Os olhos de Lorenzo




Hoje é seu aniversário
e há exatos 22
eu abria a porta do carro
saltando pra fumar angustiado
no quintal meu último cigarro

Os olhos -- saudosos por antecipação
sobre as nuvens suspensas no escuro --
Círculos de fumaça evanescendo
e absorvendo o céu
(coisa de gente besta)

Mas a cena era meio triste
Largar o cigarro, 
abandonar o único amigo que me socorreu
nas horas de maior solidão
A bronca da mãe --com toda  razão --
ainda no meu ouvido
A voz daquela menina
(casa com criança não combina
com fumaça, nem exala nicotina)

A exasperação nem era por isso
[Fosse o mal da vida o ter que largar um vício]
Era mais pela ciência do novo vínculo
O peso intrínseco do compromisso

A execução sumária
de um certo tipo de liberdade
Paternidade: a potência desse soco

Esquecer todo o aprendido
e fazer disso a missão de se tornar capaz
Brincando de reinventar existências

A madrugada seguia neblinando
sobre a cabeça preocupada do sereno preocupada do trabalho
preocupada com o futuro da humanidade
essa raça ruim
que não acertava o passo

Que mundo era esse, deus, que
se preparava para acolher outra criança
quando parecia não saber acolher nem mesmo
as que já existiam?

Tanta dor, tanta doença, tanto choro

Alheia a tudo, dois andares acima
A criatura banguela dormia tão tranquila
Na boca o bico do Cebolinha
depois de mais uma boa mamada
e sorria, bem agasalhada
já em mudança de estação
Ninguém avisou a ele
que a vida é algo impossível?
Que o mundo é irreal?

Lá embaixo, no frio da noite
o estômago era mil buracos
por onde vazava o resto do vinho velho
 e barato
muito bem achado no fundo do armário

A incapacidade de conter nas mãos o momento
como se fosse um pouco demais
estar vivo a essa hora

O tarde demais, depois do salto,
como tudo que é grande 
(periga sufocar o que vive em 
seus ideais)
O medo de ser pai

Um medo da vida quando ela invade
A certeza do não poder voltar atrás
e a nostalgia de imaginar que sempre
seremos os mesmos nesse mundo louco
O não querer voltar atrás, escondendo-se
ainda tímido para dali a pouco

O soar dos dias, na sequência
como a ausência de um objeto qualquer
que se pudesse controlar
A total inaptidão em administrar o agora
Os outros instintos assumindo esse lugar

O susto da coisa toda, de repente
O frio na barriga do pensar
(Ou do não pensar) o daí pra frente
Como é que será ?

                      E foi...

Foi passando sem a gente perceber

Foi indo, foi indo, foi lindo
eu sempre sem saber o que fazer
na imensa maioria das vezes
como me acontece de lei
desde que me entendo vivo

A vida sendo a construção inesgotável
de outros nomes para o impossível

O filho

E a vida sendo mais imprevisível
e mais rica

                    do  que um final de livro