Elvis


Naquela época todos gostavam de futebol, pipas, carrinhos de rolimã e bolinha de gude, além dos primeiros arremedos de "video-games" , se é que podíamos assim chamar àquelas toscas criaturas e seus barulhinhos bizarros plugados numa TV. Eu gostava de tudo isso, é claro, mas amar eu só amava mesmo Elvis Presley e queria ser igual a ele quando crescer. Cantar e encantar o mundo inteiro com aquela incomparável voz simultaneamente capaz de enternecer uma velhinha nos seus noventa anos ou uma criança de colo, e ao mesmo tempo com aquela atitude rebelde-heróica hollywoodyana dos filmes de sessão da tarde capaz de enlouquecer todas as mulheres. 

Aos oito eu já adorava as melodias dos Beatles, curtia o papo astral do Raul, estranhava Mick Jagger (logo os "Stones", a quem eu também iria idolatrar por décadas posteriores) e ouvia meio sem permissão do vizinho uns acordes de Panis et circenses, daquela turma genial e memorável de Sampa. Mas Elvis era diferente. Era uma verdadeira síncope, uma espécie de incorporação metafísica ("dos infernos", segundo dizia minha avó materna) que me acometia quando eu assistia aos filmes ou ouvia o primeiro compasso de "Blue suede shows", "Hound dog" ou "Jailhouse blues". Aquele som começava a ferver de dentro pra fora, e não tinha como a pessoa ficar parada, contemplativa. A resposta àquela música não se resumia apenas à escuta, uma vez que tinha geralmente que ser acompanhada obrigatoriamente por uma subida em cima da cama mais próxima, com camisa de gola levantada e um topete penteado para trás à custa de muito gel. E pra  isso tudo valer mesmo num grand finale, o sujeito ainda tinha que pular e dançar como um louco descadeirado, porque imitar Elvis à perfeição não apenas na voz, mas em qualquer movimento, é algo ligeiramente impossível pra qualquer mortal. Ouvindo aquele som, a vontade era de sair dando cambalhotas e gritando bem alto como a vida é intensa e vale a pena ser vivida. No caso dos filmes, mesmo sem entender tudo direito, queria logo sair falando as mesmas gírias, repetindo as mesmas piadas e testando o charme com a "mulherada" entre oito e dez anos, minhas colegas de escola.

E elvis literalmente cantava tudo. Seguindo-se ao apelo "rocker" das músicas rápidas, fortes e enérgicas, mais características da primeira fase e oriundas do movimento "rockabily" na terra do Tio Sam, logo vinham as baladas românticas, nas quais o rei se especializou. "Love me tender", "Suspicious minds", "You've lost that love feeling", "Always on my mind", "Unchained melody" e minha preferida "Bridge over troubled water", músicas cujas interpretações posteriores perderam qualquer sentido depois de Elvis tê-las gravado. Numa época ainda sem redes sociais ou mídias conectadas em tempo real, as raras ocasiões em que assistia a um show pela tv eram eventos ritualísticos. Tinha que ficar bem perto da tv,  topetão de cabelo molhado, (pra desgosto da minha mãe que sempre dizia que eu ia ficar doente com aqueles cabelos molhados o tempo inteiro) e gola da camisa levantada, é claro, porque aviso aos incautos que na minha época jurássica era muito comum as crianças usarem camisas de gola. Silêncio total ao redor e olhos fixos na tela pra ver aquela espécie de ser extraterrestre composto de luz  e carisma recebendo flores, abraços e distribuindo centenas de beijos às fãs enlouquecidas da platéia. Se não fosse pelo suor em bicas, diria que não era humano. Aquelas roupas cheias de pedras brilhantes que tinham um efeito indescritível quando entrava em movimento. O cara usava as roupas mais legais do mundo,  fazia piadas o tempo inteiro, abusava das ironias e suava como ninguém, razão por que a cada minuto aparecia sempre um ajudante com algumas dezenas de toalhas que eram logo atiradas ao público delirante. Beijos aos montes na mulherada mais próxima do palco, sempre um palco surpreendentemente baixo, no contato com o público. Seus músicos , competentes e antenados, ralavam para acompanhar tantas improvisações que surgiam a qualquer instante do show, não só nos longos entreatos com participação de pessoas do público como na forma irreverente de cantar alguns sucessos consagrados. Elvis poucas vezes seguia o script, e estava sempre criando novas interpretações.

Toda música encerra mágica e é a arte que mais nos aproxima dos deuses, esse dom de poder gerar sons e ritmos, usar a própria voz ou instrumentos, fazer sequências harmônicas com acordes e criar melodias que outra pessoa também vai poder sentir noutro rincão do planeta e muitas vezes sem nem mesmo saber exatamente do que se trata, vai se sentir de alguma forma contagiada por aquilo e repetirá indefinidamente num assobio, num bater de mãos ou numa cantiga mental marcando o tempo e o espaço de sua própria vida pela maior criação humana. Nesse contexto o intérprete, quando é bom, tem o grande mérito de fazer brotar o gosto e a paixão por aquele som especial, quando é ouvido pela primeira vez , e por fazer renascer a mesma sensação forte naquele que ouve pela segunda vez, como se de fato estivesse novamente ouvindo pela primeira, momento em que tudo surge com maior impacto e emoção. Ouvi-lo cantar  era sempre estar em contato com a primeira versão de alguma coisa, e de fato ainda hoje eu sinto a mesma emoção.

Com Elvis, a arte de interpretar ganhou outro status, inédito: sua voz sem igual e a maneira única de cantar e interagir com as pessoas à sua volta tornaram possível por instantes ao mortal contemplar diretamente a oficina dos deuses, e ver o exato instante em que o mundo se cria e se perpetua através do som. Mostrou ainda que a interpretação não é arte menor, mas tão grande quanto a própria criação, uma vez que, como acontece em todas as artes,  interpretar "é" criar. Ler "é" escrever, contemplar a tela de pintura "é" pintar...

Sua morte foi um golpe trágico do destino. Um dia qualquer de agosto, manchetes na tv, tudo muito confuso. Sem redes, sem net, poucos jornais, muito sensacionalismo. Apenas a partir daí, fazendo um esforço gigantesco para entender todo aquele tumulto rarefeito e nublado em torno do evento, a surpresa, o contexto, a decepção com a vida: ainda não sabia que seres assim podiam morrer. Elvis era imorrível, afinal, eu não tinha a menor dúvida. Horas de choro inconsolado trancado no quarto com minhas paredes cheias de pôsters do rei. A vitrola tocando "Bridge over troubled waters" e o coração quedando-se como peixe morto num aquário sem vida.

Segundo o aprendizado forçado que veio na sequência, amadurecer é contabilizar perdas, e faz parte do processo a gente ir se tornando mais forte à medida em que o caminho se estende. Sei não. Desconfio muito dessa história de "se tornar mais forte". Acho que a bem da verdade, depois de conhecer um pouco mais a história humana, pouco vejo sinais de qualquer tipo de 'evolução".

Mas uma coisa eu sei de cor:  minha infância acabou no dia em que Elvis morreu.


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editado em 08-08-16