Perspectivas










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O homem, o mundo e Deus, num contraponto da visão dos filósofos
Jean Paul Sartre e Sören Kierkegaard

O que finalmente teria despertado em Kierkegaard (1813-1855) a introspecção característica da atividade filosófica, depois de uma vida burguesa, alegre e hedonista, típica de um jovem de sua aristocracia e época, onde ao modo de um Agostinho em sua juventude, não tinha mais tempo ou disposição para outras atividades que não aquelas que dissessem respeito somente aos prazeres da mesa e às coisas do corpo? Teria sido tocado por um anjo, na expressão usual dos meios eclesiásticos para a definição de epifania? Como em alguns casos onde há o desenrolar de análogo comportamento, metaforizado por vezes na história de forma figurativa, quer seja como  um raio a atingir em cheio o personagem, por uma visão ardente mais próxima da própria morte, uma contemplação de algo místico inominado, ou ainda como resultado tardio de um  amadurecimento já longe da tenra idade, um determinado "chamado" de Deus, no estilo daqueles narrados no Antigo Testamento ? Os historiadores das idéias prosseguem indicando a morte do pai,  como o momentum decisivo da sua grande mudança. Seu gênio filosófico e o talento literário estavam lá, em algum lugar, de todo modo, esperando ser provocados, mas sua alma precisava de um campo maior para crescer.

O que se percebe desde logo, e isso é algo inseparável das idéias que legaria à história do pensamento, é que a sua efêmera e intensa vida seria a base imediata, a referência para todos os seus conceitos posteriores. A subjetividade de sua existência, a vivência, a leitura de mundo de um único indivíduo não era algo desprezível, passível de ser esmagado por doutrinas, por sistematizações do pensamento impessoais e alijantes. Caminhavam equivocadas, portanto, a ciência e a lógica, em busca da propalada "linguagem universal", supostamente atribuída à natureza exterior, "discursiva em caracteres geométricos absolutos", desde os pensadores renascentistas e os primeiros cientistas propriamente ditos, como Galileu e Francis Bacon.

Não há aqui, como em tantos outros pensadores da cultura ocidental, a presença do "dual" platônico, o tal mundo das idéias de um lado, contrapondo-se de alguma forma á concretude da natureza, à evidência do corpo pensante. Não há o pensador etéreo, "portador da verdade", abstraindo sua linguagem absoluta de letras e números quiméricos, enquanto de outro lado, o corpo individual, vivenciando os prazeres e agruras da carne, compõe em apartado uma sinfonia dos erros, cuja execução é solitária (esse aspecto anti-dualista, anti-platônica, anti-hegelinana da abordagem de Kierkegaard interessaria ainda sobremaneira a um outro pensador : Sigmund Freud). De forma corajosa e original, esboçava-se aqui, na infância do pensamento contemporâneo, e de certo modo, em sintonia com o período pós-revolução francesa, o surgimento de um homem angustiado com as bastilhas dos conceitos, com as políticas desumanas existentes em toda parte, com a insatisfação constatada na razão e na lógica em conduzir, através de sistemas fechados e perfeitos de pensamento, a humanidade  a um "mundo melhor", e sobretudo a prisões morais sem saída, armadas pelo intelecto em grande parte acadêmico, liderados por Hegel  e suas teias lógicas e pretensamente universalizantes, que tudo devoravam, à maneira de um dragão mítico de mil cabeças.

Kierkegaard é o primeiro filósofo contemporâneo que propõe uma legitimação teoricizante advinda das vicissitudes de sua própria vida, de uma raiz inédita do indivíduo plantada no solo da sua trajetória sobre o planeta, da sua própria existência, que é a maneira dessa vida se manifestar no mundo. O recém-nascido homem contemporâneo, angustiado com suas incertezas frente ao novo e suas inerentes dificuldades explicativas diante de um mundo bem mais  complexo, distante agora do medievo, distante da antiguidade clássica, um novo mundo repleto de novas informações, novas máquinas, novas invenções, e cuja população acaba de dobrar de tamanho, e paradoxalmente, um mundo  insuficiente em suas explanações verossímeis.

As abstrações oníricas das salas de aula se mostravam insuficientes para explicar as ruas, num primeiro momento, e principalmente, explicar os sentimentos da humanidade em choque, de forma geral. Após a revolução francesa, uma revolução burguesa sobretudo, e agora em plena consolidação da revolução industrial, ideais como "riqueza geral", "satisfação", "felicidade", "realização", ou virtudes como "compaixão", aptidões como a maior "compreensão" "solidariedade" ou "fraternidade" humanas não se tinham erigido ou efetivado conforme os melhores augúrios iluministas, que agora se obscureciam definitivamente.

Lembrando a angústia inicial presente em Déscartes, "antes" de iniciar o processo que desembocaria em uma inconsequente mecânica teísta e todo um estratagema para legitimar Deus e a lógica, lembrando-se ainda da fagulha presente em Pascal, a nobreza de seu intelecto e da temerária exposição deliberada ás forças maiores da história que terminariam por sufocá-lo, Kierkegaard corajosamente vai além e eleva sua condição singular de indivíduo sufocado pelo mundo ao paradigma maior e suficiente para deitar abaixo a escolástica ainda presente nos círculos acadêmicos. Ora, se EU estou vivo, EU penso, EU posso sentir, e finalmente EU me angustio com tudo isso que vejo e sinto, então por que nada disso que passa como um relâmpago por meu sangue não será levado em consideração quando alguém se propõe a me explicar  o mundo? Por que não estou presente nas explicações sobre o mundo, se EU é que o vejo e o sinto de meu modo particular? QUEM sente não é a classe social a que pertenço, não é uma humanidade abstrata a quem supostamente estarei visceralmente ligado durante todo o caminhar terreno, QUEM sente felicidade, dores, tédio, angústia, é algo MAIOR , que não se deve deixar sufocar por qualquer sistema.

"A verdade é o indivíduo. A multidão é a mentira". Quão sem sentido soaria hoje, em nossos dias, esta frase poderosa lançada por Kierkegaard há quase duzentos anos, quando sua angústia e inquietação espiritual o levavam a questionar os valores da época? Nossa época que vive o massacre de tudo que é individual, de toda possível liberdade, de todo gosto, de toda particularidade, de todo comportamento realmente pautado na liberdade de escolha e vivência consciente, agindo, em vez disso, em prol de comportamentos, valores, ações e dogmas que elevam as massas ao comando, doutrinas que elegem as massas ao poder de controlar a máquina, essas massas ignaras que além de perigosas por sua inerente e histórica ignorância, sua tendência milenar a se prestar como material de manobra para todo tipo de calamidade,  ausência de personalidade, sua incapacidade de sentir, incapacidade de pensar de forma coordenada e justa, padrões coletivos de ação que rebaixam cada vez mais o tipo homem, alijando-o de seu melhor potencial como se fosse possível separar o raio do relâmpago? Quão anacrônico, "fora de moda", "fora de sintonia" com os novos tempos soaria o filósofo dinamarquês em sua extremamente acertada intuição sobre a natureza humana, sobre a filosofia, e em última análise, sobre a própria vida? A afirmação de que  a salvação é o indivíduo e as massas constituem perigosa ameaça á sua sobrevivência é força que cabe ao futuro recuperar. Hoje tudo encontra-se irremediavelmente perdido na mediocrização do ser humano por uma coletividade rebaixada ás perspectivas mais primais da existência.

De todo modo, se pudéssemos enumerar quantas e quantas vezes, explicita ou veladamente, esse conceito que encerra no individual as melhores premissas orientou ou serviu de substrato a tudo que viria depois, justificar-se-ia, senão por outra maneira, a importãncia desse grande pensador à posteridade. Não foi por menos que despertou a atenção de Nietzsche, que por vias diversas se encontrava em duelo com questões semelhantes. Posteriormente Heidegger, cuja obra é, em grande parte devedora de conceitos inaugurados pelo pensador dinamarquês, a exemplo do  "conceito de angústia" para a definição e recolocação do homem ativamente como cidadão do mundo, mundo este do qual havia sido afastado pelos sistemas acadêmicos de pensamento e por atitudes desconectadas da noção correta do "ser", desviados no entender de Heidegger, desde os gregos pré-socráticos. Este conceito de angústia está também fortemente presente em Sartre, que de forma diferente equaciona uma espécie de "saída" dessa mesa de dados sufocante.

Em Kierkegaard, dada a situação histórica do mundo, ao indivíduo cabe  agir e solucionar, encontrando primeiro a sua própria verdade. Ela é sempre, por definição, algo que passa pela subjetividade,  e é um processo doloroso, angustiante. Não existem fórmulas capazes de garantir o sucesso ou a felicidade humana e essa verdade NUNCA poderá ser algo dado, objetivo, o que contraria frontal e intencionalmente o discurso racional imperativo no ocidente, desde Aristóteles, que sempre buscaram a objetivação da verdade. Deixem os silogismos, a retórica e o pensamento simples para as crianças e os tecedores de teia. Aqui trata-se de um impulso para se elevar ao patamar da descoberta, e essa descoberta, esse pathos  existencialista podendo resgatar e revitalizar o homem, tornando-o apto para um novo mundo. Algo que os gregos pré-socráticos sabiam muito bem,  mas que depois se perdeu no escuro dos tempos: alcançar uma verdade que não é proposicional, não exige demonstração, sobretudo não é  coletiva e que não surgirá sem um destemido esforço vital. Falamos agora da perspectiva do sujeito, da apropriação do mundo segundo seu próprio espírito. MINHA visão constitui o ponto de mirada a partir do qual construirei minha casa. O RESTO foi só passatempo pueril.

A tamanha angústia que surge neste processo, quando o ser percebe capaz de se autodeterminar á margem de uma suposta história da raça, à margem de escolas de pensamento que o tratem como mera abstração, o homem universal medieval e escolástico, essa angústia capaz de devorar o ser pensante, só poderá ser confortada e suportada por Deus, na visão de Kierkegaard. Um Deus inusitado, entretanto, que não advém da religião, mas de um profundo sentido de espiritualidade, que não admite ser manuseado, manipulado, institucionalizado ou finalmente comercializado por qualquer ordem ou credo. Um Deus que fala diretamente ao indivíduo, legitimando-o e elevando-o de sua imersão inconsciente na coletividade para o nível da consciência de si. De todo modo, esse sujeito, esse "EU" criado por sua filosofia, é algo transcendente, composto pela subjetividade presente, temporal, e no fundo, pela fagulha divina de algo maior, necessariamente imortal e conferido por Deus ao homem. Seu problema, digamos assim, não é da aceitação e reconhecimento da ordem divina, de onde também proviria a necessidade e imperatividade de ser ético, de haver moral, mas da forma como esse nobre preceito se afastou dos seus reais desígnios, corrompendo-se no caminho e atuando politicamente de forma diversa.


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Sartre (1905-1980) propõe um  salto sobre toda metafísica, pela ousadia de pensar, pela primeira vez, que todo conhecimento e toda experiência acumulada pela humanidade só fariam sentido a partir de um ponto único, infinitamente pequeno no planeta, mas sem o qual nenhuma ciência, nenhum conhecimento poderia se por de pé? Esse ponto, o homem,  para Sartre, diferentemente de Kierkegaard, não necessita do suporte divino. É um homem abandonado por Deus à sua própria sorte, e isso é o conceito maior de liberdade no existencialismo proposto por ele, porque sem Deus o homem passa a ser o senhor de seu próprio destino, para o bem e para o mal.

Curiosa a inserção desse conceito no ambiente pós-segunda guerra mundial, e a analogia com o  mundo político e social na época de Kierkegaard. São muitas semelhanças, e o ponto forte em comum é esse diagnóstico de uma humanidade pós-guerra que tem seus indivíduos lançados à própria sorte, após o ruidoso fracasso das luzes da razão em conduzi-los a qualquer lugar "melhor". No contexto histórico vivido por  Kierkegaard,  o saldo de mortos e tragédias causadas pela recente revolução francesa, guerras napoleônicas e guerras pela unificação regional de uma Europa que lutava para adquirir sua configuração geopolítica definitiva. No caso específico de Sartre, o saldo de escombros resultado da segunda grande guerra é o material mais imediato a propiciar as reflexões sobre um futuro sombrio a se delinear. As tenebrosas práticas perpetradas pelo nazismo, (que até hoje podem ser consideradas em conjunto como a maior violação da dignidade da pessoa humana organizada e executada de forma institucional de que já se teve notícia na história humana) a sua própria realidade e efetividade,  os dados reais sobre a barbárie apareciam bem mais claros após a guerra, e jamais seriam esquecidos. A utilização da ciência, em pleno século XX, para legitimar e levar a efeito planos de eugenia e  extermínio em massa, a aplicação das melhores técnicas e do mais apurado conhecimento para aviar a morte em escala, como no caso dos fornos de gás e dos campos de concentração nazistas, e das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, retirando os danos diretos da disputa militares versus militares e estendendo esses efeitos indistintamente sobre a população civil, ciência que em vez de diminuir a dor, reparar a violência ou divisar um estado melhor de coisas, ao contrário ajudou ativamente a contabilizar os 46 milhões de mortos resultantes do conflito, tudo isso recolocou a perspectiva da humanidade abaixo de qualquer otimismo. Não é possível, segundo Sartre, apoiado por um movimento que se estendeu também a outros círculos do pensamento, sobretudo ás artes, no protesto e indignação, imaginar um Deus benevolente  e protetor que admitisse tamanha barbárie perpetrada pelo homem sobre si próprio e sobre a vida no planeta. Toda fé, toda razão, todo otimismo, todo sonhar com o futuro foi posto definitivamente em xeque, naufragando a humanidade esclarecida e racional profetizada pelo iluminismo  sobre o mar de angústias que agora vicejava.

Esse homem Sartriano, cuja consciência acerca do estado em que o mundo se encontra manifesta-se, semelhante à abordagem de Kierkegaard, na forma de uma grande angústia, entretanto essa angústia é diferente do que sentia o pensador dinamarquês, pois não há Deus para sustentar os desígnios mais nobres do homem, e esta manifestação de angústia em Sartre se apresenta na forma de náusea, característica do homem que agora é deserdado de toda a cultura e valores anteriores, para cair ruidosamente e sem Deus sobre a nova realidade que se mostrava de forma dolorosa. Essa náusea, que particulariza sua vida e mostra quão gratuita, quão sem sentido, quão desprotegida é a vida em geral,  a natureza,  o mundo sem Deus, o humano  relegado à própria sorte, é o duro momento em que este ser toma consciência, paradoxalmente, da enorme liberdade que tem no agir, para transformar o trágico em algo assimilável. Na ausência da moral e iluminação divina, o peso sobre suas costas torna-se muito maior, e essa liberdade não está simplesmente na fruição aberta dos prazeres, ou no virar ás costas às dores do mundo. Pelo contrário, é uma liberdade carregada de responsabilidade, de ética, de saber visceralmente que, se não houver o necessário agir humano para transformar para melhor a realidade exterior, nenhuma força suprema, nenhuma força divina o fará. Abre-se mão de alguns valores, mas em seu lugar Sartre propõe a ética, a responsabilidade, e até mesmo um senso de dever para com a humanidade, em razão da compreensão da gratuidade e fugacidade da vida. Essa "escolha" pela liberdade responsável em Sartre, é uma das maiores questões colocadas pelo pensamento filosófico contemporâneo e é algo que sem dúvida ainda não está superado. Vivemos um mundo cada vez mais angustiado, apesar de tanta aparência dizendo o contrário. Propagandas do consumo em massa, da felicidade em grande escala, sorrisos em outdoors plastificados não dão conta de explicar a constante procura pela felicidade em cápsulas, potes ou contas bancárias que,  ao cair da noite, dão lugar ao reverso melancólico de indivíduos perdidos e superficiais, que andam em busca de um sentido qualquer para suas vidas e capazes de pagar qualquer preço para se agarrar á primeira tábua de salvação que se apresente, seja ela qual for. Sartre, prevendo o desenrolar dos fatos a partir do momento zero da maior tragédia já vivida pela humanidade,  propõe algo mais radical, abandonando valores que só trazem alienação e infelicidade, e "escolhendo" conscientemente a luta, a mudança. É neste agir, neste engajamento, que o homem sartriano deve buscar o sentido de sua existência.

A originalidade de Sartre, comparada sua obra a outros pensadores clássicos, está na idéia radical de que esse sujeito não encontra apoio qualquer na bem-aventurança divina. Heidegger também havia ruminado o tema, de maneira mais discreta, e diferentemente de Kierkegaard, que apoiava em Deus a possibilidade final e a justificativa para o homem, em Sartre vemos uma existência desamparada como pressuposto de conhecimento, a existência, mesmo singular, como perspectiva capaz de validar ou invalidar uma teoria, invalidar toda a corrente elaborada do conhecimento, sem a necessidade de um operador externo, de ordem sobrenatural. Os problemas e elucubrações de um simples ser humano, largado no mundo, agora páreo capaz de derrubar qualquer dogma, qualquer escola  ou sistema de pensamento trancada a chaves por séculos, mas também portador de uma "seriedade" e de uma responsabilidade muito maiores do que todos os homens do passado. Uma espécie de golpe final do carrasco existencialismo sartreano sobre os idealistas que ainda tentavam discursar num mundo arrasado.

A ciência falhara, para Sartre, pela insistência em conceber o mundo real como aquele mundo de sonhos engendrado no final do séc. XIX, sob o patrocínio das idéias iluministas que vicejavam desde o século anterior. As religiões igualmente naufragavam em seus propósitos, em sua opinião, porque para Sartre, era impossível imaginar um mundo que comporta tamanhas atrocidades sob a complacência de um Deus inerte, ex macchina,. A religião procura confortar o homem, mas esse conforto é artificial, e diminui sua capacidade de enxergar a realidade que precisa ser transformada pela "luta". Um homem que precisa da metafísica para justificar sua existência, à maneira Cartesiana, não poderia se sustentar enquanto um ser autônomo e capaz de guiar sua própria história.  Portanto, são excludentes, as hipóteses para a convivência, no existencialismo Sartreano, do homem em harmonia com qualquer espécie de Deus. Se há Deus, então existe destino e a vida humana não teria maior sentido, pela ausência de liberdade, de arbítrio. Se não há Deus, por outro lado, os homens estão "condenados" a essa liberdade, que é contudo um enorme fardo que deve ser carregado após a tomada de consciência do sujeito, pelo agir e pelo engajamento. Nesse contexto, no conceito Sartreano a religião mente ao homem um falso mundo do além para justificar sua prisão a valores que lhe interessam enquanto instituição, enquanto crença. Deve ser abandonada porque sua prática só trouxe ódio e guerras sobre o planeta. O ateísmo é pressuposto essencial para a filosofia de Sartre, mas curiosamente parece ser um ateísmo "não-dogmático". É condicional porque interfere sobremaneira na derivaçãó da idéia de "liberdade", apenas. A indiferença quanto à existência ou não de Deus parece ser uma figura mais apropriada para defini-lo. Não se nota, ao contrário de alguns outros ateístas conhecidos nas escolas de pensamento, uma espécie de "ódio" contra a figura de um Deus supremo, mas sim uma grande decepção pela constatação lógica de sua inexistência. "Se há um Deus, deveria haver menos sofrimento no mundo".... Percebe, nesse diapasão, que nada há de realmente metafísico nas religiões. Somente política. Nesse ponto, há uma inegável influência de Heidegger, porque apenas chegada a essa etapa, com o conhecimento lúcido de ter sido relegado a uma natureza exterior hostil e indiferente (ciência do ser-para-a-morte), um eterno jogo de dados em que nada mais representa do que um peão na roleta do acaso, fariam o homem cair em si (existência autêntica), sendo o diagnóstico do peso dessa grande responsabilidade o verdadeiro papel da consciência contemporânea, encabeçada pela Filosofia, pelo filósofo, pelo artista, pelo escritor, engajados por mudanças em um mundo falido espiritualmente e materialmente exterminado pela maior guerra e pela maior matança étnica já vista no planeta. O Nazismo, enquanto possibilidade, e enquanto realidade histórica, provara sem deixar margem a dúvidas, que não bastava á humanidade ter caminhado e "progredido" pelas vias da ciência, da cultura em geral ou da própria economia. A simples possibilidade de ter existido tal doutrina, e consequentemente  sua força ideológica e política macabra, conforme  registra a hisória, sepultou de vez as boas expectativas e a linearidade ingênua de se pensar o mundo como uma eterna e elevada trajetória humana, este ser privilegiado brincando em um eterno jardim perfeito. Descobriu-se, ao final, o homem ainda um animal perigoso, a besta capaz de todas as atrocidades e enquanto tornado massa, um reles objeto manipulável em prol de interesses escusos. Todo conhecimento, todas as instituições pretéritas deveriam na verdade ser alvo de suspeitas porque não conseguiram, de todo modo, evitar a maior tragédia da história da humanidade. Novos valores devem ser criados para um novo mundo. Não existia mais a figura do progresso científico rebocando a massa ignara pelos confins do planeta, como se carregasse uma tocha iluminada para a raça. Depois de tantas atrocidades, Sartre vê no mundo trágico, abandonado por Deus, o deserto a que foi relegada a raça humana, e ensaia a consciência desse abandono a si mesmo, e a escolha da liberdade como engajamento, como o primeiro momento de uma possível mudança, ainda que a duras penas.
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Tanto Kierkegaard quanto Sartre continuam vivos. Seu pensamento pulsará forte sempre que houver, em qualquer canto, a tentativa de esmagamento do indivíduo, o não reconhecimento de sua liberdade, de suas prerrogativas sobre qualquer sistema. Toda vez que a coletividade, para se alçar, estabelecer como pressuposto a aniquilação do sujeito, do ser humano, do indivíduo enfim, o pensamento libertário dos grandes pensadores será o fundamento maior da resistência. Nesse propósito, não importa a princípio se Deus será o suporte maior a legitimar e direcionar a ação do homem sobre o mundo, sobre a natureza e em relação aos seus iguais, desde que este Deus seja apartidário e referência de uma verdadeira espiritualidade, como queria Kierkegaard. Também não importa se o homem carregará nas costas a responsabilidade de um mundo sem Deus, como pensou Sartre, se o objetivo maior da "luta" será a afirmação da humanidade através da ação consciente de seus indivíduos, entes que não podem ser reduzidos à coletividade, despersonalizados em favor de qualquer regime político  nem processados como máquinas ou mercadorias por um sistema impessoal e frio.

Como o homem, em Kierkegaard, encontra-se de algum modo "garantido" pela instância metafísica, o que delimita a extensão do problema até certa órbita, de onde não será possível prosseguir, porque a partir de então estaremos no terreno da fé, algo que não admite a lida discursiva, mas que está no âmbito da inteira intuição, da subjetividade, o que resta saber é se esse homem sartriano, que desacreditado das explicações correntes para a vida, e que corajosamente abre mão do suporte metafísico para trazer para si a tamanha responsabilidade da escolha, não sucumbirá perante si mesmo, caindo no poço sem fundo do niilismo autocontemplativo. Ou seja, quando a civilização segue sua marcha e seculariza o mundo, desacreditando de um Deus benevolente e ao mesmo tempo de uma verdade científica como o discurso supremo, o que há para cultivar? Surgirão criadores capazes de iniciar um novo ciclo, criar novos valores? Surgirão novos filósofos, músicos, escritores, uma nova humanidade de artistas, enfim?

É claro que a sina desse novo ser, profetizado por vários pensadores, aparentemente mais forte e mais consciente, resultado de embates vitoriosos do próprio homem consigo mesmo, é algo de estratosférico e fugaz em se comparando com as perspectivas  de nossa era. Observa-se no mundo hoje um infeliz retorno às  velhas tábuas de salvação, um reviver do fundamentalismo mais tosco, que cresce a olhos vistos, independente da direção. O homem parece não suportar a idéia de liberdade e de ser dono de seu destino, e parece não gostar da idéia de que Deus tem muito pouco a ver com isso.  O problema maior, portanto, não é ontológico: a resposta à pergunta sobre a existência, a origem e finalidade da divindade, mas QUAL deve ser a orientação do homem, do ponto de vista ético, para habitar este planeta?? Justamente aqui é que falta a coragem à nossa raça... Afinal, é mais fácil culpar um Deus, quando as coisas não vão bem...

Finalizo este ensaio pensando num possível conflito entre o homem coletivo, fundamentalista até as tripas, cuja personalidade foi completamente assimilada pelo grupo ao qual se encontra vinculado, e cuja individualidade há muito foi substituída por outra ordem de auto-consciência forjada, geralmente próxima a valores que interessam à manipulação do Estado e a   imagem do "último homem" do Zaratustra Nietzscheano, que traz logo à tona como um desafio, quando este ser melancólico caminha sobre o fio da navalha : não se sabe ao certo qual será o resultado desse embate, mas o certo é que ele já está nas ruas.

"...Aproxima-se o tempo em que o homem já não conseguirá gerar estrela alguma..." ! 


“Olhai! Vou mostrar-lhes o último homem. Que é o amor? Que é a criação? O que é um desejo ardente? O que é uma estrela? Isso pergunta o último homem e pisca os olhos...” 


"(...)“A terra se tornará então pequena, e sobre ela andará aos saltos o último homem, que torna tudo pequeno. Sua espécie é indestrutível como a do pulgão. O último homem será o que viver mais tempo. Descobrimos a felicidade – dizem os últimos homens e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde a vida era dura porque precisam de calor. Ainda amam o vizinho e se encostam nele porque uma pessoa necessita calor. Doença e desconfiança são, a seus olhos, pecado. Anda-se com toda a cautela. Insensato aquele que ainda tropeça nas pedras e nos homens! Vez por outra, algum veneno. É algo que proporciona agradáveis sonhos. E, no fim, muito veneno para morrer agradavelmente. Trabalha-se ainda porque o trabalho distrai. Mas toma-se cuidados para que a distração não se transforme em cansaço. Já não se sente necessidade de ser pobre ou rico. São duas coisas demasiado penosas. Quem quererá ainda governar? Quem quererá ainda obedecer? São duas coisas por demais penosas. Nenhum pastor e só um rebanho! Todos querem a mesma coisa, todos são iguais. Aquele que pensar de modo diverso, que encaminhe voluntariamente seus passos para o manicômio. Em outros tempos, todos eram loucos, dizem os mais perspicazes e piscam os olhos. Somos sábios e sabemos tudo o que se passou antigamente. Dessa maneira temos do que zombar sem cessar. Subsistirão ainda querelas, mas a reconciliação vem depressa, com receio de estragar a digestão. Não vai faltar um pouco de prazer durante o dia e outro tanto durante a noite. Mas reverenciar-se-á a saúde. Descobrimos a felicidade, dizem os últimos homens e piscam os olhos.”