SAFARI



"Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?"
(William Blake)






Terra 
elemento ser
a composição de nossos braços
a morada do último pó
nesta odisséia pelo espaço

Irmãos de sangue forjados na luta
na árdua sina que se expõe ao inverso:
quanto mais dura a lida, 
maior o amor de mãe
e o sentido do universo

Trovão na lua minguante
conversas de fogo que pressente matança
pedras  cortantes afiam nativos,
ritos e alianças

Libações,  pacto entre  astros
e  matéria perecível
o medo é desconhecido destes passos
que não vêem na fuga
saída possível

Entre  gritos,  tambores e cajados
África de maracas, djembes e lanças
atiram-se ao negro Érebo os bravos
Maasais e Morans  convidam para a dança

O grande rio, afastado à  minguada chuva
sobre os espaços transitórios do solo firme
a estação e suas crias à lamúria
a terra escolhe
                         o que morre
                                    e o que vive

Sinto sua sombra margeando o Kalahari
a doce memória da carne,  o acre cheiro da morte
a inteligência navegando contra o vento
encerrando nas garras a sua própria sorte

Olhos da  noite,  de todo terror
eclipsadas pedras que desafiam o criador
cristais de amarelo âmbar
translúcido e bestial, a dádiva mais temida
espreitam  na  espiral
o poder de encurtar a vida 

Olhos que sustentam garras
ao redor vasculham:
o faro se apura, a audição se alarga
lógica perfeita por não ter sido ensinada

Milhares de anos afiando instintos
noite adentro, mata adentro
tornados presas os homens de valor
jogados na natureza 
para o prazer do predador

Entrementes, os bravos persistem
e sua coragem será logo medida
corpo a corpo contra a besta 
na mesma saga tantas vezes lida

O coração ribomba na garganta
a respiração é que cessa, presa
calafrios percorrendo o corpo
a alma vacila porque ainda ilesa

Dorso rebaixado, peito e grama colados
uma sombra que não se vê
perfil camuflado, músculos retesados
esperando o momento de ser

Do lauto descanso às garras armadas
do repouso ao mais terrível ataque
o vento jamais seria mais  rápido
que a geometria nascida para o saque

Tempo caça, tempo caçador
tudo se confunde na fração de um segundo
até que as garras lhe dilacerem o peito
até que os dentes lhe abram as entranhas
até que o sangue espirre abundante e morno
sobre o mato alto
espalhando entre os homens medo e desgosto
até ouvir o barulho  suave do próprio crânio
esmagado sem maior esforço

A vasta cabeleira amalgamada cor de terra
salpicada rubro cobre sobre a caça
desfruta o banquete em meio à guerra
deslizando pelo chão imensas patas
Deus! Como é perfeita a criatura
que brilha em seus desígnios quando mata

Humanas artes de voltar ao pó
pela ausência de dor, pela transfiguração dos corpos
bravos  desbaratados no repassar de uma vida
uma  caçada  que hoje encontra outra história
humanidade devorada, desintegrada, digerida
enquanto aos poucos se apaga a sua memória

A sensação estranha de não ser mais o mesmo
ora termina a saga humana, enquanto outra se cria
começada pó, encerrada fera
sustentados ambos pela mesma energia

Meus passos se calam, perdida minha lança  
enquanto espalho ouvidos pela planície imensa
eu estaco e espreito, os olhos se dilatam
hoje sou  leão, amanhã serei criança

Olhos para novas vias, campos aonde é novo o cheiro
neste instante não há mais  segredos no mundo inteiro
quando tudo o que é vivo testemunha a imanência
minha voz é outra e meu canto inocência

O coração sobe à boca, e eu retorno à selva
tenho garras, sou altivo e sagaz
correndo mais uma vez entre os vivos
enquanto minha  memória antiga se desfaz
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Poema inspirado no filme "A Sombra e a Escuridão" (The Ghost and the Darkness), de Stephen Hopkins, Paramount, 1996 e no livro "Os devoradores de homens de Tszevo", de Henry Patterson.