Não é de hoje que os Argentinos se destacam
na literatura, independente do gênero e estilo. Terra de Borges, Bioy, Ernesto Sabato, Silvina Ocampo e Cortázar e uma certa propensão aos escritos fantásticos -- essa, uma maravilhosa característica da tradição latina que los hermanos desenvolvem como ninguém, com a melhor arte e imaginação sem limites.
É o caso da surpreendente Mariana Enriquez, neste que é o segundo livro que leio da autora e já considero uma obra-prima dos contos de terror.
A princípio, nada mais apropriado em mês de Halloween 🎃 🎃 🎃, mas o que tenho a dizer sobre o livro vai muito além disso e me fez -- a mim, velho apreciador do estilo -e desde criança um leitor de Stephen King, Lovecraft, Mary Shelley, explorando entre outros na sequência os ricos universos de Poe, Robert Louis Stevenson, Oscar Wilde, Henry James e recentemente, como feliz descoberta, a própria Silvina Ocampo, também argentina -- o fato é que Mariana Enriquez me fez mudar a forma de ver esse gênero literário, tanto pelo talento quanto pela forma diferente da escrita.
E não se trata necessariamente ou apenas de uma questão de poder imaginativo ou capacidade de gerar tensão psicológica destinada a prender o leitor pelos impactos metafísicos do texto, a técnica habitual do escritor. Todos os escritores citados acima, cada um à sua maneira, têm isso de sobra em seus trabalhos, mas há uma outra coisa na autora que sobressai, contando a favor de sua contemporaneidade.
Sua incrível habilidade para falar , usando a imaginação do surreal, do insólito e do fantástico, como máscara da própria realidade numa perspectiva às vezes como crítica social, como política ou a crítica rigorosa à recente e trágica história militar do seu país, ou então quando a pegada é uma visão mais universal das mazelas humanas em seus refúgios psíquicos de sentimentos e ações conflitantes e tudo que é humano em algum momento na vida passa por duras provações, e a autora faz isso com maestria ao criar a distorção típica dos personagens objetos e contextos surreais sem contudo perder de vista suas sombras sobre o assim chamado "real", resultando em temas extremamente densos, mas narrados com fluidez e um ritmo impressionante.
Comparando, é como se a uma simples memória do texto de Poe, o ambiente gótico das igrejas velhas, cemitérios mal preservados e terras pantanosas (tudo em preto-e-branco, é claro) viessem logo ao imaginário do leitor. Relembrar a visão de planetas e estrelas se queimando e monstros disformes gestados em universos distantes logo remete ao texto de Lovecraft. Wilde, Stevenson e James envoltos sob o tecido da época Vitoriana na Inglaterra, mas criando um delírio paralelo e atemporal para seus personagens.
Mariana Enriquez aponta para outra direção ao usar a linguagem do surreal e do fantástico e nos trazer de uma maneira brilhante e lúcida para observar fantasmas em ação que são na verdade muito mais reais do que gostaríamos. O leitor se assusta primeiro com os vôos dos fantasmas , e no entanto a dor que mais dói é quando eles retornam à terra.
Isso está presente o tempo inteiro nos contos, desde quando a narrativa explora o cotidiano pueril num fim de mundo na Fronteira do Paraguai onde a princípio nada importante acontece, mas de repente isso é só uma ilusão porque subitamente tudo está ali quando cai a noite, e tudo o mais acontece e é apreendido por certos olhos perceptivos que tudo sentem, e esses olhos tudo vêem e podem narrar em detalhes para nós, ávidos leitores pedindo mais. Ora a denúncia das podridões do sistema quando a protagonista é uma criança franzina e maltratada, em seu excesso de sensibilidade e vulnerabilidade social que a transforma em criminoso e simultaneamente vítima ("O menino sujo"). Ora quem fala é uma velha má, enrijecida pela vida difícil, ou uma coletânea de mulheres em seu grito afirmativo contra a violência masculina (" As coisas que perdemos no fogo"). Ora o texto é de uma adolescente difícil que nada poupa com sua acidez, ora são irmãos ou colegas de escola em pleno bullying metidos em um contexto para lá de surreal . Em diversos momentos quem ganha a cena é a história subliminar, quando surgem pelos buracos, porões e cadeias clandestinas e através do espectro de seus monstros ainda presentes nesse limbo, os anos de real terror da ditadura militar argentina que matava milhares por ano. Afinal, o que pode meter mais medo do que a realidade uma vez apreendida, e ainda mais potenciada pela figuração aqui do texto com o recurso dessa narrativa fantástica? ("A hospedaria" é um desses contos e também, sendo um dos melhores que já li até hoje, o conto "Sob a água negra" ).
Mesmo quando fala com total pertencimento da juventude na década de 90 ("Os anos intoxicados"), também a minha época, o humor sagaz e a existência de um "modus operandi" de toda uma geração aparecem em letras luminosas, revelando mais até do que os integrantes dessa época talvez gostassem de mostrar.
Tudo é transformado e enriquecido na ação quando se percebe que não apenas os corpos e gestos dos vivos podem habitar este mundo, e mesmo quando fantasmagóricos ou surreais ainda têm uma solidez absurda. Como diria Shakespeare, na verdade há muito mais entre céus e terras do que poderíamos sonhar.
Seja como for, Mariana Enriquez é uma das melhores leituras do ano, e vem com esses encantamentos que a literatura sempre traz.