O perfume de Laura


Ao nascer, o que se vê, o que se ouve primeiro? Como aconteceu com Grenouille, acontece com todos, no mundo inteiro. Se a memória tivesse voz, aos berros diria que nada se vê e nada se ouve naqueles segundos, e é pelo cheiro que nos toca o sentido do mundo , não importando que alguém tenha vindo à luz entre finas rendas ou em meio à lama.
Primeira consciência: acordes e blends, antes de enxergar. O cheiro da mãe, do berço, dos primeiros brinquedos: leite, vida, alimento. Amêndoa, cedro, limão, jasmim. Respiração. Pulmões se abrindo, o sofrido choro. Patchouly, vetyver, sândalo, alecrim. Antes de pensar, antes de andar. Bergamota, gerânios, musgo de carvalho. Antes de ouvir. Almíscar, incenso, thymo, tomilho. Antes mesmo de chorar, e muito antes de falar. Sálvia, âmbar , gengibre, cardamomo.
Café, couro velho, tabaco, cipreste: em cada corpo, um resultado diferente. Chocolate, óleos, essências, fougére: a fixação lânguida lambendo a pele. Entre os seres, o cheiro precede a fala. Cio e sexo, desejo e posse: químicas que se tocam, sem discurso e sem morte.
Das memórias primitivas, os aromas sempre acodem primeiro. Flecham direto o passado, naquele instante perdido no tempo, sem nunca errar.Toda essa amálgama de ilimitadas possibilidades e resultados imprevisíveis, mas sempre certeiros em suas marcas indeléveis sobre o corpo. O cheiro identifica, cria, essencializa.
Afinal, um perfume definiria alguém, tornando possível imaginar o terror de passar despercebido, o medo de não ser lembrado, o pânico e a angústia de não ter seu próprio daemon, de ser ninguém, não existir e não deixar sua marca?
Como na vida, que surge sempre desigual, inexistem fragrâncias humanas idênticas. Do que seria capaz, o ser, para encontrar sua perdida essência? Você, definido por uma fragrância: floral, cítrica, ou herbal? Madeira, incenso ou oriental? Âmbar, almíscar, animal? Ou então algo mais complexo, intempestivo como um blend que contemplasse um pouco de cada tom, formando acordes raros de uma terceira mistura, nunca antes alcançada? Uma vez encontrada , você mataria para preservá-la?
Assassinar para achar sua essência: eis a alma desse facínora, a se esconder nas sombras, espreitando em busca das jovens virgens que atendam a seus propósitos; a incansável busca da pura matéria prima para sua obsessão: o ideal feminino, ocidental. Beleza e personalidade andando juntas, liquefeitas, sem contradição. Tentativas vãs, frustração... Eis que surge Laura!
O mundo pára enquanto ela passa. Laura é o tempo subjugado em favor da beleza. Seu cheiro lembra campo, vento, maçãs e flores. Tardes douradas antes do crepúsculo. A fragrância da imortalidade aos dezessete, a eterna juventude que arrebata, contagia e tortura. Grenouille a segue e a observa, na penumbra, extasiado, com admiração e temor. Alcançá-la é ultimar sua missão sobre o tempo, esse inimigo mortal, permitindo-lhe finalmente domá-lo. O tempo submisso, paralisado, como sempre sonhara. Concentrar toda a beleza nesse pequeno frasco , derramando-a sobre sua cabeça, de forma lenta, destilada, e fazer brotar o frescor e o perfume de Laura, agora ressurgindo líquidos como um sentido, um extrato definidor, a final invenção: o supra-sumo da existência humana, capaz de, com uma só gota, prolongar a vida, transmutar o feio em belo, o abominável em idolatrado, e todas as dúvidas em certezas. O mundo transformado pela essência de Laura.
Aspirar e ver o tempo parar... cabeça, coração e fundo... notas soltas e acordes que condensam o ser , definem o mundo. Leve de asas, voar paisagens . Viagens, a cinco passos do chão. Halo de rosas raras, dia, espectro da noite adentro num fechar de olhos. O espírito, a vontade própria dessa minúscula gota a se evaporar. Moléculas de alquimia complexa abrindo-se ao universo por etapas, fazendo-o gritar. Mistura com o poder de matar dragões, destruir castelos, silenciar canhões. Fragrância e poder: submeter heróis, transformar a vida , mulheres a enlouquecer.
Esse assassino laborioso numa vida cruel, árdua e compulsiva , na ânsia de concluir sua obra definitiva , e agora , quando finalmente a alcança, ele se vê, feliz, sendo devorado pela multidão ensandecida. Ébrios da vontade , devoram-no num êxtase coletivo em plena luz do dia, em busca de sua repartida identidade . Ele se descobre enquanto essência, para se desvanecer em praça pública, logo em seguida.