Praia (pequeno ensaio renascentista)















Um manual da diversidade, da convivência, da melhor regra de estética, recomendações para o mundo.

Nada existe de mais democrático que uma praia em dia de domingo, em solos brasilis. Até para mim, que não alimento ufanismos baratos nem sigo a cartilha do nacionalismo espalhado pelo globo ( esse discurso doentio que alimenta o sonho dos ditadores, ameaça a vida no planeta e enfraquece o que há de melhor no ser humano em prol de uma insanidade coletiva chamada Estado, e que encanta feito flauta de Hamelin  a massa de manobra essencial para as terríveis guerras genocidas), esse momento de praia quente e mar verde esmeralda me faz renegar cerebralismos e pessimismos ancestrais, cair de joelhos nesse particular verde azul e amarelo e fazer a retratação à qual se negou veementemente Giordano Bruno, na fatídica inquisição: neste dia, o universo é que gira em torno da Terra, afinal.

Gente de todo tamanho, de todas as cores, todos os cabelos, todos os sotaques, mosaico de vidas movimentando-se em harmonia sobre este espaço privilegiado do verão. A praia, vista de alguns metros mar adentro, compõe uma epifania de sons e formas  misturando biquínis de toda cor (esse adereço que em nossas mãos foi alçado ao posto de obra de arte), sungas, sombrinhas, bonés, coqueiros ,ambulantes no afâ de aproveitar o movimento intenso para engordar o orçamento, overdose de sol amarelo ouro na areia branca e o azul cegante de um céu sem nuvens: o recado original do povo deste país para o resto do planeta: a convivência não só é algo possível, mas pode ser terrivelmente bela.

Crianças de todas as energias pulam com seus brinquedos  entre as mães, vigilantes a um passo, e sucumbem ao prazer do toque na areia, temperados e embrulhados à milanesa , e refogados de tempos em tempos pelo frio da água salgada. Olhos preocupados mas felizes fazem a guarda constante, livrando os perigos e mantendo a bela sequência natural da cria ao alcance das mãos.

Pais, tios e avós, libertando-se por uns dias de sua mordida rotina, vivendo por mais um verão os sentidos para toda a vida. A arte de ensinar aos mais pequenos o lado bom, ensinar a humanidade possível, o contato com o deus soberbo do mar, que une os humanos nesse transe à beira d'água desde os primeiros minutos do novo ano que  já nasce  com bons augúrios porque surge justamente onde o sol em seguida virá  saudar essas salgadas ondas.

A praia do suor, do convívio, do descanso, da curtição, que verterá em  fotos a magnetização dos momentos que não substituem jamais, mas que solidificarão e darão sentido às  lembranças no futuro, dourando o passado em pura mágica e solidificando as raízes imaginárias pelo espaço, como é a regra do viver.

Marmanjos se exibindo, garotas se exibindo ( o belo e antigo ritual ), raquetadas fortes no barulho molhado do frescobol, volley, poses calculadas  para impressionar, muita cerveja e conversa encenada para o bom sentido da existência. Surfistas escrevem suas poesias vivas enquanto a prancha dança espalhando a espuma  na  diáfana costura entre céu e mar. Eles podem até não saber as perguntas, mas vivem artisticamente as respostas, dispensando qualquer narrativa, o sol por testemunha.

Maravilhosas mulheres de toda pele transitam nesse encantado balanço bem brasileiro, amalgamando uma vez mais o traço seco e longilíneo, mais raro, europeu, e sempre mais altivo, elegante, com as exuberantes curvas características desse povo latino, traço  enriquecido pela  herança afro. Sem menosprezar a elegância e o estilo da estética  favorável, apoiados na voz da época que lhes confere tanto poder , o que salta aos olhos mesmo nessa profusão de cores é o pujante desenho das curvas, das quais sou ferrenho defensor. A própria  vida é uma curva. A sorte de ser brasileiro e estar contemplando uma tela quase renascentista. A regra da não-ditadura da balança, do não se submeter aos exageros da época, de não se mutilar em prol de algo transitório e questionável sob qualquer aspecto.

 Um dizer sim à vida, que se manifesta contra os excessos que obrigam ao vômito, a não assimilação do alimento que é consumido por carência, onde a nutrição equivocada é reflexo direto de um mundo afetivo conturbado, e se manifesta também contra a abstinência prejudicial, que não oferece ao organismo o necessário para florir. O movimento do corpo é sua própria natureza e precisa ser cultivado. Corpos parados não respiram, mas  o que vale mesmo é cultivar sua  vitalidade, a sintonia positiva com o universo, e da mesma forma que não cabe um corpo feminino torturado e masculinizado pelo excesso de músculos, pela perda da sua identidade, não adianta uma alma repleta de curvas ser contida à desmedida força num corpo muito menor, calculado entre retas e planos.

O que é pujante denuncia o excesso de vida. Ah, se as mulheres soubessem!!! Os caras, quando as observam, em regra não calculam qual a proporção ou o ângulo que possuem entre uma perna e outra, não querem saber a definição dos braços ou seu diâmetro. Nem  sequer se preocupam com o manequim que estão usando. A busca é pela vitalidade, pelo sorriso, pela face rosada, pela forma e o encantamento de falar sobre a vida, sobre as coisas mais simples e improváveis. Não há matemática entre a forma física e a felicidade, mas todos sabemos que mulheres com mais curvas riem mais. E não se iludam: essa vontade de vida é contagiante... No pequeno o grande se revela. O que o homem busca, superando a couraça cultural, cumprindo seu inconsciente caminho ancestral e genético, é a pujante beleza através da capacidade da fêmea ser feliz consigo mesma, e isso inclui ela estar em harmonia com o próprio corpo, o que está por trás, que é o poder como a vida se manifesta.   Onde há um excesso de vida, a própria vida quer ser maior, quer  ganhar o espaço, quer sair para dizer que existe. Um brinde à perda de controle e ao desafio a toda lógica fabricada na  contemporaneidade, pela constatação das curvas salientes de nossas praias, que bronzeadas ou não, subsistem a qualquer julgamento. Se as mulheres soubessem de fato seus matadores efeitos, cultivariam-nas com maior cuidado, em vez de tentar extirpá-las a todo custo.

Não vamos nos iludir: a saúde perfeita é algo inventado, assim como o perfeito corpo. O suposto "defeito" pode ser sua voz única, singular, a gritar por afirmação, precisando mais espaço. A ciência e a moda, apoiados num discurso restritivo e com foco obtuso, querem se estabelecer numa relação de poder com "a verdade" , dominar e se tornarem o único discurso válido, e por isso necessitam corpos fabricados sob medida. Seu exército de fiéis seguidores e legitimadores. Portanto, crie sua própria verdade. Seu corpo é seu discurso, sua forma de estar no mundo:  descubra-o, corpo anárquico e prazeroso, por entre tantos discursos, livremente, e o aceite, da forma como pontua seu ser interior. Sim, porque, crentes ou ateus, sérios ou desleixados, cientes ou não de sua realidade objetiva, há sempre um corpo interior, que pode refletir diretamente todo o tratamento que seu transitório ou definitivo usuário lhe dá.