O gesto

Dia comum, sol comum, céu comum, gentes nas ruas de uma segunda na hora do almoço. As vias tomadas pelos ansiosos dragões de mil cabeças soprando fumaça negra pelas ventas. Pedestres passam apressados, vitrines passam espelhadas. O que elas refletem, dizem os físicos, é apenas as cores que encontram aqui fora, para repetir o padrão através de seus prismas infinitos de pequenas lentes. Mas a vida refletida em vidros é sempre mais bonita, é uma outra vida. Há luzes coloridas, há tecidos de sonhos, cores que não se vê no mundo, a não ser nas vitrines coloridas de todas as lojas de rua. Quem sou eu, quem é você, o que somos nós refletidos nesses vidros infinitos que habitam uma segunda-feira de manhã numa metrópole qualquer? O reflexo inverdadeiro da vida chamando à vida. Súbito na calçada  o rapaz se ajoelha em frente à gestante com um neném de colo para lhe amarrar os cadarços soltos. Alguns embolam-se na calçada, outros se imprensam na parede lateral forçando passagem na pressa, uns outros mais observam a cena dos carros e ônibus na rua. O rapaz, alheio a tudo isso sorri enquanto termina rapidamente a tarefa, e a mulher agradece, meio sem jeito. Segue a vida, as formigas na calçada retomam o caminho na busca de um sentido para o formigueiro,  o rapaz atravessa a rua, a mulher grávida entra com seu neném de colo numa loja. Segue o tráfego, segue o mundo e ficam apenas flaneurs tocados pela cena. Eu, um observador inconformado: Ora, não lhe avisaram, garoto, que há muito foi extinta a era das gentilezas, e que todo ajoelhar-se hoje em dia, se não é no chão de igrejas suspeitas de suas despóticas e mercenárias combinações sobre a fé, se todo ajoelhar-se não é o Estado exercendo sua vocação de impor ao cidadão comum suas excessivas cominações a ponto de lhe roubar a alma, se todo ajoelhar-se não é apenas o sintoma último e reiterado das necessidades básicas humanas que se impõem a um pai ou a uma mãe que sustentam seu lar quando não conseguem pagar as contas do mês. Ajoelhar-se não é mais nobre, não é a consciência da redenção última de um organismo que por convicção ou ato puro de liberdade sobre suas vontades sujeita-se a uma força maior, submete-se ao fado, ao amor, à lida de Sísifo. Dobrar os joelhos não é mais receber o título de cavaleiro da rainha nem  agasalhar no peito o batismo de fogo sempre cruel das guerras ou a libertação das cadeias que nasceram juntamente com o homem no primeiro dia em que ele surgiu no mundo. Vidas espelhadas em vitrines, que são maiores nas vitrines do que em sua própria organicidade maquinal, nesse comboio de cordas infinito e infernal que rege os aqui-fora-dos-espelhos. Se, insurgindo contra toda a história humana, ainda há no ato uma liberalidade superlativa e a força maior que comanda a ação vem realmente de um instinto nobre e puro, nascido e criado longe de qualquer convenção, é preciso apreciar e agasalhar o gesto, e advertir seu incauto criador sobre os riscos de se estar vivo. Em meio às calçadas corridas de gente, sem saber de nossa terrível condição humana e ainda sem saber da fresca notícia de que crianças morriam estouradas por bombas lá do outro lado do planeta, o rapaz nos seus vinte e poucos anos comete impunemente um ato inteiro de poesia, e é nesse único gesto que deposito o remanescente tímido de esperanças de que nem tudo está perdido.