Flamboyant







Flamboyant aos pés do delírio, aos pés do de-longe. Delonix Regia que veio da África, imensa em sua beleza, imensa em seus mistérios. menina passa ao lado, menino passa do outro. cachorrinho pequeno Poodle urinando em suas raízes incontidas explícitas enquanto as frondosas árvores experimentam sem mágoas o calor da tarde, fermentando os musgos e absorvendo os líquens para o sol que arde sobre um tapete espalhado de flores caídas no cimento verde velho e tornando mais coloridas as manhãs... Que beleza , meu Deus! Que mundo seria o mundo se no mundo não existissem Flamboyants? senhora bem vestida passando para esperar o ônibus no ponto sombreado-ao-redor da mini-pracinha triangular com quatro Flamboyants antigos e enormes fazendo copa, todos vermelhos para bem dos passantes, para bem dos moradores e sorte da humanidade. quanto poder nessas flores, que lembram orquídeas mas são superiores, porque tão belas quanto elas, mas muito menos melindrosas e mais prolíficas. coisa linda igual eu nunca vi. é um vermelho de se vermelhar todo o conceito do que é rubro e enrubescer a palidez do que é cinza, desde aquele momento onde todas as cores surgiram no mundo boreal e desde que o primeiro Flamboyant deu sentido a elas, com sua vibração, sua força e sua luz penetrando retinas e alentando rotinas, forçando os sentidos a reinventar-se definitivamente na idéia do que é belo só para contrariar o grego Platão. vermelho tapete forrando o chão velho de verão. vermelho também é o lenço desta cigana que se aproxima para ler as minhas mãos com muito ardil. toda sua intuição trabalhando o destino que ela não sabe. nunca soube, porque destino é coisa que não há (revelo, agora, porque sei: viver é sempre apartar-se do futuro para apertar-se no agora). Vermelho ainda o sangue tintoso que salpica este jornal da manhã na banca de revistas e vermelho o batom sobre os lindos lábios da menina que passa flutuando a dois metros do chão, com olhar oblíquo sorrindo ao flerte de todo verde, viajante, brilhoso, denso, molhado e quente na plena estação. copa de Flamboyant contra o céu de um azul perturbador, radiado e lubrificado tempo inteiro pelas amplas águas que caíram do mês dezembro-janeiro. mas não importam os excessos. não importa a humanidade, porque ele não se abala. bagas e sementes em profusão para fertilizar mil campos a cada estação. Bem-te-vis ligeiros, para-sempre caçadores de insetos mergulhando obstinados entre suas folhas. Beija-Flores saciados de tanto néctar agora apenas repousam nos galhos, botando vigia no seu território antes que um outro Beija-flor mais ousado o desafie para um duelo às duas da tarde quente sobre a copa da grande árvore. viver é sempre essa maneira estranha e familiar de estar permanentemente em guerra. enquanto isso, sob o rubro teto mais um pouco ali ao lado passa um carro, passa outro carro, passa um ônibus muito barulhento soltando fumaça preta. uma mulher de meia idade de repente meio triste andando vagarosamente com dificuldade pára e olha pra cima, aquela copa fulgurante e imensurável rajada de vermelhos em suas divisões verdes. ela se impressiona, ri por dentro e toca em frente. o poder do Flamboyant de mudar a direção do dia. também eu, que vejo tudo do meu banquinho sombreado, fingindo que leio um jornal para por os olhos no mundo sem ser notado, eu também mudo com ela. mudo também com elas árvores, porque mudar é o verbo da natureza exterior indomada, enquanto humanos buscam o permanecer, porque ser humano é no fundo descobrir sua essência anti-natural. outro cachorrinho passa, este agora mais feliz sem dono, fareja as raízes, esparge toda sua felicidade de não ser de ninguém, depois urina novamente em cima da urina da urina ainda não bem seca do seu outro amigo cachorro, e depois de tremer-se todo, olha desconfiado para os lados e some debaixo do caminhão parado ali logo em frente. cimento escuro no asfalto derretido, calor da tarde inundando, todos se abalam para baixo dos Flamboyants e capturam na sua sombra sem igual a única brisa existente àquela hora do dia, brisa que é justamente a escandalosa revelação do antigo caso de amor explícito entre o vento e as plantas, aquela brisa esotérica que passa lambendo os galhos e flores desta árvore surreal. a árvore se encanta com a língua do vento e dança sensualmente em seu movimento lento e em sua excitação cósmica, ora à esquerda, ora à direita, porque sexo verdadeiro é o que transcende os elementos, enquanto alguém sentado nesta mesinha de jogar xadrez no centro de praça contempla essas raízes furiosas cavando a terra milimetricamente e ouve o barulho surdo que fazem ao explodir o concreto a cada segundo, sugando o caldo vivificante do centro da Terra. o Flamboyant não aceita o jugo da cidade, ele quer ser campo até o miolo. nada o pode conter, e isso é o que se testemunha em profusão na aventura feliz pelas estradas espalhadas do sudeste até a Bahia aonde seu reinado se estende. suas raízes são incondicionadas e plurais. suas copas enormes e vivas povoam todas as fazendas que vão daqui ao norte dessa região antigamente chamada mata atlântica e agora deus-nos-acuda se ainda sobra algum verde, mas enquanto o pior não acontece e a vida persiste, o Flamboyant sustenta os olhares, repara o otimismo e a boa-fé dos humanos que sobraram, mostrando uma vez mais que a natureza pode sempre ser generosa, mesmo quando espezinhada. Minha Árvore da África, Delonix Regia, rainha em toda sua majestade e senhora de um possível mundo do amanhã. Que mundo seria o mundo se no mundo não existisse o Flamboyant?
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(texto publicado originalmente no blog "Castelos de Ar" (Centauromaquias) em 12-01-2014 e reeditado em 19-07-16)