Mineral

Escrever para não morrer, escrever para não morrer
como se isso tivesse alguma real importância
como se não fôssemos apenas aqueles grãos de areia da praia
misteriosos minerais capturados durante bilhões de anos
no seu passeio livre
e plasmados em forma orgânica
de filamentos helicoidais
transmitindo-se impunemente
às futuras gerações
era após era

Enquanto humanos, indivíduos ou coletividade que seja
aos olhos do universo
somos uma espécie de nada
_ou talvez menos que isso, posto que até mesmo o vácuo
espacial tem lá suas funções na física dos planetas_
somos portadores de uma tamanha insignificância
que daqui a algum tempo
_ para nós, um tempo enorme_
_para a natureza, um tempo ínfimo_
não terá feito a menor diferença
o fato de termos existido ou de ter subsistido
na hipótese remota qualquer tipo de legado
depois de varridos os últimos vestígios
da civilização
não haverá qualquer choro, palmas
ou pedido de bis

Tanta arrogância, tanta pretensão
condensadas neste reles animal de sangue quente
tão inadaptável às circunstâncias exteriores
tão dependente sempre de todo conforto
de todo artifício
numa palavra, incapaz
de ser apenas natureza
como é a natureza

No papel árduo e tantas vezes insano
de nos tornarmos a cada dia mais humanos
esquecemos o sol e nos esquecemos
da nossa condição de partículas em
eterna dissolução

Essa desmemória é o que nos justifica
nos faz construir castelos
nos tira da cama pela manhã
quando gostaríamos de continuar sonhando

Mas essa desmemória também é o que nos afasta
a cada dia mais da chance de superar
as eternas limitações do corpo
para perceber toda energia
que nos sustenta ao redor