O último mergulho


(editado)

Enquanto o horizonte diminuía à proporção em que a viagem abraçava seu destino, o carro descia vagarosamente o último trecho de morro antes da chegada. Lá na frente, num pequeno ponto de luz, o vértice azul de um mar verde e brilhoso triangulava num foco de aumento constante.

Como as lentes de uma câmera em mãos amadoras, procurando alcançar em zoom seu objeto num ponto específico da paisagem, o vértice de mar apontava como uma seta para baixo,  ainda a longa distância, transportando a luz para o interior das quatro visões infantis que, justamente nesse instante, paravam toda a bagunça no banco de trás do automóvel e silenciavam por uns segundos, estendendo a vista até onde dava e atravessando com o olhar o pára-brisas daquele poderoso Fuscão VW Azul Claro  rasgando o universo em direção à praia.

Um ano se passara, até então, desde que tinham ali estado pela última vez os quatro irmãos. Vinham há duas ou três horas na estrada, e como fazia parte de uma brincadeira ritual, repetida todos os anos por incentivo dos pais, passavam boa parte do caminho tentando ansiosamente identificar e relembrar a preciosa rota  para o balneário, como um navegador português a procurar um novo caminho para as Ìndias. Esse processo humano e ancestral de diferenciação da natureza e identificação da vida pelas beiradas, buscando referências acerca do mundo e das estradas ao redor, sempre muda a cada era, para permanecer o mesmo.  Se nos tempos idos, homens peludos perdidos em planícies distantes com suas rudes ferramentas, marcavam o caminho da caça, memorizavam o efeito das plantas e dos ciclos da natureza, pintavam suas danças e seus rituais nas paredes das cavernas, os novos filhotes primatas, a bordo de sua nave atemporal e azul, incorporavam a seu imaginário aquilo que a própria vida trouxera no último ano, em termos de amadurecimento e aprimoramento cíclico da capacidade de interagir com o que os rodeava. 

Sobressaíam na tenra idade os instintos como olhos de pegar o mundo. O cheiro do mato, da cidade, das fazendas da terra natal, a duzentos quilômetros do litoral, sendo substituído gradativamente por cheiro de estrada, de queimadas recém-tocadas à beira da praia, cheiro molhado e revigorante do ar salgado,  antecipando-se e misturando-se  aos poucos ao doce e irresistível odor acre dos abacaxis e às exuberantes amendoeiras saídas de recente florada, já frutificando e prontas para ceder as famosas castanhas para a festa da molecada. 

No contorno da vida que sempre se renova a cada ciclo, cada verão era diferente porque mudados estavam seus personagens. Pareadas pelo adentramento nos anos primários de escola e condensadas numa bateria de perguntas disparadas a cada dez ou quinze minutos , as questões à queima-roupa metralhavam impiedosamente o ouvido dos pais na busca de uma certeza sobre o caminho, o que já denotava nos pequenos a primeira instilação dos venenos de alguma ciência, leituras e a malícia dos primeiros conhecimentos científicos na quantificação da humanidade. "Pai, falta muito?!", "Já chegamos?", " mãe, tô com enjôo".. E é claro, não faltava também o famoso e derradeiro "Eu vi primeiro, eu vi primeiro!!", certificado de propriedade visual sobre o mar e declaração de abertura oficial do verão, grito de guerra bradado pelo primeiro navegador a avistar a praia, e grito tantas vezes lançado em falso, antes da hora, nas primeiras curvas da estrada, por pura ansiedade ou vontade de ser o real descobridor.

Saltando desse cume para outro, de verão em verão, como às vezes parece ser a vida quando você a vê em retrospectiva, e no apanhado geral daquilo que julga no momento ser o bem mais valioso, você acabará esquecendo todos os detalhes e as sutilezas perdidas que, no justo instante em que foram engendradas, faziam todo o seu mundo ter sentido e pulsar. Estratégia da própria vida para tornar seu curso fluente e evitar apegos exacerbados ao passado, uma vez que é no devir que o mundo se faz. No agora, entretanto, essas situações tomadas pelas mãos de um adulto melancólico, apenas poderiam tentar uma união improvável e um tanto artificial entre os cumes dos montes com uma invisível cola de visgo subjetivo e injusto, o que não diminui  jamais o que elas significaram na magia de sua época própria, mas talvez possa eclipsar todo o resto em prol de uma memória memorável. 

De todo modo, prosseguiam os primeiros verões de praia em seu destino  inexorável de trazer o amadurecimento do mundo aos olhares que nunca se repetiam, porque olhar de criança é sempre único. Numa outra viagem, no ano seguinte, a tentativa de mesclar conhecimentos com sensações e civilização, na busca da identificação visual de curvas de montanhas que seguiam paralelas ao carro. Durante um bom tempo, recém-saídos de uma região entre morros, rumo à planície costeira. Era fácil verificar e deduzir, cerebrando, que os padrões geográficos mudavam radicalmente nesse caminho, desvelando o segredo final muito antes da hora para as mentes atentas e observadoras dos maiores, ali no banco de trás, mas mantendo ainda os menores alienados no doce sonho da não-ciência. Da mesma forma, era possível matar as expectativas nas outras viagens, pelo olhar atento ao mundo humano do comércio e aos postos de gasolina e restaurantes à beira da estrada, vendedores de produtos típicos como coco, abacaxi, peixes e frutos do mar, que de forma mais intensiva iam aparecendo, e deixando clara a maior proximidade com a terra de Netuno. 

Tudo isso concentrava-se num grande final de tour, quando as quatro cabeças, disputando lugar e hierarquia no banco de trás do carro, levantavam-se na alternância ritmada de um piston, tocado por um experiente jazzista, que maneja seus dedos improvisando sobre as teclas do instrumento, ora subindo uma, ora baixando o pino de outra, sem saber de antemão qual o som que ensaiaria a melodia final. Uma coisa era certa: o grito de "eu vi primeiro!"... Que já fora proferido por todos, em diversos anos e contextos diferentes, às vezes naturais, pela própria visão súbita, outras armado pela mãe, justiceira, que tentava democratizar as chances de olhar sobre o mundo, garantindo que cada pequeno também tivesse sua vez de proferir o grito de guerra. Era natural que o mais velho dos irmãos e mais experiente nas estradas lograsse êxito na empreitada frequentemente, pela sua altura, o que lhe permitia ver mais longe, e pela experiência, por saber matematicamente que o final se apresentava, ou  até quem sabe, por malícia em distrair e ludibriar os demais, quando chegava a hora do grito. Então, no afã de conter os ânimos e justiçar as chances de tomar o mundo, o ímpeto juvenil de poder era contido aos conselhos de : "Deixe a pequena ver desta vez, porque nunca viu antes"..., ou "Finja que está dormindo, e que você nem reparou". Tudo bem, uma pequena frustração na mochila das vaidades, mas que logo era suprimida pelo prazer redescoberto nos olhos de outro que também podia descobrir.

Sol todo dia, água gelada do mar temperando os pensamentos que corriam soltos, semelhando a sensação boa de flutuar que nos nutre a alma desde que estávamos no ventre materno, há não tanto tempo, e nadávamos numa piscina particular de água morna ao nosso dispor, sem poder ver nada, mas imaginando por outros olhares internos o que o mundo já preparava para exibição nessa tela infindável de cinema 3-D. Passavam-se os dias, nessa estada em praia, e tudo tinha cheiro do novo, tudo molhado de algas, de maresia, de peixes salgados e muita areia. Não há melhor sensação de se sentir aconchegado num lugar novo do que se deixar molhar pelas suas águas.  Ainda hoje, quando chego a qualquer praia, montanha ou a outra cidade distante, só tenho a sensação de estar realmente vinculado depois que tomo um bom banho, nem que seja de chuveirada quente nas costas. Mornas, frias, espumantes, salgadas, geladas, água de pedra ou águas de mar. É como se todos os elementos que sempre compuseram a história daquela região, daquele povo, daquela geografia, viessem saudá-lo e abraçá-lo através da água, dizendo para que fique à vontade e aproveite bem os seus dias. "Molhe-se, portanto! Mergulhe!"... "Absorva esta essência, torne-se líquido...." "Deixe a vida fluir em você"... A própria vida dizia, todos os dias pelas manhãs, ou pelas tardes, na infinidade de horas passadas dentro d'água no período de aproximadamente um mês. 

E durante  um mês ao ano, a recomendação era seguida à risca enquanto a vida se reinventava: pranchas, peixes, pescas, pedras, verdes, azuis, bonés de times coloridos e o cheiro doce do bronzeador de cor alaranjada que para sempre marcaria aquele lugar e suas castanheiras perdidas em tanta areia branca na hora de "tirar o sal". Podia-se comer de tudo, desde que respeitado o espaço de tempo necessário para retornar à água. Ovos cozidos com sal e pimenta do reino, batatas cozidas, pão com queijo e mortadela, e a presença religiosa do franguinho assado com farofa e uma guaraná meio quente, numa época onde ainda havia espaço para o movimento das crianças e não era pecado mortal ser um autêntico  farofeiro.

Passavam-se dias, estes muito mais difíceis quando fora das horas-praia, porque aqui surgia a primeira noção de tédio que também esteve ligada em alguma tenra idade ao afastamento periódico do mundo habitual, do distanciamento planejado daquilo que era mais familiar e intensivo, como a escola, tarefas, aulas de ginástica,  brincadeiras e aquelas famigeradas leituras obrigatórias que tinham o mágico condão de afastar-nos dos livros mais do que nos aproximar deles, mesmo para quem ainda tinha o hábito e o gosto pela leitura. Ali, na casa de praia sim, de forma inusitada e até sentida, a contradição como uma espécie de vingança do stablishment disciplinado e ordeiro do mero semestre letivo, em pleno paraíso, longe dos deveres, mesmo com o tempo ao dispor, mesmo com a única obrigação de brincar e se divertir desde o nascer ao pôr do sol, insidiava-se pelas beiradas também o tédio, e tudo ficava mais cinza depois de uns dias, e tudo ficava com o mesmo sabor depois de uns dias. A comida se tornava igual, o caminho de praia idem, assim como os colegas novos recém-feitos na celebração universal da praia e suas brincadeiras.

No liame desse pequeno tédio que se insinuava pelas bordas da civilização, havia algo contudo, cujo efeito nunca se repetia pelo intenso e breve período de um mês de verão. O mar. O mar sempre foi a razão. A cada dia na praia, com intenso sol ou com tempo nublado, o mar sempre se apresentava renovado em sua natural vaidade e beleza: ora verdes esmeraldas profundos, ora aquele azul indizível do final de tarde contra-sol de ocaso, ora ainda, nos dias mais especiais, na elaboração provocante daquele jade transparente, que deixavam ver tudo até mesmo ao longe, no fundo de areias branquinhas e finas de metros abaixo da superfície tremida e cálida. Ao mar acabrunhado e melancólico cinzento dos dias nublados se opunha logo um dia ou dois seguintes de mar sorridente e dançante, das ondas receptivas e que faziam a molecada sonhar em suas pranchas rústicas de isopor, com seus discos de madeira disputando o melhor salto mortal nas ondas, ou com suas próprias barrigas arriscadas contra o chão arenoso, pegando jacarés improvisados e deslizando entre areias grossas e finas, revolvendo-se até o fundo.

O verão, a estação mais esperada, era anunciada  a quem vivia o resto do ano no interior do país, pela vista do mar, na chegada de morros do balneário, e por entre pontas de visão no pára-brisas disputado por quatro guerreiros do amanhã. E seu término, o ritual que marcava a passagem de volta à vida na cidade, de volta ao que considerávamos a "dureza" da existência, era sempre precedido pelo último mergulho, no dia anterior à partida. Sim, havia o último mergulho. Ao toque de cornetas militares da voz dos pais, todos tinham o direito ao último mergulho, na última hora antes do almoço. Dia seguinte, manhã bem cedo, zarparíamos em nosso quatro-rodas de volta aos ares da civilização. 

O último mergulho, o gelado do sal nas orelhas. Correndo e pulando direto na água fria de Marathaízes, sentindo o angustiante líquido cristalino adentrando o nariz até que fosse expirado com força, entupindo os ouvidos como um turbilhão a inundar labirintos e galerias submersas de água marinha. Olhos fechados contra o impacto, os cabelos lambidos para trás no baque mergulhado e gelado contra mais uma onda, que percorre todo o corpo, passando pelo peito, abraçando a barriga, lambendo e dançando até os pés, onde se desfaz em pura espuma espraiando o último calor do corpo para permitir que o peixe se aprume e se recoloque novamente para outra tentativa. Depois de uns mergulhos desajeitados como peixes pulando fora d'água, finalmente o último mergulho pra ir embora. A respiração presa e a roubada de uns segundos de silêncio profundo do eterno ranger da vida, com a cabeça dentro d'água pelo tempo que aguentar.... Parar e ouvir o nada, o grande silêncio dos mundos que limitam com o nosso, tocando aquele zunidinho silencioso como se fosse apenas uma concha grande de molusco catada na beirada da areia e colocada contra o ouvido.

Descobrir assim, sem ninguém ensinar, como era possível enxergar debaixo d'água pela primeira vez, e sentindo  os olhos inexperientes arranhando e ardendo com o sal nas retinas, enquanto contemplava aquele silêncio profundo, observando com certa inveja o mundo quase inacessível de turvo-âmbar-verde-pontilhado-de-estrelas-metálicas, compostas por areia e minerais dissolvidos, e manter essa visão para sempre na sua alma como um segredo imanente, partilhado sem comunicação apenas  com o resto da natureza: a consciência secreta daquele espaço entre nós e os peixes, ocupado pela grande alma pulsante do mundo.