Valhalla (parte I)


Thorvaldsen saía mais uma vez ao mar. Não era chegada ainda a época certa, mas o inverno teimava em não ceder espaço para a tímida primavera do hemisfério norte. A nevasca cobrira as estradas  de grossas camadas de neve e o frio excessivo deste último ano pressionava o líder do clã a tomar logo sua decisão, antes que fosse tarde demais. Os estoques de carne, óleo e víveres tinham praticamente se esgotado, e a colheita no último outono fora a pior dos últimos cinco anos. As ovelhas  alimentadas com as últimas resmas de feno davam o leite minguado que ainda garantiria por alguns dias o sustento das crianças, mas se nada fosse feito logo, ele sabia que em breve todos morreriam.

Convocou os outros chefes da península. Knut, o pequeno, Olsen filho de Olmyr, Balder Vermelho e o grande Khors, o Formidável, para uma rápida reunião, e em menos de duas horas chegaram ao veredito: partiriam em uma semana, no raiar do dia. Iniciaram logo os preparativos,  com provisões, lanças, escudos, malhas de metal e capacetes alojados nos três Drakkar que já esperavam no pequeno cais coberto de neve. O medium sacerdote Lokster previu bons augúrios ao manipular as vísceras de um carneiro recém-sacrificado, como era o costume.  Ergueram suas preces a Odin, por uma boa viagem, e também ao deus Thor, pedindo a concessão da vitória na guerra ou a morte gloriosa em combate, além de um retorno pelo mar livre das tempestades. O chefe Thorvaldsen despediu-se da esposa Ingrid, da filha mais velha, Astrid, e das crianças, e zarparam no início do sétimo dia, com oitenta e cinco homens rumo a oeste, dois remos extras por barco, e a intenção de ancorar na costa inglesa norte  o mais rápido possível, antes que acabasse seu suprimento de água, cerveja e carneiro salgado.

Zarparam com velas a meio vento e remos sincronizados, remada alta em superfície da água ainda semi-cristalizada de gelo quase derretido. Navegavam suaves na brisa da manhã, entre os fiordes gigantes Levensträtt e Uxöndir, que contemplavam os barcos em fila saindo do pequeno cais, em seus cumes refletidos no azul do mar profundo. Silenciosas e imponentes, as montanhas de pedra estavam da base ao topo cobertas de neve espessa, que ia rareando aos poucos em verde musgado quando mais próxima das águas. Pinheiros resistindo bravamente, salpicados nas encostas. O verde mais claro, entre plátanos e carvalhos, era sinal remoto das matas que começavam a ensaiar a renovação de suas folhas aqui e ali, mas ainda sem muita força por causa do frio excessivo deste ano. No caminho, enquanto remavam, os homens iam colocando em dia as conversas sobre as coisas da aldeia, por um lado temerosos pela fome batendo á sua porta em razão do tenebroso inverno.  Por outro, alegres e ansiosos pela iminente batalha que se anunciava, trazendo de novo à alma a perspectiva da vitória e do retorno à mesa farta, além da enlevação pelo espírito da guerra, o aumento do vigor há muito não sentido pelo grupo, desde a conquista das derradeiras prendas  na última incursão à costa inglesa.


Thorvaldsen, o chefe da expedição, pensava no futuro casamento da sua filha Astrid, que contava apenas dezesseis anos e já era tão bela quanto a mãe. A pele mais bronzeada e com um corpo cheio de curvas e grandes olhos de âmbar esverdeado. Não era alta para os padrões nórdicos, mas seus  cabelos lhe davam a medida certa e mágica entre a suavidade da beleza clássica e a agressividade dos bárbaros quando desafiados em batalha, descendo longos e anelados, numa mistura de  castanho escuro e avermelhado pelos ombros, em grandes e harmoniosos cachos chegando até a cintura. Dentre os guerreiros a bordo do primeiro Drakkar, havia  Olsen, um dos pretendentes à filha do chefe. Assim como Skäsrgaard e Harald, também pretendentes, que seguiam no terceiro barco, Olsen era excelente guerreiro, destemido e forte, mas por causa da idade ainda demasiado jovem, fora impedido de participar nos últimos saques à costa inglesa, e precisava provar-se agora em batalha para alcançar as graças do chefe do clã.  Também havia outro agravante, na disputa pela mão de Astrid: O chefe era amigo fraterno do pai de Harald , Ärgo Lindder, e corria boato de que provavelmente ele seria o escolhido por conta dessa amizade.


Olsen tomara-se de amores por Astrid desde que a vira pela primeira vez, e ela estava se divertindo entre outras garotas de sua idade, nos jogos de abertura do solstício de inverno. Os olhos dela capturaram definitivamente sua alma guerreira e cravaram-se em seu coração quando a viu, aqueles olhos do céu noturno da aurora boreal, que cintilam como estrelas durante todas as noites do inverno polar, equilibrando numa alquimia quase impossível todos os verdes, azuis e amarelos rajados que há no mundo. Olhos de safiras brutas lapidadas no fogo.  Decidira então, antes de partir, que se não se provasse o suficiente em batalha para garantir a preferência pela mão da filha do chefe, encerraria seus dias na Terra ali mesmo, na costa de Northumbria,  na luta contra algum bretão. Afinal, a terra prometida de Valhalla e os súditos de Odin acolhiam muito bem os guerreiros recém-chegados ao paraíso por uma morte honrosa, independentemente de sua idade. Decidira-se: ou voltava para Astrid, ou não voltaria jamais.

Desde que proferira em alta voz esse juramento oculto em frente à sua árvore sagrada, uma espécie de maldição pairava sobre sua cabeça, e mesmo as runas que ganhou de Astrid, em segredo, para usar como amuleto, não aplacaram seu espírito. Aonde estivesse, ostentando aquele cordão no pescoço, o mar verde-cinza-profundo era sempre a mistura dos olhos de sua amada nos dias mais frios. O pôr-do-sol no fim do outono era o seu rosto quando tocado pelo noivo secreto, nos momentos que ainda podiam ficar a sós. O sangue rubro que tirava dos inimigos, temperando  sua espada de aço pálido laminado, era a cor dos lábios de Astrid, quando acabava de beijá-los. Inaugurando uma experiência nova em sua vida, sentia o corpo doer quando era obrigado a manter-se longe, apenas observando-a, sem ser notado. Os movimentos, o vento deslizando suavemente seus dedos sobre os cabelos, e um sorriso que escondia muito mais do que revelava. Até mesmo o tempo deixou de ser o intervalo entre lutas, jogos e trabalhos no campo ou entre as diversas incursões sobre terras bárbaras, para ser a significação rasa ou cheia de sentido entre estar ou não na presença de Astrid, sentir seu hálito doce de ameixas e  se enroscar novamente nos seus cabelos macios. Se tudo desse certo, considerando os planos já anunciados pelo líder Thorvaldsen, os preparativos para o casamento no melhor estilo Viking  deveriam se iniciar logo assim que ele decidisse quem seria o escolhido, juntamente com a primeira semana do verão e antes do solstício, para trazer a sorte e as graças divinas, conforme a tradição. O pai anunciara essa intenção havia pelo menos três meses, e queria logo ter  netos saudáveis e espertos para complementar o clã. Uma boa presa de guerra seria presente bom o bastante para o novo casal iniciar a vida, e a costa inglesa norte havia dados bons prêmios aos últimos saques desde a descoberta do caminho marítimo, há quinze anos.

Tempo bom, lua cheia sinalizando os mares na medida certa para um Drakkar bem conduzido entre brisas e remos.  Cerveja escura, nozes e castanhas, maçãs e ameixas secas, queijo de cabra, carneiro em conserva e vinho forte para a remada. Cogumelos comestíveis e medicinais alucinógenos também seguiam viagem, guardados como reserva extra num grande embornal seco, e ficavam sob a tutela de Lokster, o medium sacerdote. Lokster sabia a medida exata de cogumelos e vinho, para a hora final antes do embarque. Era uma arte adquirida com a tradição e os séculos. Usando o cogumelo errado ou  quantidade excessiva, os deuses da guerra entrariam em conflito entre si e a alucinação destruiria as habilidades guerreiras. Se houvesse vinho demais na mistura, o grito não seria alto o suficiente para convocar os deuses, e os homens ficariam moles e indolentes, perdendo a coragem. Ao primeiro sinal de terra a vista, todos tomavam a mistura, que lhes renovava as forças para a guerra e tornava mais forte a vontade de se reunir com os deuses em Valhalla.

Juntamente com o batido forte dos tambores de pele dupla de carneiro e as cornetas rústicas de chifres, entoavam durante a viagem os cantos ancestrais e os gritos de guerra em louvor ao deus Thor, para espantar a friagem que ia ficando para trás à medida em que se aproximavam rapidamente da costa inglesa. De norte a norte do círculo polar, cortando em paralelo a costa da Northumbria inglesa, quatro noites e cinco dias, aportaram na manhã do quinto dia, já com o toque dos sinos de alarme da vila mestre, onde a população ainda não tinha provado o duro metal das espadas Vikings. Entretanto,  a aldeia mais próxima, dez milhas acima, já havia sido batizada pelo fogo no inverno passado, e conhecia a fama dos guerreiros nórdicos, que se espalhara rapidamente pela região. Abrindo vanguarda com lança e corrente, Knut, o Pequeno, deu o grito de guerra e Balder, o Vermelho, saltou logo em terra com espada e escudo nas mãos, enquanto o terrível Kors, do alto de seus dois metros e dez de altura, vinha logo atrás, com seu terrível  martelo.  Não tardaram a chegar em frente aos portões do velho castelo Arrival, antiga sede do governo provincial, e agora transformado em resistência última na fronteira norte pelo atual rei da inglaterra, conde de Alberland.


A pequena fortificação, embora antiga, ainda oferecia resistência, razão pela qual Balder e mais seis companheiros voltaram aos Drakkar ancorados na enseada para trazer o grande aríete de carvalho sólido. Oito metros de tora de madeira cortada, chanfrada e passada no fogo para criar resistência, a madeira endurecida como pedra não teve dificuldade em botar abaixo os portões maciços do castelo, permitindo a entrada dos guerreiros com todo o ímpeto. Enquanto Olsen e Knidir comandavam as brigadas de arco e flecha, alvejando os soldados britânicos sobre as plataformas mais elevadas de defesa, Kors chefiava o restante porta adentro da construção, com toda sua força.

Alucinados guerreiros em seus gritos de guerra foram destruindo tudo em seu caminho, passando os homens no fio da espada e poupando apenas as mulheres e crianças. Os residentes  ainda tentaram se defender com bravura, utilizando flechas em chamas, piche fumegante jogado do alto sobre as escadas de assalto, mas o número da guarnição não era suficiente, e ao final de duas horas, não havia mais nada de pé no castelo. Entretanto, na tomada do andar superior, para surpresa dos guerreiros, os oito homens da guarda de câmara real, escondidos sob o jardim elevado, investiram contra o líder da expedição, matando três vikings e ferindo o chefe no ombro com um golpe de espada. Á retaguarda estavam Olsen e mais cinco homens, e numa fração de segundo, as pesadas espadas vikings venceram a última resistência britânica, atirando todos os vencidos pelas ameias do próprio castelo, a vinte metros de altura, e salvando a vida do líder Thorvaldsen . Apenas Raleigh, chefe da guarda real, responsável por matar com piche fervente a maior parte dos primeiros Vikings que tentaram subir pelas escadas, foi preso ainda vivo,  acorrentado e condenado à morte no terrível suplício da "Águia de Sangue", quando voltassem em breve às terras Vikings.

Frustrando expectativas, o castelo atacado não era mais o centro do governo da província saxônica, há pelo menos uns trinta anos. Thorvaldsen tomara nota desse aspecto, para direcionar as incursões futuras, que doravante deveriam estudar a investida terra adentro da Inglaterra, entrando com as embarcações pelos rios até alcançar o interior da grande ilha. Mas para compensar pelo menos a atual campanha, já havia o bastante . Apesar de não ser dos mais luxuosos castelos, as câmaras mortuárias e as capelas da igreja ainda eram paramentadas com algum luxo, restando muito ouro, pedras e moedas de metal precioso. Knut voltara da sala-cofre, com taças, crucifixos incrustados de pedras, alguns  colares e diversas moedas douradas. Deu as pedras maiores ao líder Thorvaldsen, que reservou um baú de pratarias e moedas para si, separando outros três para o resto da tripulação.

Caminhando no meio da horda de guerreiros reunidos, o chefe entregou uma boa parte do saque ao seu futuro genro Olsen, escolhendo-o assim dentre todos os pretendentes para casar-se com sua filha, e destacando seu merecimento pelo valor na batalha e também por ter salvo sua vida. Olsen aproximou-se do líder, para receber o que lhe era devido quando, subitamente, foi interrompido pelo escudo de pontas de Harald, rival na pretensão sobre a filha do chefe, que sentindo-se preterido na escolha, tornou-se a própria cólera em armas. A presença de Astrid de alguma forma estava entre eles, com seu perfume e o doce som da sua voz. Matariam para ter aquela mulher. Antes que o rival se preparasse, Harald retomou a ofensiva já foi desferindo um golpe alto com a espada, ao que Olsen desviou-se agilmente, rolando na terra úmida e já pegando uma lança jogada ao chão. Os homens olhavam, meio surpresos pela súbita investida do amigo, quando na segunda arremetida, o escolhido girou o corpo pela direita, desviando o novo golpe e cravando forte a lança no peito do desafiante, que perdeu assim seu último fôlego, estatelando-se inerte numa enorme poça no chão de barro vermelho.

Em seguida, Olsen, cansado, ferido num braço e duplamente vitorioso, ainda  com o rosto escuro da fuligem dos portões queimados e a lança suja de sangue, ajoelhou-se em agradecimento ao Líder do clã, e recebendo uma grande taça de prata incrustada de grandes pedras verdes, ao contemplar por um segundo o reflexo do sol nas pedras  lembrou-se por um instante  dos olhos brilhantes de Astrid, e em como eles ainda continuavam  em seu espírito desde a primeira vez que a viu, e se sentira definitivamente vinculado a ela num plano metafísico e atemporal.

Após o saque, retornaram aos seus barcos, cada um deles com a parte que lhe cabia no tesouro recém-espoliado.  Alguns levavam ainda mulheres e escravos para ajudarem nas tarefas do cultivo e na criação de ovelhas da aldeia. Diante dos ritos fúnebres cerimoniados por Lokster, queimaram em grandes piras os amigos guerreiros abatidos durante as lutas. Como era a tradição nos funerais, todos bebiam muito vinho e muita cerveja escura, riam e comemoravam a entrada dos amigos recém-mortos no grande palácio de Valhalla, e sabiam que ainda naquela noite eles certamente estariam ceando na grande mesa com Odin e os imortais. Antes de partir, banquetearam-se ali mesmo, no  acampamento improvisado na praia, entoando cantos da sua vila e assando carneiros e vacas arrebatados dos anfitriões. Pela manhã bem cedo do novo dia, encheram as reservas dos barcos com todo o cereal que encontraram nas despensas do castelo, e algumas ovelhas gordas extra para garantir a viagem de volta. A gelada costa azul norueguesa aguardava ansiosamente a sua volta.