Imagine uma escrita que é pura dinamite. Daí você joga colheradas do psicodelismo dos anos 70, muita pimenta de um pensamento livre e anárquico nos melhores moldes dos "livres pensadores" clássicos que não se rendiam a doutrinas pré-fabricadas. Acrescenta à mistura explosiva megadoses de disciplina oriental no esforço de um escritor para se dedicar aos seus escritos, mesmo quando a doença, a dor, o descaso e o conhecido "Custo Brasil' tentaram o tempo inteiro jogá-lo para baixo. Esse mesmo "Custo Brasil" que segue sempre dificultando a atividade dos escritores que vivem do seu trabalho, um país que, contrariando boa parte do mundo ocidental, a cada ano que passa, estatisticamente diminui proporcionalmente a massa de leitores, e com isso também, como um reflexo direto, a qualidade do trabalho jornalístico, que na grande mídia nunca esteve tão ruim. Escreve-se mal, e lê-se mal, porque bons leitores sempre foram também formados por bons jornais.
Um cara dotado de uma sensibilidade incomum pra falar, de forma aguda e poética, da vida, do amor e da tal humanidade, tanto em escala "macro", quando revela sua grande erudição e o profundo conhecimento pessoal e detalhado dos grandes autores da literatura quanto no nível "micro", focado no olhar do cronista de costumes, comportamentos e personalidades individuais e coletivas, antena parabólica e tradutor maior de toda uma década rica como os anos 70 na principal metrópole cultural do país, o Rio, e isso tudo com uma acidez que às vezes mascara uma personalidade doce, segundo o depoimento de vários amigos.
E acima de tudo, o que talvez seja a maior característica deste autor capixaba: uma honestidade visceral em tudo que escreveu. Não é á toa que era atacado pela direia, na época, por ser considerado muito anarquista, independente, agia "de forma perigosa" e era um crítico mordaz do país. Atacado também pela esquerda, que o considerava muito leniente com um governo autoritário e ditatorial, e por não se pronunciar mais abertamente contra o regime (critica, aliás, da qual divirjo veementemente, uma vez que em vários momentos de seus textos, Carlinhos faz críticas virulentas ao sistema que vigia no país, em vários aspectos, desde econômicos até os privilégios de castas sociais). Ele deixou de fazer amigos por puro proselitismo ou por voluntariamente não querer "adequar-se" aos discursos-padrão-ideológico que em algum momento se tornaram moda por aqui na política, seja de situação ou de oposição ao regime.
Pois assim é o "Diário Selvagem", autobiografia de José Carlos de Oliveira , o "Carlinhos de Oliveira", como ficou mais conhecido o cronista por estas terras. Incrivelmente sumido de nossas páginas de jornais, literatura e referências capixabas. Sua leitura é mais atual do que nunca, por conta da grande qualidade e também pela relevância nacional que teve durante mais de uma década, radicado no Rio de Janeiro, onde se tornou um dos principais escritores da "década de ouro", trabalhando em vários jornais de grande circulação e revistas de tiragem nacional. Carlinhos que além de cronista, também era romancista e teve várias obras adaptadas para o cinema, com grande sucesso.
A maior parte dos seus trabalhos foi reunida pela ed "Civilização Brasileira" e relançada recentemente, e valem muito a leitura, cada uma individualmente, como um retrato segmentado e caleidoscópico de uma parte da vida nacional refletida nas luzes do Rio de Janeiro da época, quanto pelo conjunto da obra, pelo olhar arguto e pela fluência quase lírica dos textos.
Apenas uma ressalva: como "Selvagem" é o mundo, que oscila entre o "Terror" e o "Êxtase" , e visceral o olhar do autor que, fiel ao que vê e sente, perscruta no fundo de sua alma incontrolável para nos dar uma exata dimensão daquilo que nós, comuns dos mortais não podemos ver, Carlinhos não é leitura pra crianças, e depois de ler, você pensa: que bom que assim seja!!