo, onde tudo é multifacetado. Não é como num filme, não consigo ver o diretor, os figurantes, as claquetes, o staff. Sozinho na cena, sem roteiro, com a sensação de tê-la repetido diversas vezes, cada uma com um resultado diferente. Não me lembro como vim parar aqui. Não me lembro nada a não ser os últimos minutos, onde havia um céu azul polvilhado de negros formatos dáblio em movimentos concêntricos. O gosto de sangue não sai da boca e consigo com algum esforço cuspir uma placa de sangue vermelho escuro, coagulado. É exatamente neste instante que sinto uma aguda torcida na minha orelha. Um abutre, mais ousado, aproximou-se pelas minhas costas e tascou uma bicada na minha orelha, tirando um bom pedaço. Xingo o desgraçado com todas as minhas forças, grito e assusto um pouco a ave, e alguns outros que estavam mais próximos. Eles se afastam um pouco e retomam o galho da árvore mais próxima, grasnando barulhentos e ficam observando. Têm todo o tempo do mundo, e têm a necessária paciência atávica para saber a hora certa do almoço. Aliás, acho que eles já sabiam disso desde que minutos (ou dias?) atrás planavam naqueles círculos infernais contra o céu de outono. O ar está meio turvo pela evaporação do calor da tarde.  

Surge Melina, de trás da casa verde, seu rosto é lisérgico e ela traz muitas flores nas mãos. A pele é branca e opaca, contrastando o vestido azul escuro de rendas, muitos colares de contas e mandalas sobre o pescoço e os longos cabelos, louros e soltos, espalhados displicentemente sobre o rosto. Ela deita-se na grama, rindo e cantando alto, seus cabelos são finos e longos como a plantação de trigo perto da colheita, e ela canta uma canção de que me lembro remotamente... 

A garota! Deus, a garota...! Preciso salvar a criança antes que as chamas a peguem. Ela me parece familiar, a menina, onde foi que a vi antes? Tento me mover, mas estou preso, as pessoas lá fora fazem barulho, minhas pernas estão quentes, a fumaça me sufoca e meus olhos queimam. Não consigo gritar, não enxergo quase nada e minhas costas doem enquanto sou arrastado pelo chão duro de asfalto. Tento me mover de volta ao veículo, mas vejo apenas uma explosão enorme, e todos ao redor pulam no chão. Ainda não ouço nada, e tudo parece um filme em câmara lenta. Compreendo agora, eu era o diretor, o ator, o figurante e meu próprio dublê para as cenas duras. Dói tudo. Fecho os olhos, em desespero. Estou só no mundo, todos estamos. Cada um em seu próprio filme.

Meu pescoço dói por causa da posição, e eu remexo pra tentar uma impossível acomodação enquanto o sol da tarde começa a torrar minha pele do rosto. Melina desaparece. Àgua! Maldita sede que já me racha os lábios. Outro urubu passa um rasante barulhento de asas negras sobre minha cabeça. Eu grito como um louco, usando o resto de minhas forças, espantalho amarrado com braços inertes eclipsados sobre a terra. A criatura alada recoloca-se desajeitada sobre um galho seco, bem à minha frente. Posso ver seus olhos sem fundo, brilhando, escuros e ansiosos sobre mim, enquanto alisa o bico de um lado e outro do galho, como fazem as aves carniceiras, amolando a faca antes do banquete. Emitem, uns para os outros, uns ganidos guturais, de vez em quando, como combinando a melhor hora para o ataque. Sybil também chega, deita-se na grama ao lado de Melina, e beijam-se, suavemente. Melina acaricia a nuca e os cabelos curtos e negros de Sybil, seu vestido largo de flores desaparece sob as  mãos hábeis da amiga, descendo feito aranha sobre a teia de penugens e a grama alta apara por um tempo a multidão de desejos que renascem nos olhos de um espectador feliz, com o rosto deitado ali a poucos centímetros daquela cena irretocável. Corta ! 

O armazém, a fumaça. A dor na orelha. A tese suicida das químicas contemporâneas, todas elas, sejam as vendidas em farmácias e regulamentadas via laboratórios bilionários ou veiculadas pelo amigo-irmão ali da esquina: uma dor lancinante poderia ser substituída por memórias de prazer? Tentava agora colocar em prática esse preceito. Uma hipótese quase metafísica, talvez de origem Hindu ou Veda da vida me passava pela mente, a busca de uma memória perdida de prazer agora, na emergência, substituindo as misérias sentidas enquanto a pele queimava na parte de baixo. A dor na  barriga torna-se insuportável, e mais insuportável ainda é minha impotência em mover meus braços. Lembro dos toques na pele, as mãos sobre pernas se abrindo, os pelos dourados de Melina se eriçando. Sua boca perfumada mordendo meu peito, suas unhas sobre minhas costas. Provavelmente um reposicionamento ou um recolhimento do corpo curvado agora diminuiria minha dor. A sede cada vez mais fundo na garganta machucada e seca, e o gosto de sangue grosso na língua desidratada. Não engulo mais a saliva. Dói. Lembro-me dos cheiros, a tara de acordar mais cedo, com o rosto entre as coxas de Sybil, ela despertando em risadas úmidas. Alguma coisa sobre o barulho de tiros perturba a paz e me vem na memória não tão distante. Carros derrapando, tiros, fumaça e gritos. Perco a idéia de prazer, que me escorre de súbito pela memória fraca e faminta. Olho a grama onde há pouco estava com |Melina e Sybil, e de repente não há mais ninguém lá. A grama está amassada num grande espaço ao redor, e não existe mais aquela cobertura vegetal do capim gordura vermelho em pêndulos, típico do início de inverno. A única coisa vermelha que há é um rastro partindo do capinzal para dentro da área devassada, onde está esse galpão que fede gasolina, onde estou eu e onde aguardam pacientemente esses inóspitos abutres pendurados nas árvores secas. O que resta, depois dessa sequência inominada de pequenos acidentes, é uma falta de memória sufocante que me traz apenas pedaços de um quebra-cabeças que não consigo juntar, lembranças de momentos felizes de não sei quando, e uma dor extenuante no estômago.

Sim, existem outros fragmentos gravados e que não sei como poderão ainda ser editados a essas horas. As picapes chegando em alta velocidade. Os capangas de Benito saltam atirando em tudo e todos. O “Olho”, a maldição deste lugar. Barato demais para não desconfiar, eu devia saber. Cemitério Asteca, visões noturnas de espíritos e cactos, me avisaram antes que nada aqui dava certo. Ponto de trabalho escravo e venda de índios nos tempos do domínio Espanhol. Matadouro clandestino, criação de gado, plantação de marijuana, nestes novos tempos em que os gringos ditavam as leis não escritas. Disfarçavam-se de nativos para despistar as polícias, mas todos, sem exceção, eram americanos. Muito dinheiro, muitas armas, não tinha como competir. Dominavam tudo, num raio de mil quilômetros ao redor. Eles vieram um dia sem aviso e mataram primeiro as criações, incendiaram o paiol. Os avisos que cansei de dar a Melina sobre não tentar enrolar esses traficantes da fronteira. Lucro demais cega. Eu sei o que estou fazendo, ela disse. Não me encha a paciência. Com pouco tempo teremos a grana suficiente para mudarmos pra Madrid. Faltam apenas meia dúzia de carregamentos e estaremos na estrada. O gosto dos seios brancos de Sybil ainda na minha boca. Sorrio, enlevado, enquanto Melina a abraça. E a boca cospe sangue, e não há mais ninguém aqui além desses malditos abutres.

Girando com muita dificuldade, num movimento dolorido de pescoço, consigo identificar à minha direita um jipe camuflado, aqueles de uso típico das forças armadas. Há um cheiro muito forte de gasolina vindo  de um barracão situado a uns vinte metros à minha frente. À esquerda apenas carcaças de outros veículos militares mais velhos, abandonados às intempéries. Fragmentos surgem aos poucos; discussão com Melina, algo sobre usar menos a substância, vender mais e usar menos. Deveríamos saber com quem estávamos lidando. Sybil aparece novamente, cabelos desgrenhados, rosto suado e aos berros com Melina. Há uma criança, também, não me lembro o nome, não me lembro onde. Ela é também loira, tem quatro ou cinco anos e os olhos de Melina. Fala, me acaricia o rosto, diz suavemente alguma coisa que eu não consigo entender. Me mostra um bicho de pelúcia que acabou de ganhar. Eu fecho os olhos e ela se vai. Acusações sobre expor demais o negócio, chamar demais a atenção na vila, mostrar mais do que devia sobre a fazenda. Nosso trio afetivo e comercial ameaçado como nunca, depois de dois anos de tranquilidade. Plantava-se, colhia-se, e no intervalo entre a comercialização de uma safra e outra, da substância, era só amor e usufruto da vida. Corpos, aromas, comidas, vida livre e amor mais livre ainda. Contato sagrado com a natureza, nesta estância privilegiada. Cachoeiras, piscinas de águas transparentes, banhos nus, sol persistente durante todo o ano. Safras gordas e ricas. Nós, cada vez mais ricos... Outra agulhada na orelha direita!, esse abutre dos infernos sequestrou mais um pedaço de orelha!. Nem sangrou muito. Acho que por falta de líquido, a linfa solidificou-se e agora não circula mais. Me extermino aos poucos, mesmo sem os abutres terminarem sua tarefa, e no meio de tantas luzes na minha cara, ferragens retorcidas e fumaça negra por todo lado, gente socando meu peito e um tubo agarrado na garganta, ouço ao fundo uma vitrola tocando Nina Simone, em "My baby just cares for me".

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pub orig "Castelos de Ar' Centauromaquias - 14-06-16 , reg AVCTORIS livro de contos "REINE SOBRE MIM", dezembro/2018