O sonho partido

Acordar pela manhã e perceber naquele dia incomum, que nasceu das sombras
o momento exato no tempo em que a realidade foi parida precocemente do sonho,
engendrando no seu ato de dar à luz uma criança dura e fria...

Acordando consigo toda dor,  todo pranto e todo tipo de frustração
infligindo ao corpo o corte  como uma faca a rasgar-lhe o flanco
sangrando assim os elementos mágicos que habitam o mundo dos sonhos
e criando a percepção de que viver  é nada mais
do que simples contradição

Porque o tecido do que é vivo não é contínuo e fluido
mas permeado de rupturas, um tecido grosso
composto de cicatrizes toscas que se sobrepõem

Acolher essa criança selvagem no seu colo sem que tenha sido preparado
constatar que obteve do sonho apenas um balde de água fria em pleno rosto
justamente na hora em que esperava nada menor que um beijo
naquele exato momento em que o sonho prometera desvelar  sua essência
e Maya, convencida, tiraria os véus depois de muitas promessas de sedução

Perceber que cada  nascer do dia é  ruptura
e que a continuidade é algo que só existe no reino da fantasia
perder-se na dúvida entre saber se sua verdadeira essência
é esta agora,  a mesma deste ser trôpego, assustado e morno que surge
quando os raios impertinentes do sol agridem toda retina
ou era aquela de antes, quando fechados os olhos às vicissitudes do mundo
o verdadeiro mundo se criava
enquanto suas melhores forças uniam-se à sua melhor arte
para transformar a si mesmo em algo alado, com garras e vontade forte
algo capaz de plasmar numa só vida  toda vontade com o devir
enquanto a alma joga cartas com o destino,
chamando-o pelo primeiro nome

Se em algum momento esse pacto se perde sem explicação
e o corpo ainda assim se levanta, porque levantar-se é a mecânica de toda vida
percebendo que todo dia tem que ser recomeçado do nada
todos os dias durante uma vida neste planeta
e que todo sonho era apenas uma carícia fictícia
nada mais do que o curto beijo
que sempre antecede o tapa no rosto do despertar

E o verbo de viver torna-se partilhar a mesma sorte,
mesmo sem querer , da tal humanidade
apenas os grilhões de  pertencer a uma dada categoria de vida
todo esse  niilismo entranhado que assola e governa a vida humana
apostar que tudo que não foi, toda a potência do que poderia ser
no limiar de uma nova aurora  jamais o será de fato,
a não ser promessas de um grande castelo de areia
construído em outro lugar que não seja a Terra,
num tempo que não será o nosso
promessas esperando que as ondas inclementes da incerteza
um dia se compadeçam

Saber que esta é, de fato, a única  característica comum
entre todos os mortais
e sentir, por fim, que,  mesmo com todos os avisos, contra todas as vacinas e recomendações de cautela , para quem inusitadamente adquiriu por sua conta e risco o gosto de viver, aquilo que designamos por vida às vezes é mesmo a maior negação de todas as possibilidades...