O vírus que sacode a vida

Há muito o que dizer
Há muito o que pensar
Há muito o que pintar
Há muito o que cantar e dançar

Esculpir, desconstruir e construir
de novo e sempre

                      Incansáveis,

quando este novo tempo se restitui
Um tempo precioso, roubado
à máquina

Há muito o que contar, ensaiar, descrever

Parece difícil -- agora -- acreditar
mas as pessoas,  lá na frente, vão
querer , vão precisar saber
o que é que só você  viu
só você sentiu

Como a vida ou a falta dela
o medo, o sufoco, a clausura
a ruptura dos padrões impostos

Como é que a nova bolha te impactou?
Em que lugar do corpo você
sentiu o golpe? Aonde
te fizeram sangrar?

Ou na verdade a bolha de antes
era pior?

Ou se esse tudo sentir,  tudo ver
é também algo compartilhado
algo que transcende o subjetivo
algo que repudia o isolamento
e busca outras formas de se coligar
Uma sintonia maior com o que há
E o sentir junto sendo essa-uma
nova forma resgatada de existir?

Toda história merece ser contada
Um olhar é sempre insubstituível
É único,  carregado dos seus próprios tons
de cinza, preto, branco e das cores
que ainda vai achar

Há novas forças em ação
Antes relegadas, encolhidas
sequer despertas
Inaudita solidariedade
sarando as fraturas das cidades

E em breve haverá outras demandas
muito mais fortes
porque o esqueleto do monstro
melhor se mostra
quando o movimento dissimulado
se perde por uns instantes

Os noticiários sequer conseguem esconder
Há muita exposição ,por todos os lados
de um Estado que começa a morrer
Aprender, registrar
estudar as imensas falhas
Sejamos seus coveiros
E que nasça algo melhor nesse espaço

A vida é extremamente rara
E todo o orgânico uma exceção
A rigor, estaríamos mortos
ou teríamos sequer nascido num cosmos
onde 99% de tudo que existe é mineral

Até agora o acaso esteve a nosso favor

Não se anule!
O medo é natural desde que o mundo é mundo
desde que a gente é gente
assim, meio bicho, mais um sei-lá-o-quê
mistura de alguma metafísica enfiada no meio
A prudência, para o que convém
Mas o medo não pode dominar
Tornar-se essa moeda fácil
nos cadafalsos que esperam por nós

Sejamos o arauto do novo
ao denunciar a estrutura fodida
do velho motor, as vidas fodidas
pela falta da comida, colégio
e oportunidades
pela ausência calculada do dinheiro

As vidas medidas
pela duração aflita de um mês
As misérias que se disfarçam
sob o nome de emprego
Escancarar as mais largas feridas
surgidas o tempo inteiro
 -- já se sabe bem de onde --
e esquecidas por estratégias de cotidiano
Extinguir a figura do quase-humano
disputando comida em largas
filas sem nome

Aproveitemos a rara chance
Não é hora de cessar o pulso
deixar que o tumulto cegue
Há muitas mudanças vindo
no mesmo ar que traz  o vírus
E isso pode ser bom, no fim
(apesar de)

Isso poderia ser bom, no fim
se a cegueira não seguir reinando
porque já passava da hora
de enxergar o planeta

Há muito o que dizer
Há muito o que pensar
Há muito o que pintar
Há muito o que cantar e dançar

Esculpir, desconstruir e construir
de novo e sempre

                      Incansáveis,

quando este novo tempo se restitui
Um tempo precioso, roubado
à máquina

Há muito o que contar, ensaiar, descrever

Parece difícil -- agora -- eu sei
mas as pessoas,  lá na frente, vão
querer , vão precisar saber
o que é que só você  viu
só você sentiu