Os Hippies estão chegando

O que houve com a geração “paz e amor”? | Afonso Lopes

Para Raul




-- Deus é mais! Os Hippies estão chegando.

Era com essa sentença de morte e fazendo em nome do pai-do-filho-sprítsantamém que minha tia profetizava o fim do mundo bem próximo, nas vésperas do festival da canção que estreava  em nossa pequena cidade . De sua casa, situada num dos pontos de maior movimentação por aqueles dias, punha o olho em tudo que acontecia ao redor, ladina e alcoviteira como o mais puro estereótipo das tias velhas.

--É coisa dessa faculdade aí, depois que veio pra cá. Antes não tinha disso, esse monte de cabeludos maconheiros, um bando de jovem tudo perdido sem deus, dormindo feito bicho em barracas, só viajam de carona e mochila nas costas, vivem sem tomar banho e com aquelas fieiras de miçangas e arames lá no Centro, o cheiro de mijo e  de incenso empesteando tudo.

--A filha da cumadi fulana bem fugiu com um cabeludo desses mês passado, ninguém sabe onde está.

-- O filho de cumpadi sicrano deixou o cabelo crescer, falou que quer mudar de país e vive fazendo pulseira, conversando com passarinho, comendo aquele arroz duro com feijão, queimando incenso e  plantando horta no quintal.

O tiavelhismo sendo esse status filosófico metafísico que acomete diversas idades e gêneros mundo afora, sem ter hora pra começar ou acabar. Muitas vezes contagioso ou até hereditário, incide sobre adolescentes, jovens, adultos e idosos e não respeita gêneros, é claro. Existem muitos homens tiavelhistas também, geralmente bem mais tristes e dramáticos no papel. Essa condição caracteriza-se essencialmente pela atitude psíquica do vivente passar a abrir mão quase que por completo de sua vida própria para se dedicar inteiramente aos movimentos do que não lhe diz respeito, tornando-se verdadeira sombra moral da vida alheia, ou imitando-a compulsivamente em segredo ou intrigando-a perante terceiros, porque no fundo julga todas as outras vidas -- que não a sua própria -- supostamente muito mais ricas e excitantes. Em nossa família, era dali dessa posição que vinham as tiradas mais ácidas e -- preciso confessar -- às vezes mais criativas e engraçadas do contexto todo, por seu caráter delirante e imaginativo. O lado irônico é que esse papel fica marcado, e todos ao redor o sabem, apenas não contam para o(a) "tiavelha" em questão, para não desanimá-lo(a) com a vida. Não raro, como ocorre em boa parte das famílias desde que o mundo é mundo, havia sempre mortos e feridos depois de tudo, porque as línguas amigas e tanto mais próximas são sempre os chicotes que mais ferem, mas em geral, as melhores histórias vinham dessa mesma fonte. Que seria do mundo sem os (as) tiasvelhas?

Mesmo com tamanho esforço pra exercer controle sobre tudo, a vida não é algo que se deixe facilmente controlar, daí que, quando a tia virava as costas, minhas primas, (encapetadas mesmo antes do surgimento desses demônios) entre elas sua própria filha, pulavam o muro baixo da casa e pocavam pra noite xavecar os novos hippies cabeludos com cheiro de incenso e mijo e comprar -- ou ganhar no charme -- aquele monte de exóticas bijuterias feitas ali mesmo, na praça. Uma imensidão de metais, durepoxi, correntes e colares, fitas coloridas, pedras semipreciosas, tecidos e sandálias feitas a mão. Chegavam em casa nos primeiros dias do movimento carregadas de colares, pulseiras, braceletes de tudo que é jeito, as garotas não perdiam a viagem.  Com polêmica ou sem, eu via apenas essas criaturas-primas voltando pra casa no famoso "antes das dez" entusiasmadas com uma linguagem nova, o palavreado exótico adquirido com os invasores, enquanto os primos por sua vez , também metidos no barulho, voltavam sempre mais tarde com um certo brilho nos olhos e recendendo fumo no alto grau da cachaça.

Eu mal punha os pés na rua, novo demais pra acompanhar a turma, ficava cá deste lado do mundo imaginando através dessas conversas espalhadas de vizinhos e familiares que tipo de gente era aquela que súbito invadia nosso espaço assim, esses animais derrubando tudo e mijando em tudo sem pedir licença, causando todo o alvoroço. Na mente vinham todo tipo de monstros, os olhos esbugalhados de fumaça, correntes atravessadas no pescoço, os dentes como feras, cabelos desgrenhados e bafos de dragão para botar fogo na cidade, como verdadeiros demônios encarnados numa terra de maldição,  -- como no dizer da tia, que contagiava boa parte das pessoas de casa. Pelo sim, pelo não, meu jeito de tentar compreender o que eu não via era apenas imaginando por tabela o tamanho daquele universo por narrativas e paralelismos conversatórios.

Em outro campo, o pai, o tio, o avô, que pareciam  se incomodar mais é com a desorganização da coisa toda, maldizendo a bagunça na cidade por conta da alteração do trânsito, do comércio e daquele mundaréu de gente chegando a cada dia mais e deixando entrever bem nitidamente a sensação de impotência diante da invasão de uma espécie de  moderno  rival dos "novos tempos perdidos" dentro dos seus territórios demarcados e previsíveis. As mulheres mais idosas por ali, além de persignarem-se a cada instante à simples  menção das palavras "festival", "hippie" ou "maconheiro", viravam os olhos de tanto desgosto.

Aqueles homens sem lar, perdidos e alucinados,  -- diziam -- pagãos portando em suas falas idéias de uma terra pecadora onde os deuses tinham cabeça de elefante e muitos braços, eles traziam em seus gestos e aparências, em sua música, em suas bebidas, o poder de virar a cabeça dos ouvintes, usando as tratativas do diabo perante as boas almas, e tendo como única missão fazer se perderem os jovens sonhadores e as moças de família vida afora. As moças, por sua vez, que também os acompanhavam -- e não eram poucas -- essas puras crias de Satanás,  ´-- cutucava minha tia, depois da novela -- , porque além de abandonarem a igreja e  seguirem esses demoníacos seres , ainda largavam suas respectivas famílias, tantos pais e mães que lhes deram tudo e depois foram deixados pra trás enquanto elas se perdiam na vida.

Chegou o feriado de corpus christi ,  e a cidade não falava noutra coisa. A ansiedade só fazia aumentar quando me chegavam truncados, em minha casa do outro lado da ponte, os acordes  lisérgicos de uma mistura confusa de sons, algumas músicas viscerais, muitos agudos, guitarras em altura, tudo muito diferente do som que eu tinha ouvido. Eu, que conhecia Beatles, Stones e Elvis Presley. Mas o som era outro. Mais sentido, mais sofrido. As vozes roucas, rasgadas, algum bicho querendo sair de dentro. Ao lado desse som, tinha outros também. Esses vinham mais tranquilos, com violão e voz, por letras que eu não entendia, embora cantadas em minha própria língua.

Surgiam na rua um monte de barracas de bebidas , ao redor dos canteiros da avenida principal. Poucas eram de comida, isso dava pra notar fácil na volta da escola, nos caminhos da manhã e vésperas do feriado, posto que as tardes e noites estavam terminantemente proibidas pra mim. Eu via tudo ainda meio vazio a essa hora, pelas beiradas antes do movimento começar, porque  era só à partir das 5 da tarde que a coisa acontecia, seguindo noite e madrugada afora.

Isso foi até o dia da estréia, tudo programado para um festival universitário da canção previsto para dois dias, movimentando a cidade de uma forma como ninguém ainda tinha ouvido falar. O primeiro festival naquela região, um dos primeiros do estado. Cidade pequena, movimento gigante de gentes surgidas de todo lado. Donos de uma curiosidade inesgotável, todos íamos logo à tardinha para a casa dessa mesma tia, que por uma coincidência incrível ficava justamente nas proximidades do estádio de futebol onde o festival seria realizado, na primeira esquina próxima aos portões principais.Pocávamos pra casa dela, boa parte da família. Os adultos em geral mais dentro de casa ou na área coberta, conversando fiado e assistindo tv. O festival estava previsto para começar a partir das oito da noite, mas desde as duas da tarde tinha gente passando na direção dos portões e a nossa  turma de pirralhos e pirralhas se apinhava nos muros baixos do jardim   pra acompanhar o movimento.

-- Cuidado que os Hippies vêm aí, não saiam do jardim hein. Lembrava minha tia lá de trás dos cobogós da cozinha que davam pra área.

Impossível esconder a ansiedade. Ainda mais pra mim, que ainda não tinha visto nenhum dos exemplares da raça perdida. A casa cheia de gente, todos da família e mais alguns convidados curiosos pra ver aquilo de perto. Dava até pra imaginar  por seus olhos o que é que queriam ver essa noite, as tias certamente querendo confirmar o veredito da danação dos infernos dos cabeludos adoradores de estátuas através dos repugnantes novos tempos e essas gentes esquisitas, os tios fazendo pouco caso do que lhes parecia ser uma geração perdida e invasão de espaço territorial, as crianças menores zoando sem saber sequer do que se tratava a festa e gostando  mesmo era da bagunça e do bolo e doces que surgiram sem aviso na mesa grande do jardim, os primos mais velhos partindo com seus coquinhos maturados de cachaça para o estádio, as meninas indo na esteira depois de esticarem bem os cabelos, lançarem a argamassa colorida no rosto e entornarem até a última gota do vidro de perfume no cangote. Daí eles vieram de lá .Os hippies, pela  via principal. Eu todo olhos, no acautelamento daquela visão, por trás dos muros-fortaleza.

A rua, ainda fechada para o trânsito, foi subitamente aberta para as pessoas, liberando o fluxo da turma que já se avolumava nas laterais . O ponto de passagem obrigatório de quem seguia até os grandes portões do estádio ,no final sem saída, era exatamente na frente da casa da minha tia, numa esquina, com um grande jardim na frente e um enorme espaço com muro baixo e largo, o lugar mais privilegiado para ver quem entrava e saía do movimento.

Era um festival de canção popular, de MPB, nos moldes do que estava sendo retomado em vários lugares do país, um formato bem diferente dos "festivais da canção" dos anos 50-60, um tanto ingênuos e deslocados da realidade. Neste festival, em primeira edição, havia um sinal mais político, uma força potente de movimentação contra o período ainda presente do governo militar ditatorial, em vias de se dissolver. Ainda estava no ar um cheiro de censura, de controle institucional, mas no meio daquela muvuca tudo isso perdia força para a nova força. Havia um outro fermento no ar. As músicas falavam de liberdade de expressão, necessidade do artista falar o que sente, sentimento coletivo de uma busca de nação, coisa que havia se perdido. Signos que apenas posteriormente pude identificar, em retrospectiva. Era  um festival de MPB, desde a organização, a coisa-conteúdo-raiz presente dos versos, da voz, sem qualquer dúvida, uma tentativa do país se reencontrar com seu eixo político e histórico original.  o visual de todos era a coisa mais exótica que eu já tinha visto. Independentemente do conteúdo, a estética das pessoas era como se estivessem em Woodstock, coisa que também só fui entender bem mais tarde, é claro, quando vim a saber o que era isso.

E eles foram surgindo, em pequenos grupos no início, daí a coisa foi se aumentando, e de repente parecia uma onda estirando-se na estreita via  de mão única, longa até chegar aos murais do estádio, para depois se espalhar. Uma onda colorida, nunca vi tantas cores juntas. Um arcoíris de pessoas. Os primeiros grupos, de três ou quatro, uns vinham com flautas, outros acompanhavam no violão ou no vocal. Batiam palmas no ritmo. Não foi difícil saber o porquê das preocupações veladas das tias velhas e do resto dos senhores. O perigo não estava neles Hippies, estava em nós, os não-hippies-ainda. Havia qualquer coisa no movimento dos seus corpos, em sua voz, no som que saía dos grupos, uma fluidez, uma harmonia e uma liberdade que ninguém do lado de cá jamais vira ou sonhara. A vida, tímida em nós, soava maior por seus gestos. Seu modo de habitar o mundo era mais bonito e mais forte que o nosso, dava pra sentir só de olhar. Nossa forma de ser semelhava fantasmas vivendo sob sombras. Daí que eles sequer precisavam enunciar ou seduzir ninguém com dúzias de palavras bestas, refutando desde a raiz o argumento de medo das tias e tios. Porque a vida que havia em sua presença convidava à vida. Uma coisa a mais, eles tinham, e se manifestava no movimento. Esse era o grande perigo, pressentido pelos mais velhos ,mesmo sem saber dizer, mesmo sem saber que sabiam. Imaginar que uma vida, por outras vias, poderia ser maior que as suas próprias.

--Quer uma flor, indiozinho bonito? A moça com cabelos de sol e a tiara na cabeça que passava na calçada e me oferecia. Eu, do alto de meu medo incutido do mundo-lá-fora por gerações, do topo de minha achância de me imaginar mais cowboy que índio nessa vida toda de westerns me estragando desde o nascimento, eu do ardido de minha não-civilização humana bicho-do-mato educadamente recusava: - Não, moça, precisa não, brigado. Ela sorriu e se foi, com sua flor girando nos dedos, os passos acima do chão,  o vestido leve , o cheiro de incenso restando no ar. Eu fiquei. As irmãs e as primas infernais me zoando, é claro. Meu rosto queimando até as orelhas. A sensação de ter falado alguma coisa errada. Queria alguém pra me dar um soco nessa hora. Ainda bem que não. Entrei na casa e fui direto ao espelho do banheiro, conferir aquela coisa de indiozinho.  Era sim. É. Pode ser. Não tava ruim não. E o coração sacudindo dentro da caixa.

O impacto daquelas criaturas em meus sentidos foi uma das coisas mais poderosas que eu já tive nessa vida. Abriram-se os portões e eles vieram de boa, não corriam, eles riam. Muito. E andavam a dois metros do chão, eram as pessoas mais bonitas que eu já tinha visto. Não eram desse planeta, com certeza. A confusão entre as narrativas ouvidas e o choque com o real. Choque benigno, aumentador. De onde saíram essas criaturas, afinal? os caras, em geral mais magros que fortes, a maioria sem barba e com aqueles longos cabelos, calças de bocas largas, alguns com grandes bigodes chineses ou cabelo "black power", esses últimos eu conhecia bem porque já vira e curtira "Jackson Five" na tv. Levavam garrafas de vinho, na maioria, muitos traziam violões a tiracolo. Gostavam de gaitas também. Muitas flautas e gaitas. Algumas garotas com uns pandeiros gigantes nas mãos, pandeiros sem miolo, apenas com os arrebites de metal e umas fitas coloridas, elas lembravam ciganas, com uns vestidos repletos de flores em cores fortes, -- telas tiradas de alguma pintura --, tiaras na cabeça e grandes pulseiras ou colares de arames trabalhados com pedras, colares de osso, o cheiro forte de incenso no ar, misturado com um perfume inebriante que nunca tocou antes estes ares, a se espalhar aos poucos, abraçando tudo ao redor em sua passagem, à medida em que a onda seguia.

Eles falavam alto, cantavam, uma felicidade coletiva que jamais vi de novo em qualquer multidão. O festival estava nas pessoas, não necessariamente nos shows, que escolhidos a dedo entre artistas de representatividade para o momento do país, surgiam mais como uma coroação dos dias e noites ricos em vivência. As verdadeiras estrelas eram os poetas de voz, violão e batuques que concorriam aos prêmios musicais do evento. Não havia confusão, não havia brigas, -- uma sensação contagiante de paz em movimento -- uma espécie de comunhão meio índio em festa de tribo, algumas roupas e pinturas lembravam mesmo índios de todos os naipes, eles andavam em duplas, trios ou em grupos grandes,  batiam palmas e paravam de quando em vez para fazer uma roda, cumprimentavam as pessoas nas varandas e jardins das casas, de vez em quando davam uma palhinha para os moradores tocando música autoral ou  Raul Seixas, Mutantes, Secos & Molhados, Rita Lee, Gil.

Sobre todos eles, sobre todos nós, a lua cheia e grande e seca do mês de junho fazia tudo isso brilhar mais naquelas peles de sonho, os rostos rosados, os olhos puxados em sorrisos e, mais  que tudo, algo que não sairia jamais da memória nem ali nem para nunca, a beleza dos seus cabelos. Lisos e longos, pretos ou dourados ou ainda em surpreendentes amarrados que pareciam fios de cobre  em cordas trançadas, crespos black power, rasta, cabelos envoltos em cordões de flores em que a gente não sabia onde começava uma coisa e terminava outra, a cabeça sendo a própria Terra alimentando naturalmente aquelas cores com sua seiva, os fios sendo raízes sustentando imensas pétalas.

O primeiro contato com os Hippies não me sairia da cabeça ou do espírito por um bom tempo. Após o primeiro festival, só fui retornar a um festival na cidade quatro ou cinco anos depois do primeiro, quando já podia eu mesmo ir aos shows. Nesse interregno, estrategicamente -- uma vez mais dando ouvido à tia, é claro --  a família preferiu passar umas férias não programadas fora da cidade até que passasse a famosa data de Corpus Christi e pudéssemos voltar pra casa em total absoluta e apaziguada segurança. A surpresa foi enorme, no meu retorno à rua, não por não gostar da festa em si, pelo contrário. Eu queria mesmo era retornar àquilo tudo que presenciara apenas em parte, retomar de onde parei. Mas não vi mais o que eu tinha visto. Em tão pouco tempo, menos de meia década depois do meu batismo, os costumes eram outros, já. Outras músicas, outras estéticas. Havia um ou outro reminiscente daquela raça de seres incríveis, mas reduzido a algum canto, isolado ou em pequenos grupos  com ar melancólico. Eu chegava mais perto pra ver. Eles agora, na maioria, tinham um ar abatido, uma incerteza sobre os preços e os produtos que eles próprios faziam e vendiam.  Tinham um ar triste e faminto, como quem perde uma guerra e é desterrado em seu próprio país. Seu artesanato  não tomava mais a praça inteira, as peças pareciam mais sem vida, sem cor. Novos vendedores ocupavam praticamente o espaço inteiro. Objetos industrializados, plásticos barulhentos e bugigangas fluorescentes surgiram em substituição aos artesanatos assim como a quantidade de barracas aumentou assustadoramente.

Não vi mais o festival na rua, nas pessoas. Era uma outra coisa, o que agora presenciava. Aquelas criaturas exóticas de cabelos longos eram raras, os cabelos agora eram curtos e espetados, muito gel, muito brilho e plástico, eram uma gente muito barulhenta, zoeira, excessivamente precoces, iam pra noite e para os shows na faixa dos doze-treze e alguns já chegavam bêbados nos shows , muita gente vomitando nas calçadas, mijando em qualquer canto. O formato do festival também havia mudado. A atração principal não eram mais os artistas com suas vozes dissidentes e sobreviventes de uma era de terror, não havia mais poesia, letras autorais, o que atraía mesmo as pessoas e valorizava o preço dos ingressos agora era a força midiática das grandes estrelas musicais.

O peso da novidade então se abateu sobre mim como uma porrada, no primeiro dia de um total de quatro programados para os shows. Cada noite rigorosamente planejada para exibir diversas estrelas  do cenário nacional. Letras falando sobre nada, ou muito pouco. Muita zoeira. Dancinhas mecânicas. No depois, acostumando-me com aquilo e querendo curtir a vibe do momento, acabei deixando essa impressão negativa de lado pra entrar na dança. Com uma cachaça nas idéia, qualquer barulho é som, qualquer gente é boa, qualquer lugar paraísa. Contudo, nunca deixei de sentir o impacto daquele primeiro festival, alguma coisa ficou ali, boiando por dentro, até que um belo dia, na frente da tv na casa de um amigo, vi um sinal que passou a liderar o sentido. Ele assistia o filme "Hair", e me chamou pra sessão. E só então, lá pela metade da fita, é que se aprumaram algumas noções e eu pude finalmente voltar no tempo pra compreender o que tinha vivenciado no primeiro festival da canção.

Me veio forte no peito o estilo das músicas, o forte sentimento que as conduzia, as gargantas roucas, ora as melodias angelicais tocantes que nos levam pelas mãos, era como se eu soubesse mesmo o que elas tinham a me dizer mesmo muito antes de traduzir ou ler suas letras. E tudo aquilo que eu antes não entendia em sua completude, as melodias, as letras, finalmente se encaixaram por dentro permitindo completar esse puzzle de tantas cores cujos matizes restavam ainda abertos em mim.

Sem saber, eu assisti ao fim de uma era naquele primeiro festival e o começo de outra, sem qualquer cerimônia entre a passagem de fases. E o filme finalmente amarrava a ponta dos fios soltos. Menos por um sentido específico musical, uma vez que esse movimento que retrata o filme ter se passado lá na terra do Tio Sam, com algumas questões regionais que lhe são muito próprias, mas havia um quê universal naquilo tudo. Anos atrás, quase no ano em que nasci, esse movimento de beleza e força ganhou o mundo por uns tempos, e o  filme -- o melhor musical que assisti na vida -- além disso, um ótimo resumo da ópera toda, mantinha aquele poder melódico e orgânico nas músicas, o forte sentimento de sua manifestação, a verve questionadora nas letras, e por trás disso tudo um propósito nem sempre identificado, mas presente, o firme denunciar os enormes erros civilizatórios e apostar na inteligência, o firme querer mudar tudo sem ter que usar necessariamente da violência,  abusando da força de vontade, do talento artístico, de uma sensibilidade por todos os meios aumentada para a vida, na metáfora da cor, do incenso e das flores como meios. Uma beleza coletiva que mais não vi depois, esses hippies

                                                                                              e o poder inusitado dos seus cabelos.



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REG AVCTORIS / abr 2020