Memórias do parquinho (parte I)

Dia de sábado na cidade. rachando fora do barulho para o campinho de futebol soçaite mais próximo. oba!! campo deserto! pai e filho se arvoram no gramado ralo. filho aí pelos seus cinco anos. pai mais trinta na escala da vida. dia de sol e plenitude. felicidade jogar bola com meu filho. brincadeira de dupla, com chutes a gol e rebatidas. brincadeira de dribles, com os bofes (meus) pra fora depois de umas corridas. tudo vale pela causa.

Depois de meia hora, surgem "rivais" no gramado. pai e filho também.  filho aí pelos nove ou dez. pai, mais trinta e cinco na escala da vida. cumprimentos introspectivos entre as duas duplas. eles ocupam o lado contrário do campo, na outra trave. o menino é sempre meio barulhento, quer chamar a atenção. observo entre intervalos, sem grande preocupação, a não ser o sentimento de uma certa privacidade quebrada . aquela privacidade que todo pai gostaria de ter, quando está dedicando uma parte valiosa do seu tempo e energia, e cisma em  achar que é o rei do gramado onde pode brincar sua família. Depois de uns dez minutos, o pai-de-lá dá uma sumida. vai ao carro, estacionado perto. parece procurar alguma coisa. volta com uma espécie de livro, de apostila, e senta-se à beira do gramado, na cerca, enquanto seu filho joga sozinho. alguma coisa destoa. não é a primeira vez que vejo este quadro de fim-de-semana. quando não é pela omissão, é pelo excesso de gritos e cobranças dos pais sobre os moleques assustados.

O outro menino obviamente não entendeu nada. meu filho também não percebe a cena e continua pedindo bola no gol. chuto. ele pega. chuta de volta. o sol ainda não está tão quente, e o céu continua de um azul indelével. o menino do outro lado se desconcerta um pouco. chuta sozinho para um gol sem goleiro, do outro lado do pequeno campo soçaite, e de vez em quando espicha os olhos para ver como vai o futebol aqui, deste lado do planeta. olha e dá umas risadinhas meio sem-graça, de vez em quando.

Eu me incomodo de vez com a situação. o pai, a princípio, dá umas palavras com o moleque, simulando um incentivo,  mas depois se absorve no que quer que esteja lendo, e larga o garoto definitivamente sozinho. o guri deixa os ombros caírem e desanima geral. Vendo o garoto sozinho e perdido, não resisto e resolvo chamá-lo para jogar conosco, do lado de cá do campo. o moleque, como se ja´esperasse o convite desde o ano passado, sobrevoa a grama rala em uma fração de segundo e já está aqui, pedindo bola no gol. fica feliz e vibra, muito espontâneo. A cada lance, cada drible ou chute bem sucedido, grita e abraça, dá socos no ar feito Pelé, como se estivesse numa final de copa do mundo. meu filho, embalado pela nova e revigorante energia, vibra junto. O seu pai, que demorou um pouquinho pra perceber que o filho não estava mais lá, agora reparou na nova cena e pareceu bastante incomodado. _Certamente virá resgatar sua cria do terrível raptor! pensei... Nada! A cara não foi feia o  suficiente para vir reclamar,  mas seu rosto estampa uma espécie de despeito pelo desafio explícito ao seu poder ancestral de pai. Olho de volta, desafiador, e ele mete a carranca novamente no raio de livro, ou apostila, ou revista, ou jornal, nem sei bem daqui o que o cidadão está lendo, mas já estou puto com aquilo tudo.

A essas alturas da vida já tenho plena ciência das dificuldades de qualquer relacionamento. Entre pais e filhos não poderia ser diferente. Não sei da história daquele pai. nunca o vi, nem antes nem depois, mas em se tratando de humanos, basta ter mais de um, seja amigo, namorado, irmão, cônjuge, colega de trabalho, para estar colocada a chance de haver desarmonia, rupturas. As uniões humanas são dinâmicas, tendem sempre à separação, à descontinuidade, e toda ordem reversa para se alcançar harmonia e permanência é sempre uma atitude humana negociada contra as leis do mundo e deverá ser sempre recriada a cada dia, se quiser persistir. Não há trégua. Entretanto, restam as outras responsabilidades existenciais de que não se pode abrir mão, para que o mundo continue sendo mundo e talvez fazendo algum sentido: Qualquer pai mortal, assim como eu, já teve seus dias ruins. Entretanto, não quisesse ser pai, não gerasse um  filho. Tivesse o filho por alguma razão, cuidasse então para que ele tivesse também um pai, ou no desinteresse total pela condição paterna, pelo menos não tentasse impedir que outro assumisse seu lugar. Ser pai, antes de ser atributo físico ou biológico, pessoa, é muito mais atitude e afeto. Consigo imaginar diversas atitudes paternas e reais sendo cumpridas pelas mais diversas pessoas dentro de uma família, ou também por qualquer gênero ou qualquer tipo de arranjo familiar não ortodoxo. Como está cansada de nos mostrar há pelo menos um século a rica abordagem psicanalítica, muitas vezes dentro do que é mais tradicional e corriqueiro é justamente onde alguns monstros criam morada e surgem as maiores lacunas e desvirtuamentos.

As coisas do mundo também são parcialmente compreensíveis, em seu aperto cinza: Quem é pai e já não esteve em algum momento de dificuldade ou exigências da carreira e precisou deixar de cumprir alguma tarefa afetiva ou compromissal por conta da pura necessidade? De ter que dizer um não em um momento importante? Isso existe, e eu também conheço a cantiga, mas há algo de desumano em levar um filho no parquinho, no campo, num dia onde sequer há outros coleguinhas disponíveis e não poder lhe dar atenção, apenas em função de algo que está no carro e supostamente precisa ser lido. Também precisamos aprender a odiar: não a figura humana do cidadão a alguns metros ali na ponta do campo, mas o arquétipo do pai inexistente e suas nefastas consequências sobre o mundo.

Só ama verdadeiramente quem um dia já sentiu ódio por alguma razão. Pois aquele pai anônimo ocupou num sábado de manhã qualquer o lugar do odioso e infame anti-pai universal, o lugar da ausência, da falta de conexão com o nobre papel nesse teatro da vida dentro do qual o acaso e a natureza lhe deram a sorte de poder representar. Pior: se assim ocorre por algum qualquer desaviso justificável, um pai deveria saber liberar seu filho para outras possibilidades do mundo, e não tentar aprisioná-lo mentalmente com uma cara feia, espécie de censura moral, cada vez que o mundo chegasse mais perto e tentasse resgatar sua cria para  diminuir-lhe a dor. Se fôssemos mais americanos e apaixonados em estatísticas, tentaríamos contar quantos pais se sentem integrados neste momento a seu difícil e gratificante papel no mundo? Quantos assumem essa missão, mesmo que ocorra a possibilidade cantada pelo poeta, de "que  isso não dure no tempo, mas que seja intenso enquanto durar..."? O que vale jamais será a quantidade de horas de convívio, mas sempre a qualidade delas.

Sei que a cada dez minutos eu ficava cada vez mais puto com esse pai e por tabela, com o estereótipo de todos os anti-pais do planeta. Talvez o mundo fosse melhor se não houvesse tantos anti-pais, tantos fantasmas ocupando a posição. O anti-pai não é pai por três motivos: primeiro porque tem a criança aos seus cuidados sem jamais ter tido a intenção de cuidá-la. Segundo,  quando a deixa de lado na primeira chance, para se dedicar ao seu "algo mais importante" que com certeza poderia esperar pelo menos por mais uma hora sem que isso derretesse seus fabulosos projetos de vida. E em terceiro lugar, ao se indispor de forma egoísta contra qualquer saída que o próprio mundo possa oferecer. Nesse dia, eu e meu filho fomos o mundo, a acolher de braços abertos aquele alegre menino de 10 anos que por um dia não teve pai.

Havia alguma lição a ser aprendida ? Não sei. Sei que o sábado de manhã foi bom e foi rico. Saímos eu e meu filho depois de uma hora e pouca, o sol já começava a pegar, todos jogaram bola até rebentar. Na saída, não teve cumprimentos.