Litoral



Ela disse aquilo com a cara mais limpa do mundo, no rosto seu famoso sorriso irônico com os olhos chinezinhos quando ria. Criança levada, em corpo de mulher. Ele, surpreso com a revelação, sem nem tentar fingir. Mas então, sua maluca, quer dizer que lá no barzinho… e na pista de dança, você o tempo todo... !? Ela ria mais alto, sem se conter e fazendo que sim com a cabeça, e ele ainda meio aéreo: mas sem nada, nada? Desacreditava. Ela confirmava, sim, sem nada por baixo. Só de mini-saia, seu bobo. Homem não repara, mesmo Saí assim de casa hoje à noite. Bora, então? Pegar ou largar?  Eu topo, ele disse, sem tempo pra pensar, mas mudando um pouco o jogo deu as chaves nas mãos dela, também sorrindo e desafiando. Liga o monstro aí, vai. Hoje você pilota. Apanhada no susto, ela contudo não consegue disfarçar o brilho nos olhos. Vinha aprendendo há um tempo, mas ainda sem motos grandes. Pega as chaves nas mãos dele, dá uma tremidinha de ansiedade, um arrepio  na espinha e vão para o estacionamento. Ela para ao lado da moto, passando as mãos pelo tanque, pelo guidon , contemplando o corpo de metal ainda frio da noite.

Saíam do clube, madrugada beira de praia, meia estação, mas com a noite já bem quente. Estrada deserta a essa hora, entre duas e três da madrugada. Lua cheia no céu gigante, pista lisa e limpa de asfalto à frente por quase quarenta quilômetros até retornar ao  bosque de casuarinas onde estavam acampados. No trecho, apenas a lua e o mar por testemunhas. Ela encara a missão e senta-se na frente da moto. Respira fundo, dá o start no botão, sentindo o motor roncar forte e a vibração  subindo pelas coxas até a barriga. De novo, o friozinho na espinha. O cheiro gostoso da gasolina queimando recende, excitando os espíritos. Ela acelera, com a moto parada, sentindo a força. Ele se senta atrás, encaixado no banco largo do carona . O  motor de mil e duzentas cilindradas treme na noite de praia, e a brisa noturna do verão sopra gostoso na madrugada. Ele dá umas dicas básicas e depois silencia um pouco, para deixá-la mais à vontade com aquele animal arisco. Ela não decepciona. Leva jeito.

Deixando o estacionamento do pub, entram na pista, ela vai acelerando por uns minutos, devagar e atenta pra fugir pelo asfalto novo da beira da cidade e do excesso de luzes, casas e carros. Vem o vento bom invadindo tudo sem permissão. Segue  em paralelo à praia, até ganhar um pouco mais de estrada, acelera pra sentir a potência por uns quilômetros, depois estabiliza, diminuindo o peso da mão direita. Põe na marcha lenta e se encosta mais um pouco à frente, para sentir a vibração que reverbera do motor sobre o tanque de combustível, ainda frio de sereno. Sem nada por baixo,  aperta as coxas sobre o grande motor, o prazer do toque ao encostar-se no tanque, pele no metal, como montando nua sobre um touro bravo. Ela apenas de mini-saia de couro nobuck cinza, sem nada por baixo,   camisa preta de malha de algodão, botas de  cano alto e jaqueta motociclista de couro surrada por cima.

Afastados da rua, já na estrada, ele a abraça por baixo da jaqueta, avança as mãos embaixo da camisa de malha rocker. Ela dá um gritinho e acelera mais a moto.  Ele sente a pele dela se arrepiando e beija seu pescoço, ela geme no reflexo,  --a umidade do mar no toque do vento --, ele não solta o abraço e sente os bicos dos seios duros. Ela, de início  tesa, porque precisava  pilotar a moto gigante, vai aos poucos sentindo a estabilidade das rodas largas na estrada reta e se soltando quando as carícias ficam mais quentes.

Súbito, ele pede para que ela pare. Ela reduz, joga pro acostamento. Estrada totalmente vazia. Abre a tampa do capacete e pergunta, rindo: que foi? entre curiosa e assustada. Ele diz nada. Ele pede apenas que ela tire tudo, jaqueta, t-shirt, jogue tudo no bagageiro e continue pilotando nua, somente de capacete e  botas . "Maluco!", Ela  diz e ri, ainda meio nervosa, mas num segundo aceita e tira tudo rapidinho, subindo  de novo na moto, e eles continuam. Capacete e botas, somente. O banco tinha esfriado um pouco, pelo sereno, ela se arrepia quando senta de volta, direto no couro macio. Aperta-se entre o tanque, à frente, e as coxas dele, atrás. Ele nas calças de couro pretas.

 Acelera novamente no calor da noite larga, pressiona mais as coxas e sente o poder do vento acariciando generosamente todo o corpo num pulso elétrico, penetrando invasivo entre as pernas, a língua fresca da noite que vem lambendo por baixo  da carenagem. O motor vibra na marcha lenta e ela gosta, ele trepida um pouco, ela solta-se um pouco mais no guidon.  Na adrenalina da coisa toda, absorve uma sensação de prazer e liberdade que jamais sentira antes. Sente-se como se estivesse num comercial de motocicletas da tv, com as paisagens, a moto e a música bonita tocando ao fundo. Tudo quase igual, só que agora era uma propaganda para maiores. Pelada, motocando praia afora em plena madrugada. Ela acelera progressivamente até cento e vinte e não consegue conter o grito de “uhuuuuuuuu!!” caralho, porra! esse negócio é massa!! dentro do capacete. A ventania aumenta à medida em que acelera, o vento a essa velocidade torna-se lascivo, como muitas mãos que amaciam sua carne, acariciam a moto com volúpia, os bicos dos seios duros, a pele arrepiada, o vento atravessa todos os poros sem permissão. Apenas capacete e  botas como vestimentas, nada mais, clima noturno praiano testemunhado pela lua numa noite quente.

A brisa marinha a tocava como duas mãos sedosas, conduzindo o vento nos cabelos e o arrepio de pele, daí passava a um grande beijo, no início leve, beijo de aprendiz, tornando-se logo em seguida uma língua  curiosa e exploradora se espalhando, ora nos seios, ora na barriga, o friozinho-brisa  energizando e a pele inteira se eriçando, mordidinhas de vento picando nos bicos dos seios enquanto  o motor seguia roncando na noite. Acelerava fundo, a moto vibrava mais, então ela apertava mais as pernas sobre o tanque pra sentir a vibração por baixo e o aroma forte de gasolina que recendia Era como se montasse um touro no pelo e o domasse na unha. A umidade da noite. Acelerava, mantinha, depois voltava à lenta, durante um bom percurso, controlava o ritmo, acelerava e diminuía como a orquestração de desejo, natureza, e a presença dele por trás, agarrando sua cintura e beijando seu pescoço, iam elevando cada vez mais seus batimentos, ela sentia aos poucos o corpo se dissolvendo num toque de puro vento. 

Ambos estavam na pista, agora em marcha lenta, protegidos e incógnitos pelos capacetes, rodeados de casuarinas de ambos os lados da pista. Ela, totalmente nua e  excitada em suas  botas longas de couro preto  gemia cada vez mais alto, ofegante, sua voz rasgava bonita a noite serena. Ele de jaquetão motociclista,  quase estourando dentro da calça meio apertada de couro, seguia encaixado no banco do carona. O perfume dos cabelos dela vindo no vento de encontro ao seu rosto, entrando violento em suas narinas  junto com um tantinho de suor remanescente da dança de alguns minutos atrás no Saloon Rock Bar. Um misto de suor com hálito gostoso de cerveja, que ela tinha quando bebia e ele adorava. Ele deslizava as mãos pelo seu corpo, descendo do pescoço à cintura, depois subia até os seios, contornava delicadamente seus mamilos e súbito recorria com os dedos à umidade entre as pernas , lambendo depois, cada dedo vagarosamente.

Os sons agora eram outros, absorvidos pelo espaço aberto da noite erma, um céu coalhado de estrelas. Não falavam mais, a essas alturas, apenas sentiam o clima, explorando a presença recíproca de dois perdidos na noite. Ela desistira, enfim, de teorizar o amor. Não queria mais aquilo. Buscava simplicidade e prática, o toque, o tato, a realidade. Depois de séculos pela vida afora, desde criança, tantos condicionamentos, -- sendo mulher, aparentemente era tudo mais difícil nesse sentido , podia sentir nos ossos— a série aprendida de não pode isso, não pode aquilo, homem é assim, tem que ser assado. Desistiu de teorizar sobre o amor, porque na prática tudo na vida sempre foi o contrário. A vida, em si, é uma hipótese absurda, a bem dizer. Buscava agora as imperfeições, em vez de tentar como sempre evitá-las ou controlá-las. Eliminá-las enfim. Não há como ceifar as imperfeições, sejam as próprias ou alheias, se as artes de amor pressupõem o reconhecimento da diferença que cada um carrega. E diferença é defeito. Sempre. Ela queria o cheiro da pele, o gozo , o corpo. Pelo menos há um ano nesse novo relacionamento, o mais aberto que vivera até ali, e ao que tudo indicava, parecia ir muito bem. Não tinham outro compromisso além de estarem juntos quando bem queriam, sem ter que dar satisfações ou guardar rancores e mágoas. Desse ponto de vista, de não nutrir outras expectativas, -- sim, pela primeira vez, -- um amor perfeito, lavrado nas imperfeições de quem ama sem tentar definir ou entender a tristeza do conceito.

A moto seguia na pista, ela gemia gostoso com as carícias do vento vindo tocar seu sexo e o parceiro segurando-a num quente abraço por trás. Ele se excitava tremendamente com a maciez firme do corpo dela, sentia a textura do cabelo, o restinho de suor cintilando sobre a pele  no contraste do brilho forte da lua imensa. À esquerda, apenas restinga fechada, à direita o mar aberto, com praia e casuarinas, por mais trinta quilômetros ainda de asfalto deserto e limpo. A descarga da moto enche o silencioso espaço noturno longínquo com a  vibração característica dos motores  de alta cilindrada. Moto antiga customizada pra chegar no estilo, o cheiro de gasolina em marcha lenta vem forte e cru, no nariz, o que a deixava ainda mais excitada.

Gostava de pilotar, ela, desde criança, mas por insegurança  ficava entre sua Bizz e a 300 cilindradas do irmão.  Nada como assumir o poder no braço. O sorrisão da garota mostrava como ela se sentia empoderada com aquele ronco forte vibrando entre as pernas ao seu comando. Ela sente chegando aos poucos, o motor tremendo entre as coxas apertadas sobre o tanque, começa a ofegar, a mão pesada  no acelerador. E é justo nesse instante, quando a coisa já está bem quente, que vem apontando um farol intermitente do lado contrário da pista, um quilômetro ou mais à frente. "É um carro", ele disse, mas disse também pra ela não parar. Pode seguir, ele diz.  Ela vacila, mas ele vai me ver, ela responde e trava. Ele ri e repete não pare agora. Continua! vai por mim, ele pede apenas para que ela diminua  um pouco o acelerador. Ela topa, já estava ligada demais pra parar agora, eles prosseguem sem interromper o baile. Ele endoidava com a adrenalina e o cheiro do seu sexo misturado ao suor e ao hálito de cerveja vindo no vento, tudo isso com essência de gasolina na noite molhada. Continuava com ritmo forte massageando-a enquanto o  carro vinha de lá, se aproximando cada vez mais rápido. O limiar do farol já apontava na direção tangente da curva noturna e ela  gemia bem alto agora, na noite solta, enlouquecida demais na  excitação do perigo pra conseguir parar , e a chance de  ser flagrada  só fez aumentar o tesão da coisa toda.

Acelera mais e grita pra caralho. O ritmo vai aumentando, e nesse instante juntam-se todos os estímulos ao mesmo tempo pra excitar ainda mais, no iminente gozo : o vento fresco da noite de verão tomando todo o seu corpo pela frente com a brisa marinha, ela o sente entre as pernas, subindo pela barriga, passando pelos seios, secando os lábios pra terminar suave nos cabelos. O parceiro a acaricia por trás, segurando forte sua cintura. Súbito, tudo se torna som, cheiro, movimento. Ela sente o som do mar a poucos metros da pele, sente a maresia e o cheiro das casuarinas entrando forte pelo olfato, apenas a lua cheia testemunhando tudo. Tudo vem ao mesmo tempo agora, nessa coisa orgástica que junta o corpo ao resto do mundo, como sonhavam os segredos para o desvendar do corpo os graduados mestres da filosofia Hindu. O calor do motor aumenta junto com a marcha lenta trepidante, assim como as vibrações que a faziam resfolegar a cada acelerada. Ela agora esfregava-se com força no metal frio do tanque vibratório com violência e sentia ao mesmo tempo as hábeis mãos dele por trás,  endoidando de tesão. Os faróis do carro que vinham  de lá desapareceram súbito  nas sinuosidades da estrada à frente.

O cheiro de óleo da máquina e a gasolina queimada entram fortes pelo nariz, o clímax vai aumentando e ela goza, enfim, dançando com as mãos do parceiro, a boca aberta beijando o vento, os olhos se apertando chineses em um absurdo silêncio introspectivo como se procurasse por uma fração de segundo cósmico  um universo inexistente. As coxas sobre o tanque de metal e o motor quente da moto, observados pela eloquente lua cheia que margeia a praia ao lado, junto ao bosque de casuarinas do litoral, tudo isso no exato momento em que o carro que vinha na estrada subitamente surge depois da  curva fechada logo à sua frente e seus faróis miram diretamente em cima deles: um casal como qualquer outro, exemplar, comportado e consciente usando devidamente seus capacetes e passeando de moto em baixa velocidade pelas noites do litoral brasileiro. Com uma única diferença: quem a pilotava era uma  garota bonita inteiramente nua, os seios apontando para o mundo e vestindo  longas botas de couro preto. Seguiam, extasiados, num festival de gargalhadas.

Barracas na praia, chegaram ao camping. Cheiro de mar, areia, resina de pinheiros e casuarina, tudo temperado com a  gasolina quase crua recendendo da moto, o motor ainda ligado. Ele tira o capacete, ela também tirou e  já ia descendo, quando ele  diz: "Não desliga. Aqui em cima, vem". Ela acha graça, sorrisão na cara. E vai. De botas, com seus olhos chineses.


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Publ in "Reine sobre mim", contos, reg AVCTORIS, dez 2018