"Fenda e Vulcão " (Cora Made)




"Estou farto do lirismo comedido..." (Bandeira)
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Me veio de Bandeira a primeira impressão ao ler esse livro lindo.

Há duas vozes, aqui, nas duas partes distintas do livro, mas em minha leitura senti como se fossem uma só voz. A intenção estética dos dois momentos traz mais beleza na partição, mas como leitor julgo impossível dissociar  sentimentos, tentar classificà-los para que sejam "puros" ou "cristalinamente definidos",se tudo isso nasce é da mesma fonte, do mesmo ser, da mesma pulsão que vem como vai em vida no movimento das ondas nas pedras , arrebenta e arremansa-- um não-cessar que parte e reconstrói.

E mesmo com o risco de soar descabido se o contexto, o tempo, a ordem do dia  por acaso não se configuram uma condição favorável em particular , o poema adianta-se ao desejo sem sequer perguntar, saber ou se importar se existe alguma permissão pra isso. O amor ainda assim é soberano e se põe em verso, fala, atitude e beleza que  reverbera longe, como a ensinar que, embora as formas assumam infinitas variações a delinear essa outra face da história humana, -- a raça contraditória que, apesar de matar e trucidar também ama --, quem ama permite-se a si mesmo, sendo os outros componentes meros acessórios e consequências em disposição do acaso, táticas ou meios. Que importa? O amor, como fogo e sentimento independe assim do seu objeto e se põe como liberdade. Talvez em sua forma mais elevada.

A voz poética soa também desmedida, em sua generosidade. Destemida quando se põe em propósito de amar. Se ela cria sentido, é porque é corajoso doar algo de si num mundo inconstante que tanto mais subtrai do que acalenta. Segue adiante, mesmo em meio à cegueira, e ao mau-jeito característico tantas vezes, da vida. Generoso, portanto, esse olhar  em sua essência, mesmo quando deixa os traços românticos e simbolistas da primeira parte, numa feliz lembrança  da linha poética representada por  Gilka Machado, e adentra o terreno instável do segundo momento, onde a poesia que era "Fenda", ora torna-se "Vulcão" que ao tempo em que aquece transcendendo qualquer medida, a qualquer momento também  pode mandar tudo pelos ares. Bate, e cava, a poeta, e enquanto ainda respinga a "lavra" candente do ofício, ela cria o espaço para a muda de uma outra nova planta cheia de vida no lugar. Porque se amor é amar, é movimento contínuo, não pode parar.

Nada disso impede o sentimento, de um lado porque a poesia não se submete ao fado, de outro porque é como se o amor tivesse certeza própria e riqueza em si, a experiência possível de um mundo tão maior que o próprio mundo que a mera lembrança das imperfeições e pequenezas que compõem quase tudo ao redor não importassem mais na voz poética.

E quanto à permissão para amar: É coisa que não existe. E nem precisa. Se o amor acontece, é incondicional. Deixem os tristes e tantos especialistas de boteco e vendedores de auto-ajuda  dizerem que não. Oficio de poeta é voar.

Essa lembrança forte que, no meu sentir, impulsiona o olhar da poeta, está presente em diversos momentos na sua feliz escolha dos versos livres, realçando uma vez mais na forma  um conceito, talvez mais, um sentido maior de liberdade como luz criadora



("Fenda e Vulcão", Cora Made, ed Maré,)

A bela edição da Editora Maré,
uma editora ainda pequena mas de competente editoração
e muito bom gosto na sua linha editorial