A dúvida

E a vida segue assim mesmo
doída, ácida, escorregadia
quente, pujante, evanescente
desejada, sôfrega e até odiada

Mas o que me espanta
é não saber  nesses intervalos todos
repletos de sentido
onde eu estava?

Tanta conversa boa
viagens interessantes
companhias e bons amigos
livros a se perder
filmes a se perder

E eu continuamente
inexoravelmente
naufragando em minha
própria existência

Posso certificar, com carimbo e protocolo,
se precisar
que apesar de tanto esforços
apesar de tanta preocupação
e de tanta ansiedade de me eximir
me perdoar por estar vivo
justificar-me pela respiração de cada segundo
não andei nem sequer um centímetro em qualquer direção
e sei absolutamente nada sobre o mundo
não conheço sequer um ponto a mais de minha pessoa
_isso sem falar nos outros_

Nada sei quanto à viagem dos outros
mas quanto à minha, se terminasse neste exato instante
posso afirmar que teria sido um ponto feliz
a maior parte do tempo
mas sobretudo apenas mais um ponto perdido
no espaço
sem nenhum aprendizado verdadeiro
ou algo que pudesse ser legado
com seriedade
a humanidade se dependurando
em suas certezas
mas persiste a dúvida socrática
não sabem que toda certeza
foi construída sobre pés de barro?