"O Canibalismo Amoroso" (Affonso Romano de Sant'Anna)



Salve a literatura brasileira!

Se no campo tecnológico vivemos tantas vezes à espreita e na eterna dependência do que ocorre lá fora, no tal "primeiro mundo", e da mesma forma no campo econômico, por ausência de um bloco político convergente e progressista em torno de grandes projetos nacionais hegemônicos nunca conseguimos assumir de vez as rédeas de nosso próprio processo de desenvolvimento enquanto nação, felizmente isso não se aplica jamais à esfera das artes.

Isso porque, embora existam inegáveis traços históricos e sociais, situando o homem no mundo, a arte nunca é escrava do seu contexto e toda criação quer transbordar. Apenas para citar algumas, nossa música, nosso cinema e nossa literatura são únicos, em qualidade , originalidade e amplitude temática, e tão ricos quanto as melhores referências culturais que possam ser mencionadas em todo o planeta.
Mas como nem tudo são flores, segue sempre a literatura, essa eterna desconhecida, deixando de revelar aos leitores que não há, porque este é um país onde eles não são formados, o tamanho da riqueza que se perde ano após ano, tanto entre os clássicos do texto que dormem empoeirados em esquecidas estantes, quanto das dezenas de novidades que surgem a cada instante pelos rincões do Brasil e NÃO GANHAM as prateleiras das blockbusters nem surgem em relevo no cenário cultural nacional porque aquele espaço ali já está reservado de antemão à cultura dos "Best Sellers", em sua grande maioria gringos, e boa parte sem sequer uma boa razão de existir.

Nadando contra a maré editorial para resgatar um pouco do que há de bom por essas terras, fica a dica do belíssimo "O canibalismo amoroso", de Affonso Romano de Sant'Anna depois de 30 anos do seu lançamento. Um tratado de antropologia e história, com viés psicanalítico. E é claro, isso tudo sem ser chato nem apologista dos jargões que tantas vezes contaminam esse tipo de leitura crítica.

Com o propósito de resgatar a leitura do amor pelos olhos dos poetas, Affonso Romano de SAnt'Anna faz uma árdua e extensa pesquisa histórica e temática não apenas na poesia brasileira desde os primeiros tempos, mas estende essa busca aos aspectos sociológicos, políticos e existenciais que caracterizaram cada um desses contextos. É admirável a erudição e o fôlego enorme do autor em busca de suas fontes, e tocante o carinho com a questão da mulher, muito antes dos empoderamentos atuais entrarem em discussão. A objetificação do olhar masculino, o medo do amor, as fugas e todas as criações possíveis em cima da mitologia amorosa que ainda assombra a maioria de nós.

O autor faz uma extensa pesquisa de época sobre as correntes literárias brasileiras, analisando pormenorizadamente seus maiores expoentes, e ainda estende seu olhar para longe, ao Egito antigo, a Roma e Grécia, além da cultura do extremo oriente, para alcançar as primevas referências sobre um tema que irá se desenrolar com características próprias no ocidente, um tema aliás, inesgotável, e que está sempre por se recriar.

Belíssimo trabalho, e um dos muitos livros que deveriam nos dar orgulho de sermos brasileiros, numa época onde a questão psicológica "ser brasileiro" surge tantas vezes associada (equivocadamente, em sua maioria) a algum tipo de vergonha...

Ergamos nossas cabeças, pois, nem que seja pela arte e através dela.