Tatame




Fim de luta, fim de pesadelo. no quinto embate do ano, depois de três vitórias e um empate, terminou perdendo por pontos. deu bobeira. teve sua chance, o adversário  era resistente aos golpes, mas nos fundamentos não era lá um lutador tão bom assim.. tinha fraqueza na guarda excessivamente  baixa, provocativa, um tanto arrogante, e não aguentava bem os socos na linha da cintura, como mostravam as caretas de dor que fazia a cada porrada nas laterais . na luta, como em qualquer esporte, não adianta ser exímio numa única habilidade, há que se alcançar uma média nos fundamentos , e aí, sim, a partir daí seguir para o aperfeiçoamento da virtude pessoal, aquele golpe-mestre que só você tem e que poderia por talento e quem sabe um segundo de sorte levar uma carreira adiante, finalizar situações difíceis e quase perdidas.

Abusando da sorte e de tudo que aprendera até ali, ele quase finalizou em duas tentativas nessa luta, uma com os pés, outra no soco direto, mas a flexibilidade impressionante conseguiu livrar o oponente do castigo nas duas vezes. em vez disso, ele é que  acabou levando saraivada de socos ainda no chão, martelado sem piedade, por causa de uma queda  besta num escorregão de suor. supercílio aberto, de novo, essa merda, lábio cortado que quase interrompeu a luta por conta do sangue que não estancava fácil, e tendo que trabalhar antes do fim um psicológico para aceitação da primeira derrota deste ano. no pesar frio da estratégia, visualizava a perda da luta antes ainda do árbitro levantar a mão do vencedor que não era ele. um lutador sabe quando não foi bem, não precisa árbitro pra dizer isso. cumprimentos contidos, reconhecer a derrota, afinal  fazer cara feia depois de perder é coisa para  real perdedor.

Os grandes erros de abordagem. o primeiro, e talvez o mais comprometedor para qualquer lutador, foi não saber avaliar o adversário melhor. ou, antes disso, subestimar qualquer adversário por acreditar demais em si mesmo. o cara tinha um histórico ruim, tudo bem, mas fez a lição de casa direitinho.. ele mesmo não entendia o porquê desta derrota, o sujeito não era um mau lutador, mas tava longe de representar ameaça à solidez de seus golpes e a agilidade principalmente dos socos, seu ponto forte. talvez o oponente caísse em alguma armadilha por estar excessivamente ansioso, querendo finalizar antes do tempo e se expondo demais, enfim, a coisa na prática não foi bem assim como programado, seu técnico era muito bom e preparou bem o pupilo. chances houve, não dava pra reclamar e por uma fagulha de erro aquilo ali não tinha se revertido em seu favor, mas não soube aproveitar e acontece que hoje foi o adversário que se deu bem. e ponto. "Saber perder alguma coisa pra sobreviver... "como na canção.

Ele mesmo é que tinha que aprender mais com isso. aproveitar como ensinamento. um exercício de prepotência antes da hora, atitude por si só recriminável por qualquer daquelas velhas influências japonesas que ele sempre levara tão a sério e que de alguma forma mais o guiaram na vida, muito além das artes marciais. olhando assim, foi sorte até, não ter sido nocauteado de vez, por sua ousadia, tendo perdido apenas por pontos. o adversário o conhecia muito melhor, tinha informações privilegiadas a seu respeito, e contava com maior suporte para investir nessa luta, como patrocinadores e o charme de ser o desafiante. perdeu mesmo na soma geral, e nem foi por muito, mas perdeu mesmo foi pra si mesmo, no fim das contas, menos por seu talento e mais por subterfúgios alheios a sua vontade.

Que  isso servisse de lição na vida, por conta de reiteradas situações onde sempre tinha a tendência a se achar inatingível. fingia de acautelado mas, no fundo, guardava uma espécie de orgulho intocável, encavernado, algo quase inumano, sem mesmo saber por quê. coisa de família, essa desgraça? desde pequeno era assim. ouvira algumas histórias... enfim, a penalidade por não ter partido pra cima primeiro acabou pesando nesta luta, em especial. vacilou demais. cabeça quente, cansaço da porra,  era hora do chuveirão e deixar os problemas pra trás. que a sensação de culpa e perda ficassem para o momento oportuno.

Para o resto de hoje, cuja noite parecia quase encerrada no ringue há poucos minutos, agora não importava muito mais. sozinho no vestiário, ainda suado e com o lábio superior um pouco inchado  e o supercílio direito aberto, aguardava que ela chegasse, e ela não demorou. veio pela porta lateral de saída, trancando todas as outras portas, e mal chegou já foi partindo pra cima dele, que descansava em cima da maca de massageador. o gosto especial da adrenalina, nos olhos dela. ele, de propósito, ainda não tinha tomado banho e ela adorava aquele cheiro de suor, de vestiário, aquele beijo com gosto de sangue, e absorvia as dores sentidas no corpo moído do parceiro como um presente. cada toque era um ponto lacerado que merecia ser beijado, lambido, acarinhado.

Ele, de início ainda meio carregado pelo calor da luta, ainda estava bastante anestesiado para entrar nesse jogo logo de cara. sabia que essa mítica mistura de ringue e cama estava talvez muito mais na cabeça de imaginativos escritores ou diretores de cinema do que na vida real. porque a tensão ainda presente nos músculos por conta da adrenalina muito recente do ringue demorava a baixar de vez. e como todos sabem, para os homens, nem sempre a adrenalina ajuda a coisa toda  a funcionar direito quando os jogos de amor entram em cena. primeiro era preciso relaxar, deixar o sangue fluir, não represar, sentir o corpo inteiro, e aos poucos retomar o controle da situação.

 Salvo alguma exceção honrosa, a realidade, talvez muito menos romântica, era que a duas semanas da luta, sequer se praticava qualquer coisa relacionada a sexo. nem era recomendado pelos treinadores mais famosos que levavam a sério a formação oriental. o relaxamento do ato sexual, seja sozinho ou acompanhado, talvez uma peça chave até recomendado para os atletas de jogos ou esportes de equipe, em geral,  não era algo desejado na luta. aqui o que contava era o sangue nos olhos e os dentes travados até o combate, a histamina no sangue, como diziam tantas gerações de estrategistas e lutadores antes dele, e o testosterona do esperma além da concentração e o foco, eram algo que integrava fortemente o corpo e a vontade do lutador nos períodos em que antecediam o ringue. seu desperdício no pré-contest era inadmissível desde as tradições mais antigas das artes marciais japonesas, e a continência fazia uma diferença enorme para a preservação da integridade corporal   imediatamente na semana pré-disputa, para que as chances de vitória fossem as melhores possíveis. não se trata bem de alimentar ódio ao adversário, num sentido literal, mas uma espécie de autogerenciamento de uma energia orgânica, ampliar a agressividade instintiva que era necessária para tornar o corpo mais combativo.

 Um lutador recém-saído do ringue, depois de toda a descarga de adrenalina e uma saraivada de golpes que, mesmo vencendo tinha necessariamente  que suportar, apenas excepcionalmente teria as condições necessárias para qualquer performance digna do nome, nos jogos de Afrodite. mas mesmo sabendo disso, e conhecendo como ele conhecia o gosto dela, deixava rolar  e aos poucos ia cedendo  sem queixas aos seus desejos, levando-se pela empolgação da garota. ela tinha esses gostos exóticos e a capacidade de domar os seus sentidos mesmo contra a vontade, e não tinha cansaço que não se transformasse em força ao seu toque. aos poucos ele ia se soltando e deixava que ela conduzisse à sua maneira. deixava que os beijos e carícias dela tomassem seu corpo pelas beiradas, aqueles beijos molhados e os toques quentes que aos poucos iam reunindo novamente seu  corpo com o espírito, a matéria com o etéreo, essas entidades há poucos minutos inteiramente separadas pela luta, agora novamente em um só organismo, enquanto devagarzinho ia sentindo refluir ao normal a eletricidade acentuada pelo combate.  essa separação corpo e mente era inevitável para qualquer um que se quisesse imaginar campeão,  nada mais que uma espécie de defesa instintiva para que o corpo sentisse menos o impacto dos golpes e o espírito pudesse prosseguir determinado em sua missão. quando tudo terminava e o desejo ameaçava retornar à sua casa, era necessário unir esses dois extremos novamente para que tudo fluísse bem, e essa era a arte suprema dela. religar os fios soltos.

Sob o toque precioso de suas mãos, seu sangue de lutador agora corria  novamente de fora para dentro, religando nervos, pele, músculos e os ossos ao centro de prazer corporal, afastado há poucas horas para que a luta pudesse ter lugar ao anestesiar os pontos de golpe. as mãos dela eram suaves e mais certeiras que o adversário, e a língua delineava-se sobre seu corpo ainda sem banho, apenas em sal e suor , fazendo-o aquecer-se em poucos segundos. ela pedia pra que ele não tomasse banho depois da luta e aguardasse ela chegar primeiro. capacidade incrível dessa garota de ligar o motor no tranco. primeiro, ela cheirava, apenas, antes de tocar. gostava de sentir os feromônios das axilas, o cheiro das virilhas há duas semanas em contenção, sem qualquer atividade sexual. sugava a língua mordida, ainda com gosto de sangue, e seu faro apurado conseguia até mesmo absorver o cheiro do ringue, do público, o toque do material sintético das luvas novas , o vapor do palco no dia da luta, bem como os locais do corpo  onde ele apanhara mais.

Ela conseguia farejar o contato com o corpo do outro lutador através dele, os vestígios de suor do outro lutador também  presente no seu corpo socado. ela sempre era assim, intensa, e tinha essa tara animal, e agora toda nua, já deslizava sobre ele, ainda sem penetração, apenas friccionando o sexo em seu corpo, esfregava-se nos pelos da perna, demorava-se mais no seu joelho, beijava sua barriga ainda dura depois de tantas contrações de defesa no ringue. ela não escondia o tesão pelos cheiros e pela dor dele, pela visão do destroçado ser humano que estava bem ali debaixo dela, -- havia uma espécie de chave nisso, quando a dor misturava-se inevitavelmente a um tesão filhadaputa com sangue , suor e cheiro de vestiário -- e por pouco não chegara ao clímax sozinha há uma hora atrás, sentada  em plena arquibancada ao ver aquele barulho contínuo de quebra-ossos,enquanto contemplava os corpos quebrados no ringue de cima a baixo, os supercílios ainda sangrando, os lábios rachados, os queixos massacrados e os corpos inteiramente suados. ela delirava no contato com o suor, lambia o sal e ele aos poucos sentia-se deixando de doer com os seus toques ,para apenas aquecer-se por dentro, um prazer animal e ao mesmo tempo terno, com aquela boca molhada a lhe oferecer a língua curiosa e quente.

Em poucos minutos, ela alucinava, deslizando seu corpo inteiro sobre o dele, friccionava os seios sobre seu peito, o  sexo por todo o seu corpo elétrico  e finalizava como gostava, no seu rosto, sentada direto na sua boca, sufocando-o em sua respiração e gritando palavras incompreensíveis enquanto lá fora o barulho do público abafava todos os sons pela outra luta da noite, já em andamento. logo ela chegava ao ponto alto de sua viagem de apropriação incondicional do corpo e do espírito dele, cavalgando-o selvagemente no pelo, gritando rouco e pedindo que ele a chupasse, no fim. tremendo e ofegando com o rosto em brasas. ele faz o seu jogo até o final, e depois  ela o cavalga freneticamente, gritando "goza não tira quero tudo, filhadaputa, fique dentro de mim, não tira!", ele sem conseguir segurar mais fecha os olhos e deixa seu corpo inteiro se esvair como se a alma fosse expulsa num jato, feliz, depois de duas semanas em pura continência, enquanto gozava forte com as mãos firmes segurando o corpo dela sob o seu até terminar,  ainda enlouquecido com o cheiro do sexo dela no seu  rosto. ao fim, estirados sobre o tatame, ele a contemplava, corpo meio desfalecido, as tatuagens  sobre a barriga suada, a respiração subindo e descendo rápido, o coração fininho batendo debaixo da pele das costelas e um sorriso relaxado no rosto .


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Publ in " ἔρως" contos , Reg AVCTORIS jul /2018