"Os Filhos de Saul"

Não vou falar sobre mais um menino sírio que apareceu arrebentado em uma foto de jornal. Há algo que vem de dentro e que se recusa  terminantemente a buscar qualquer racionalização possível. Uma raiva que rejeita por princípio qualquer pacificação dos sentimentos ou sua substituição por um conceito administrável que possa extravasá-los, uma analogia objetiva e fácil que normalmente é direcionada aos maus e notórios personagens políticos do planeta. Achar prontamente "culpados", tanto contextos quanto pessoas, é em todas as vezes nada mais que criar um tipo de remédio psicológico para que a dor alheia não nos incomode tanto, não nos  consuma de uma vez e a vida possa retomar seu curso no dia seguinte.

Desta vez, eu quis que a dor continuasse, quis que a dor não arrefecesse e não se calasse mais. Voluntariamente, joguei fora minhas defesas e quis  que a dor ficasse entalada na garganta minha e do mundo, para cada vez que nos lembrássemos com otimismo de qualquer aspecto positivo e relevante para qualificar a tal 'humanidade", a "civilização" e o "progresso" , que nos viesse logo à mente a imagem daquelas crianças sírias assassinadas de forma cruel , banal e desnecessária numa guerra injustificável sob qualquer análise.

Essas mesmas crianças que, embora sejam ícones trágicos de uma história mal contada de nossa própria trajetória atual no planeta, não são as únicas trucidadas a cada dia pela crueldade aguerrida e tantas vezes esquecida ou tolerada pela nossa admirável espécie. A rigor, para não ser injusto, seria necessário  dia após dia nos desculparmos não apenas com aquelas crianças, lá longe, mas também com as meninas africanas que são mutiladas aos milhares todos os anos, como rito de purgação de uma certa religião, também as crianças indianas que pagam uma penitência diferente, não menos dolorosa, mas igualmente cruel ao lhes serem tolhidos direitos inalienáveis à vida, ao estudo, às condições mínimas de higiene e existência simplesmente porque nasceram na casta errada, e como se sabe, "devem" pagar por seus erros em vidas pretéritas e ninguém nisso pode interferir. Para não delongar mais nesse catálogo de horrores, cito ainda as nossas crianças aqui pertinho, que são vitimadas por um país injusto e violento, tão violento em suas estatísticas como qualquer guerra, nossas crianças cotidianamente cooptadas e aniquiladas pelo tráfico por falta de opção na vida, assassinadas barbaramente  pela violência policial, as crianças indígenas espalhadas por este país-continente e que são assassinadas por grileiros, mortas por doenças brancas ou precocemente prostituídas nesse planeta Brasil. Quem sabe ainda não seja demais lembrar aquelas exterminadas sistemática e rotineiramente pelo sistema econômico cruel, pela falta de oportunidades e mesmo por atitudes individuais que denotam todo tipo de perversidade e caos que também compõem o notável espírito humano: pedofilia, maus tratos, falta de amor, total descaso, falta de tempo para cuidar. Enfim, esse massacre rotineiro da infância que expõe os ossos da nossa triste lembrança de nós mesmos pelo mundo. Aqui no nosso próprio país, um lugar em que apesar de havermos conquistado melhorias recentes de índices de mortalidade infantil através de importantes políticas de inclusão social e notável melhoria na escolarização, ainda somos um país socialmente injusto que durante décadas exibiu como uma das suas maiores "especialidades" a arte de  matar crianças e adolescentes de todas as idades e de todas as formas possíveis e imagináveis.

Hoje, contudo, a notícia repetida nos jornais vem de outra guerra, e depois de ler as manchetes, eu decididamente não vou mais falar dessas crianças sírias. Não digo isso por causa do fato em si, noticiado nessa página sangrenta em minhas mãos. A reiterada e conhecida revelação dos males do conflito da guerra para nossos nervos tão sensíveis de cidadãos cibernéticos contemporâneos que não têm sequer tempo para digerir as informações que recebem e processar o "bombardeio" emocional diário . Nem digo isso ainda por causa do mero sensacionalismo da manchete, porque sim, neste caso, essa situação merece de fato toda divulgação, a ressalva e o repúdio internacional, dada sua dureza, sua crueldade e o caráter de uma tragédia  voluntariamente esquecida que ainda ceifará tantas vidas inocentes. E isso não apenas na Síria, como no mundo inteiro. A vontade do silêncio, que me ocorreu primeiro, vem muito mais pela sensação coletiva de impotência que nos acomete em situações análogas, ao não conseguirmos visualizar ações concretas que por si sós pudessem reverter a situação, bem assim por respeito absoluto e incondicional à dor vivenciada por aquelas crianças e mais tantas outras que todos os dias, com foto ou sem foto, são assassinadas enquanto brincam, enquanto comem, enquanto vão à escola, e tentam fazer todas as coisas que as crianças fazem simplesmente por serem crianças.

A respeito deste novo bombardeio na Síria, que matou dezenas delas e feriu outras centenas,  já houve, como de resto sempre há, manifestações de alguns pequenos grupos ativistas pelo mundo, houve declarações explícitas ou enrustidas de governos tanto de terceiro mundo quanto de grandes potências envolvidos, ora justificando-se (acreditem),  ora reiterando a necessidade (acreditem) dessa guerra. Entre russos, americanos e os "sortudos" países do oriente médio, senhores dos poços de ouro negro, a cobiça, de um lado, dos sheiks e suas bilionárias famílias pelo vil metal e pelos confortos materiais da civilização ocidental e, do outro, radicais islâmicos e o fundamentalismo agigantado durante tantos anos, direta e  indiretamente pelo próprio ocidente e suas políticas ambíguas e temerárias para a região.

Misturando tudo no mesmo caldeirão para poupar tempo na análise,  quem é que faz as bombas? Quem as detona?  Quais as razões reais? Tantas vezes as principais questões vão ao largo, enquanto questões menores e imbecis surgem ocupando todo o espaço possível da pseudoreflexão para cegar os envolvidos em debates acalorados, superficiais e tantas vezes ociosos. Para isso concorrem desde problemas de natureza religiosa a questões estritamente étnicas ou culturais, ideológicas ou puramente econômicas. Difícil saber exatamente aonde tudo começa e aonde vai terminar. A imprensa mundial, como sempre, aproveita tudo isso pra ganhar mais uns tostões ao alardear o impacto visual que tais imagens propiciam, enquanto os anunciantes e empresas espalhados pelo globo disputam a tapa qual o elevado preço do espaço da propaganda que será estampado em cada mídia com número maior de curtidas, leituras e visualizações.

Também tenho visto, desde a morte daquela outra criança síria, no ano passado  -- o garoto Ashlan, um pequeno corpo que jazia solitário e inocente depois do afogamento, deitado de bruços e com o rosto mergulhado na areia de uma praia abandonada-- que a cada revelação dessas, não há como subsistir incólume aquela parte do espírito humano que uma vez mais é massacrada, eviscerada e posta pra queimar em pleno palco midiático e insosso de nossas vidas carentes de sensações. Sim, somos maus! Vamos abreviar o juízo. Enquanto espécie, ao menos, somos maus! Não apenas contra o planeta, contra a vida, o meio-ambiente, em geral. Somos inconsequentes e pérfidos mesmo contra nós próprios, porque nem sempre nos reconhecemos, um ao outro, como pertencentes ao núcleo absolvedor do "Nós", do "Outro" que pertence também à humanidade. Evidências mensuráveis do mundo contra todo tipo de consciência do "bem". E contra a mídia pesando a tradicional acusação de sensacionalismo? Óbvio que ela é movida por isso, que em algum lugar também vai se associar ao maldito dinheiro pela propaganda, mas não é esse o caso  ora em análise. Mesmo que o intuito por detrás das imagens possa não ser nobre, a imprensa internacional ainda cumpre ao menos sua obrigação primeira que é divulgar essas atrocidades em tempo real, para que todos possamos saber a quantas andam os podres poderes e suas ideologias que governam o mundo dos homens, esses poderes com relação aos quais todos somos mais ou menos dependentes, quer seja material ou espiritualmente, não importa se somos pobres, ricos ou expatriados, cristãos, muçulmanos ou ateus. Todos somos humanos, e a parte dolorida de saber disso e´ter que aceitar, gostando ou não, todos esses contemporâneos "campos de concentração" do cotidiano e as barbaridades simbólicas de um Auschwitz por dia, todos os dias, durante um ano inteiro, durante uma vida, mesmo quando em outros lugares a tal "evolução" tecnológica alcança milagres e a tal da "civilização" cursa indelevelmente sua marcha que a rigor não se sabe bem pra onde, ou para interesse de quem.

Quanto às explicações que não há, porque não aceito as que existem, porque não importa qual raio de razões serão mais uma vez articuladas para tentar controlar  sentimentos incontroláveis, não me venham falar, por favor, na reducionista, empobrecedora e patética discussão sobre a eterna briga de boutique entre Capitalismo x Socialismo, porque além disso denotar uma completa ingenuidade ou ignorância sobre a história da humanidade, eu hoje, depois de tantas águas passadas por debaixo da ponte de ambos os lados, reputaria aos debatedores um caráter explícito de ociosidade intelectual e  absoluta falta de respeito diante desses cadáveres de crianças mutiladas e assassinadas que jazem bem diante de nossas vistas. A coisa é muito mais complexa que isso. Já somos maduros e espertos o suficiente para saber que a a crueldade transcende ideologias, e historicamente todas mataram e ainda matam por suas próprias razões. Essa crueldade não está adstrita a um sistema político ou ideológico em particular, e nem mesmo ao âmbito de um único vórtice religioso.

A coisa toda,  sempre mais difícil de engolir porque ser humano é ser narcisista por natureza e não aceitar os  próprios defeitos, como já dizia o velho Freud ao denunciar uma vez mais nossas origens já tornadas óbvias por Charles Darwin, é que o mal está em nós, e isso é o amargo de tudo, a coisa mais dura de suportar. Não um mal objetivo, reificado e localizado, de aspecto maniqueísta como gostam de estabelecer de forma fácil certas religiões ou políticos a bem dos seus interesses mesquinhos, mas o mal relativo e eficaz, espalhado em ações, um "mal" enquanto possibilidade e efetividade de agir de forma negativa, gerando efeitos pernósticos. Um mal que advém não da sua suposta essência pré-definida, metafísica, como tantas vezes tomou corpo nos debates medievais, nas teorias de grandes filósofos do passado, e é claro, de clérigos e fundadores de religião desde o início dos tempos. Não esse "mal genérico da criação" que não há, mas um mal que advém de forma real e imediata do resultado da ação humana. Segundo um ponto de vista ético universal em favor da vida, é possível sim, agir positivamente ou negativamente em relação ao "outro", ou não, e não devemos considerar preceitos utilitaristas nessa valoração se não quisermos colocar tudo a perder de vez.

Nesse sentido, lembro-me muito das importantes e profundas reflexões da filósofa Hannah Arendt . A "Banalidade do mal" é algo que como uma sombra perpassa todos nós, e infelizmente não pode ser objetivada numa essência exterior a ser combatida nem tampouco e tão facilmente em uma espécie de "outro" abstrato, essencialmente maligno, bestial, completamente desprovido de sua "Humanidade" que luta contra um "Cavaleiro Templário do Bem", representado por nós próprios e nossos consectários, sem cairmos em um apequenamento do problema. O mal não pode ser tudo aquilo que não sou, e por mera exclusão, o que não professa meus valores. È mais que isso, e nossa percepção, entendimento e motivação para agir no combate disso, em prol de uma valoração calcada em novos valores que tenham a pretensão de expor melhor o problema e quem sabe, superá-lo, não pode deixar de levar isso em consideração. O mal, não enquanto entidade mística, mistificadora, alienante ou coisa, mas enquanto ação  não está "Lá fora", não é propriedade de "um sistema", ou de um "governo", um partido etc e esta é uma das maiores contribuições de Hannah para esclarecer pontos sombrios. Ele reside potencialmente em cada um de nós, individual e coletivamente, enquanto capacidade de agir, ou se omitir, agir bem ou agir mal, enfim. Descobrir e aceitar isso em definitivo, ao mesmo tempo em que se destitui a palavra "humanidade" de toda a aura beatificante que historicamente a compôs, ainda é o rascunho de uma saída. A descoberta incômoda, perturbadora,  da eterna vigilância, da necessidade de uma determinada autodisciplina, um certo equilíbrio dinâmico e da vontade ativa de fazer com que ele não cresça, é exatamente nisso que se ancora a esperança, única, de que o humano não se perca em definitivo depois de sua inquestionável manifestação coletiva na história. Sim, porque a tomarmos pelas razões, impacto e consequências de nossas tão conhecidas guerras, o mal sempre imperou na história.

 Ao contrário do "triunfo da razão", como preconizava o iluminismo, historicamente caímos nas trevas como nossos próprios relatos desesperados de um passado recente mostram à exaustão. Em particular, no que Hannah desenvolve na "Condição Humana" e "Eichmann em Jerusalém", a essência lúcida e contundente do embate engajado da filósofa é a afirmação de que todos somos meio monstros na prática cotidiana, justamente pelo paradoxo de, no fundo,  não sermos "Monstros capitais", com maiúsculas, como a palavra institui, mas sim por sermos portadores dessa crueldade em germe que caracteriza a tal capacidade de agir efetivamente como tal que reside em nós. A sentença mortal, e percebida há muito por todos os instituidores de religiões não é tão simples de se deduzir: Todos somos, qualquer um de nós indistintamente, capazes de , pela ideologia certa ou errada, cometer atrocidades da forma mais corriqueira, cotidiana e neutra possível, sem nos descobrirmos nada monstruosos ou agindo de forma aberrante, desde que os valores à nossa volta nos legitimem, e uma coletividade surda e manipulada o bastante para cegar-se por vontade própria nos dê o aval. E isso porque o mal é monstruoso? Não, a tese original e contrária ao senso comum de Hannah é a de que o mal é banal, comum e corriqueiro, praticado por pessoas "normais" e não por "bestas apocalípicas". Revelador. Isso aliás lhe valeu o ataque de muito fogo amigo e de muitos inimigos quando a interpretação começou a ganhar defensores pelo mundo afora, o que eliminava de uma vez a idéia maniqueísta de "anjos" e "demônios", sempre referenciada num fundo religioso, imagem muito utilizada como uma das visões mais comuns para a legitimação da perseguição e rigoroso julgamento dos criminosos nazistas no pós-guerra, levado a efeito não apenas na Alemanha, mas principalmente pelo novel Estado de Israel. De início, naquela ocasião, talvez por uma visão estreita e excessivamente passional sobre os efeitos trágicos tardios de uma guerra cuja crueldade e amplitude não encontra precedentes na história, as pessoas ao redor, dentre elas muitos representantes dos judeus, sentiram-se ameaçados quando entenderam finalmente todas as implicações que essa nova abordagem poderia ensejar. Não apenas o algoz, que no momento age como a "besta" intemperada assume explicitamente a postura do mal, mas também a vítima possui em algum lugar no fundo de sua natureza o potencial para ocupar o lugar do algoz, se assim propiciasse os rumos concretos da história. De certa forma, vai contra as concepções bíblicas e judaicas , a idéia de um mal genérico, despersonalizado, sem nome e sem rosto, e isso porque ele é banal, comum, cotidiano, e conforme preconiza Hannah, por isso é impossível extirpar sua existência, mas sua potencialização, seus efeitos reais na concretude da vida, da história, podem e devem ser combatidos ativamente, desde o nível micro, subjetivo, até o seu trânsito para as coletividades insanas, como exatamente aquela que adveio da experiência totalitária do Nazismo. Daí o grande alerta.

A proposta inicial deste texto com caráter de ensaio mas que não tem maior pretensão do que ser apenas mais uma crônica da guerra de todos contra todos que habitamos, é que eu não queria falar de mais uma criança síria bombardeada, do outro garotinho que esta semana, enquanto eu escrevia estas atordoadas palavras,  me olhava também atordoado a milhares de quilômetros de distância, da sua foto colorida de jornal tirada de véspera, todo maltrapilho e esfolado, recém-resgatado de escombros, sentado numa cadeirinha de hospital, semivivo e em choque, com aqueles olhos  fixos e arregalados que já viram atrocidades que qualquer um de nossos mais fortes representantes pediria de joelhos para jamais testemunhar. Com isso minha intenção ao calar nunca foi em hipótese alguma alcançar a famosa alienação anestesiada pela droga do  esquecimento, situação tão recorrente em nossos dias, ou a famosa substituição da dor por algum sentimento de êxtase substitutivo que a apague, aquela sedimentação involuntária que se faz do excesso de informações mal processadas em nossas vidas corridas. Ao contrário, em respeito a sua dor que não tem paralelos no cotidiano, eu não gostaria de falar sobre nenhum deles, e principalmente sobre um terceiro caso, ocorrido há mais tempo, e que pra mim dentre todos foi o que doeu mais. Este que, diferentemente dos outros, nunca foi por mim devidamente catalogado e esquecido nas gavetas de uma triste memória corrida. Um assassinato de guerra cuja dor eu sempre me recusei terminantemente a esquecer. Não porque haja uma predefinição de qual dor seja maior ou mais importante do que outra, ou quem sabe uma escala universal das dores e daí fosse por um segundo possível ou desejável com isso criarmos categorias competitivas e estéticas jornalísticas para sua exibição. Dor é dor, e quem sabe mais é quem a sente na carne. Mas o que mais marcou na morte daquele outro garoto sírio, talvez o primeiro emblemático dessa nova guerra insana, é porque a data em que sua morte ocorreu, ainda em 2014, uma das primeiras noticiadas nessa então recente guerra, que já matou mais de meio milhão de pessoas, e o contexto em que ela aconteceu,  uma dor de longe e tão perto, de um estranho  e familiar lugar que eu também já transformei em minha dor, por sentir que esta era a única homenagem possível  que no meio de minha estúpida impotência e enorme distância humana, geográfica, existencial, conseguiria prestar para o resto da vida como luto solidário àquela criança.

Adotá-los, ao garoto sírio que morreu naquele dia e à sua dor de revolta, que não era apenas física, mas existencial, e às suas palavras e seu sofrimento único de abandono foi a única forma de testemunhar para sempre sua existência, mostrar que seus curtos três anos de vida foram, senão capazes de impedir o prolongamento do sorriso de um pai ou uma mãe ou dos seus amigos, ao menos suficiente para despertar da letargia e contagiar alguém que o assistia do outro lado do planeta, tocar outra pessoa com o seu caso particular, sua dor e suas palavras, a este cidadão que assistia a tudo isso atônito, em conjunção com outros possíveis humanos perdidos e aleatórios que  talvez ao ver a mesma notícia nutrissem também a sensação de que alguma coisa precisava mudar e talvez levá-los a questionar a história toda em sua profundidade mais inacessível das consciências individuais e coletivas. Sim, despertá-los da letargia, em vez de simplesmente desencadear novas reações em cadeia e superficiais que logo darão lugar a outra notícia mais pungente no mundo dos jornais. Voluntariamente, seu caso jamais será esquecido, e essa situação incontornável e trágica tem que ter servido a algum propósito  maior porque é dever se recusar a aceitar simplesmente o fato. Mas se nos propomos senão a resolver em definitivo, ao menos sair do estado letárgico para enfrentar o problema, e considerando que toda reação pressupõe uma primeira identificação da vontade de lutar e ao mesmo temo a visualização mais clara do que se enfrenta, então , onde está o "inimigo" e como combatê-lo? E se ele estiver como apontou Hannah, invariavelmente arraigado dentro de cada um e uma de suas principais "virtudes" e talvez sua maior força seja a capacidade de se camuflar para não ser reconhecido, e assim vicejar do indivíduo para a coletividade até se tornar imbatível? Em suma, por analogia da reflexão aplicável ao caso, quanto fascismo há no mais recôndito dentro de cada um de nós e quais as condições que nos levam em alguns momentos a pactuar em seu nome contra a própria vida?

Indissociável da presença humana no mundo, é diante dos sentidos que a linguagem se cria, e em alguns casos, ela emudece porque os sentimentos não puderam ser traduzidos em gestos ou comunicação nem mesmo para quem os sente, e consequentemente o silêncio torna-se talvez a única resposta à dor que não se pode expressar, inclusive em algumas situações onde a dor da perda (uma dor simbólica) pode se tornar  igual ou maior ao sofrimento físico. Por alguma razão eu nunca havia falado antes sobre a morte desse garoto sírio, em 2014. Não falei porque não tinha mais o que dizer na ocasião. Há situações que não podem ser metabolizadas. A imagem aterrorizante do garoto e do contexto nunca saiu do meu espírito. O célebre anônimo garotinho estropiado, dentro do próprio hospital do qual não sairia com vida apenas algumas horas depois, sentado numa maca de campanha, sujo, esfarrapado enquanto era atendido por paramédicos, chorava e dizia, apontando para os fotógrafos ali presentes , que os responsáveis pagariam por isso, porque ele levaria pessoalmente essa mensagem para Deus, que estava vendo tudo e iria se vingar. Em suas palavras de dor e choro irresignado, o garotinho de três anos dizia que o Supremo Criador não concordaria com aquela matança desenfreada e que nós, os humanos, fazíamos coisas feias e terríveis espalhando injustiças e tanta dor. Naquele dia, eu que nunca fui muito de chorar, chorei, eu que nunca fui de rezar, até rezei. Eu, que tantos anos ateu,  justamente por não acreditar mais em um Deus que sempre abandonou os seus, um Deus que, se existe, afinal, ou tem um senso de humor macabro ou não é mais o Deus "ex machina" profetizado pelos filósofos da antiguidade, aquele que surgiria na hora certa para resolver as terríveis pendências humanas ou consertar o destino. Naquela hora, abrindo mão de todas as convicções e a acidez crítica que governa meu estômago,  inusitadamente eu quase me convertia a todos os santos apenas  para que a criança tivesse razão. A imagem de um Deus vingador e colérico como aquele poderoso do Antigo Testamento, com espadas de fogo e uma fúria indomável contra a tal humanidade malévola foi uma espécie de conforto que me passou pela mente. Mas a criança morreu em seguida, e eu decidi não amolecer minha tolerância. Jamais consegui perdoar Deus. Pior, talvez a partir daí a concepção de Deus talvez sempre me retorne como um tipo de vingador, de fato, mas que em vez de cumprir meu desejo inconsciente de partir com línguas de fogo a humanidade má em pedaços, talvez fosse de fato um deus mais cruel e mais perspicaz, e que em vez disso, talvez tenha preferido deixar a humanidade aprisionada e abandonada em si mesma, partindo-se a si própria diariamente em pedaços que jamais tornam a se juntar.

Depois, no meio de tanto atordoamento cotidiano em nossas estúpidas e excessivamente velozes relações e tarefas, no meio de tanta notícia e informações fúteis a que somos submetidos, no meio da falta de sentido da história e na ausência quase óbvia de justificativas válidas para quem não se deixa levar muito longe por qualquer ideologia fácil de náufragos, oferecida bem baratinho logo ali na esquina, passados uns meses, arquivei esse fato na memória e nunca mais me permiti falar  sobre essa dor, sobre esse menino e sobre essa frase indelével porque nunca encontrei como metabolizá-la, como 'elaborá-la" num sentido psicanalítico, existencial. Como sabe qualquer psicanalista ou qualquer um que já tenha  lidado um dia com questões similares, qualquer vivente que saiba de sua dor, para que a vida siga, o luto precisa ser realizado, relativizado, precisa ser analogizado, codificado, simbolizado com nossa vivência. Embora não seja sua única razão, a arte ganha muita força nesse contexto e palavras talvez sejam a primeira vivência elaborada de um sentimento, senão a primeira, muitas vezes a mais marcante. Daí surge o problema que, para alguns sentimentos esse processo de elaboração, vivificação ou esquecimento não é simplesmente automático, e tantas vezes seguimos em frente faltando ou sobrando um pedaço em nós, que ora nos curva, que ora nos turva, que nos faz ajoelhar ou dói visceralmente como uma flecha eternamente cravada no flanco.

Na ausência de palavras e da capacidade de enlutar, perduraram muito tempo sentimentos de impotência e o impossível compartilhamento de uma dor não digerida, não assimilada por conta dessas crianças chacinadas em mais uma guerra insana e injustificável sob qualquer ponto de vista. Assim como o paralelo nefasto com outro momento abissal da nossa história, na Alemanha de 1930 , o nazismo com todas as suas chagas, não há correlatos possíveis nas palavras mais baixas ou mais dolorosas para que toda a baixeza e toda a dor possam  por elas se extravasar e através delas criarem seus expurgos e sentidos. O problema é que ás vezes não há dor suficiente na palavra "dor" para afirmar com uma verdade visceral e autêntica o sentimento de que fui tomado ao contemplar aquele pequeno e frágil menino de três anos, todo ensanguentado e enfaixado revelando toda sua mágoa no seu iminente encontro com Deus. Às vezes não há   miséria suficiente na palavra miséria para definir a sensação coletiva que nos perpassa toda vez que surge um fato novo desses (que na verdade , é uma novidade cotidianamente repetida), cujos efeitos estão sempre repercutindo no mais profundo de cada alma. Também não há "vileza", "baixeza" ou "torpeza" suficientes nessas até então inocentes palavras para que delas façamos logo uso, codificando, rotulando e objetivando a experiência, que, uma vez assim assimilada, metabolizada, e tendo finalmente o luto se cumprido, nos daria a tão sonhada liberdade de continuar a viver como se nada disso tivesse acontecido. O fenômeno do nosso inconsciente que busca sofregamente a vida, coisa tão preciosa a Schopenhauer e Nietzsche, mesmo que por razões diferentes, aniquilando=nos as forças temporariamente ou afastando-nos de um possível excesso de memória de fatos ou valores que se mostram perigosos à própria vida, nos deixaria assim livres e realizados por codificarmos nosso sentido de viver , e assim poderíamos prosseguir em paz ou não, por essa terra de amarguras.

Foi apenas tempos depois, quando inusitadamente  assisti ao filme húngaro, "O filho de Saul",  que me surgiu de novo à memória de forma súbita e avassaladora a  analogia que, mesmo que não fosse dada em palavras, pôde finalmente ajudar na elaboração necessária para o sentimento pessoal e subjetivo de perda  ocasionada pela morte trágica do garotinho que iria ver Deus e nos denunciar por sermos tão maus. Novamente o cinema, assim como tantas vezes já me ocorrera principalmente com a literatura, a sétima arte, salvando uma vez mais para a vida, mesmo que para isso às vezes tenha que perigosamente , de forma dramática e intensa como é próprio de sua natureza, revelar a brutalidade da essência que tantas vezes compõe a própria vida. Apropriando-me de uma possível metáfora, fiz uma importante descoberta pessoal no filme "O Filho de Saul". Eu, que sempre assistira de tudo, e sempre tivera um gosto particular pelos tais "filmes de guerra", ainda mais sobre a segunda grande guerra, agora confessava a mim mesmo, emocionado e silencioso na saída do cinema, que nunca vira algo tão terrível. 'O Filho de Saul", sem qualquer dúvida, é o filme mais duro, tenebroso e impactante sobre a segunda guerra mundial que eu já assisti até hoje. E por isso, talvez o mais verdadeiro. E curiosamente não há, neste filme, aqueles aparatos e estereótipos que nos acostumamos a ver no gênero. Não há aviões, grandes lançamentos de bombas, batalhões de soldados resgatando inocentes vítimas, a "humanidade" boa lutando contra os "monstros" e vencendo, enfim, depois de muitas perdas.  Em comparação com aquilo que os filmes ao mesmo tempo terríveis , e do ponto de vista do cinema, perfeitos, como "O Resgate do Soldado Ryan", "A Lista de Schindler" e "O Pianista", haviam me revelado , embora cada um com sua particularidade ,  algo em comum: na ação e cumplicidade minha, do espectador, sempre houve a essencial identificação de um "lado mau" e um "lado bom". "Mocinhos' e "bandidos", que literalmente na "action movie" como em "Soldado Ryan" ou de forma misturada e politicamente mais complexa como em "Lista de Schindler" ou ainda lírica como em "O Pianista", sempre conferiam uma certa segurança à ação caótica da própria guerra, em meio a tiroteios, prédios caindo, bombas detonando e a coparticipação imagética e imaginativa do espectador para tornar possível o desenlace dos planos predefinidos como sugestão na tela.

Quanto ao "Filho de Saul", isso não ocorre, por várias razões. Primeiro, porque sua proposta muito mais difícil não se concentra na ação, pura, simples e objetiva a que estamos acostumados. Os "planos de ação conhecidos". Sua essência é buscar, no pânico silencioso e total abandono e submissão individual exterior de um homem a um sistema indescritivelmente bruto a extrema tensão subjetiva, totalmente psicológica, a lida rotineira de um indivíduo no meio de um sistema regido, preparado e criado para executar a morte coletivamente com perfeição e eficiência, mesmo que isso implicasse numa grotesca e macabra engenharia. E foi no desenrolar dessa história indescritível desse filme extremamente denso e doloroso que pude pela primeira vez, por analogia, sentir a configuração interna do meu terror e da dor de empatia no dia em que ouvi o menino sírio. Esse efeito se deu muito menos pelo terror do nazismo palpável e visível do filme, coisa do cinema que todos hoje já conhecemos e nunca parecemos conhecer o bastante, mas muito mais pela questão extremamente subjetiva, a experiência particular insubstituível do drama vivido pelo  protagonista.

Nesse filme, o foco portanto não é a 'ação" exterior típica dos filmes de guerra, que quando existe ao mesmo tempo tem a dupla e ambígua missão de configurar os polos ideológicos da luta universalmente conhecida e aceita -- e sob cujo desenrolar aderimos as nossas próprias bandeiras aos roteiros, às falas, aos gestos-- ao mesmo tempo em que precisa cativar o olhar do espectador para os espaços entre a respiração e os movimentos. No "Filho de Saul",  é o contrário que ocorre. A "não-ação", o sofrimento mudo que é também a implosão violenta da  apatia atávica de que muitas vezes foram acusados os próprios judeus por terem aceitado passivamente seu amargo destino e não terem se rebelado sistematicamente contra o domínio alemão logo no início da guerra. Isso tudo é capturado inteiramente do ponto de vista da personagem, pela inação subjetivada, o olhar trêmulo, angustiado e sobretudo passivo do protagonista, revelado por câmeras posicionadas em extremo close de ação o mais próxima possível , ora colado ao rosto, ora mostrando o que Saul vê no ambiente que o cerca, o que aumenta absurdamente a sensação de terror e impotência, sempre sufocado e rodeado por fornos de gás ou antessalas cheias de cadáveres nus de homens, mulheres e crianças.

Este mesmo Saul, cuja pretérita história real não é revelada, surge nas alas internas do crematório do campo de Auschwitz, cumprindo de forma mecânica a dura tarefa de cremar os corpos dos judeus recém-chegados aos fornos coletivos depois de esvaziar as câmaras de gás juntamente com o grupo de judeus residentes designados para aquela mesma tarefa. Um grupo, aliás, formado apenas para cumprir essa tarefa, e cuja duração, normalmente, não excedia três ou quatro meses antes de ser ele próprio exterminado e formado um novo, para que não se formassem testemunhas vivas de toda aquela rotina.  Nesse processo,  sua inércia absoluta e resignada com a rotina macabra só é quebrada quando surge um jovem que mesmo após a câmara de gás, consegue ainda sobreviver milagrosamente. Aquilo desperta a atenção de todos do grupo, gera uma fugaz e real esperança de que pelo inusitado da situação, ele possa escapar com vida, mas  o médico nazista, informado em seguida sobre o ocorrido, chega rápido ao local e primeiramente, fria e "cientificamente" mede sua pressão, ausculta o pulmão e os batimentos cardíacos, declara que de fato está vivo, e para surpresa de todos, imediatamente o sufoca, apertando-lhe o nariz e o impedindo de respirar.  O jovem, ainda enfraquecido pela sessão de gás, tenta debilmente se desvencilhar e continuar vivendo, mas morre em seguida, sob os olhares de outros nazistas e dos diversos judeus assistentes de crematório dentre os quais está Saul. Não satisfeito, o médico nazista recomenda que seu corpo seja encaminhado logo para autópsia e estudos, em razão da curiosidade médica.  Nenhum dos judeus ali presentes se move, nenhum deles fala qualquer palavra ou esboça qualquer gesto para tentar salvar o rapaz, inclusive Saul. Mas posteriormente, incomodado com a morte cruel do garoto, Saul inusitadamente redescobre um aspecto soterrado de sua própria humanidade ao tentar recuperar o corpo do menino para dar-lhe a liturgia judaica através de um rabino e um enterro digno. A questão aqui, que tira o filme da categoria "simples" para extremamente complexa, é que nesse processo que se desenvolve a partir daí, cria-se a ilusão de que o garoto poderia ser filho do próprio Saul, o que se descobre não ser verdade no correr do filme. Mas Saul, de alguma forma, "adota" aquele garoto como seu filho, e passa a agir como se, na qualidade de pai de um jovem morto, devesse a ele todos os ritos fúnebres judaicos pertinentes.

De certa forma , por causa de uma situação específica que ocorre na vida de Saul, justamente sua incapacidade contextual ou existencial (intencionalmente isso não fica muito claro), mas é a incapacidade ou impossibilidade , para o personagem, de lidar com a dor, incapacidade de significá-la, torná-la concreta, cuspi-la, chutá-la, conseguir enxergá-la, e assim tentar metabolizá-la em significado possível e passível de ser suportado, é exatamente essa incapacidade que cria o espaço impreenchível da sua alma, o mesmo espaço que o personagem procurará preencher com a presença simbólica e fictícia de um filho a quem ele doou sua própria paternidade para que a criança se rehumanizasse depois da morte, mesmo dentro do próprio inferno. Em "O Filho de Saul", o protagonista não é o grande ator  que encarna o papel. É a dor. E uma dor maior: a dor da falta, uma dor de ausência do objeto passível de ser envolvido pelo sentimento. Talvez então, por essa  analogia, este tenha sido o mesmo sentimento de espírito que me ocorrera no dia em que vi aquela criança síria proferir sua poderosa e dolorosa sentença contra a tal humanidade. Súbito, abismou-se um espaço vazio que há dentro de nós, do qual se sabe a ausência menos pela razão do que pelas vísceras, mas no qual algo  simplesmente se recusa a simplesmente aceitar que seja preenchido de qualquer maneira apenas para que "a vida siga". Um espaço que se recusa a ser preenchido porque quer ser abismo.

Saul, o personagem, é antes de mais nada uma espécie de autômato, um zumbi que nada sentia, anestesiado em defesa orgãnica contra a brutalidade , um corpo que nada desejava e cuja rotina se resumia a cumprir mecanicamente as ordens no seu setor de trabalho, permanecendo vivo e aniquilando em sua própria humanidade para assimilar sem perecer a dor coletiva do jugo nazista sobre os seus, sobre si mesmo, sobre seu corpo e sua vida, a ponto de se tornar ele mesmo, juntamente com mais meia dúzia um grupo de trabalho que ajudava a máquina da morte a operar dentro dos campos de Auschwitz. Mas isso muda radicalmente porque ,no decorrer da ação, ele é  abruptamente resgatado pela absurda violência individual cometida contra apenas uma criança judia, pelas mãos de um único médico nazista. Seus olhos se abrem nesse momento, e ele se torna outro porque tocado por uma dor maior, contra todo tipo de anestesia. Se havia antes suportado todas as dores possíveis e impossíveis, diante desta ele capitulou. Ele aprendeu a conviver com as primeiras dores, mas não pôde conviver com ambas, porque a segunda, dada sua natureza, foi muito maior que a primeira. Se a desumanização já operada em seu espírito matou o suficiente dos sentimentos, jogando-o para uma plataforma sólida de negação e continuidade com finalidade de preservação para que ele seguisse no inferno em que se encontrava, a segunda impôs uma mudança radical, a ponto de mudar inteiramente seu comportamento, que agora se tornou ativo, obstinado e capaz de enfrentar a tudo e a todos na esperança de dar um enterro decente ao garoto que tomara como seu filho. Ele percebe o que acontece, de forma intuitiva, percebe que assim selará seu destino voluntariamente, mas assume a consequência. Não era possível mais, a partir desse momento no tempo, o brutal sufocamento do garoto, permanecer o mesmo. Sua única esperança de continuar sendo gente, depois de tanto sofrimento, era conceder àquele garoto uma paternidade acolhedora mesmo depois da morte, um "funeral judeu" dentro dos rituais sagrados, algo que o destituísse da realidade trágica, reconduzindo-o, por via do rito, a uma humanidade de direito que lhe foi tolhida. Adotar aquela criança era se torná-lo novamente humano em meio à total bestialidade do mundo, e com isso, tornar-se ele próprio novamente mais  humano .

No fundo, descobri por essa imagem, uma simples analogia que falou muito alto em mim, que vivemos todos indistintamente procurando 'O Filho de Saul", assim como o protagonista do filme. Procuramos a nós mesmos, nossa herança, nossos restos e fragmentos de humanidade diariamente nos destroços e nas cinzas da vida que segue sempre cruel, fria e "Humana", sempre "humana", num sentido em que não há como a tal "humanidade" fugir, conforme noticiada nos jornais do mundo inteiro. Isso porque, mais do que nunca, ao contrário das correntes definições de "desumanidade" que normalmente se atribuem a tais fatos, quando os queremos condenar,  não nos define com propriedade. Não há , na realidade, essa polarização bons x maus, como acertadamente intuiu Hannah Arendt. Vemos essa crueldade e devemos por princípio e por coerência, ao contrário de nos indignarmos por uma condição negativa excludente, a ponto de considerarmos "monstros" os que a praticam, devemos sim, testemunhá-la, essa traição à vida, o desrespeito para com o outro, legitimá-la para compreendê-la,  a partir disso, como a verdadeira 'Humanidade". Somos todos bestiais, em algum grau. Ninguém escapa à condição humana. Pintar as projeções imaginadas com tintas do arco-íris não mudaria a forma como a  efetividade do real se nos aparece  na história. Como nossa característica intrínseca, e talvez a mais visível para os espíritos livres e sagazes. Esse "atributo" de ser cruel, tantas vezes denunciada pelos grandes pensadores desde Aristóteles até Sartre, capturada em detalhes pela grande acuidade de Freud, atributo que talvez nos tenha mantido  "liderando" e "dominando" o resto da natureza de maneira totalitária, inclusive o dom de  continuarmos torturando e trucidando uns aos outros indefinidamente. Isso é o que nos constitui, e mesmo sendo uma descoberta  trágica, não há como nos livrarmos inteiramente dessa condição, mas é imprescindível que de alguma forma façamos a tentativa de exercer algum tipo de controle mais rigoroso por vias éticas e coletivas em relação à vida, e dessa forma, criar novos valores em eterno conflito administrável tanto de forma individual quanto coletiva, mantendo sob controle o germe  que espreitará por uma chance eternamente.

Todos nós procuramos o filho de Saul, e a dor de Saul  também é a nossa. Eu ainda acho pouco provável que Deus, a essas alturas ( sim, o mesmo Deus invocado pelo garotinho Sírio e a quem eu ainda não perdoei, o Deus que não veio com seus raios de fogo para partir o mundo aos pedaços, mas ironicamente nos deixa, os humanos, partindo-nos a nós mesmos, aos pedaços), apesar de tantas e repetidas súplicas, tome pé da situação dos genocídios espalhados pelo mundo ou resolva algum problema que cabe mesmo é à nós mortais resolver. Daí que por ora, enquanto isso não ocorre, seguimos todos, ao menos os poucos de nós que ainda não são ou não foram cooptados de forma banal e alienante, estupidificados pela rotina desses  trabalhos mecânicos e massivos que infestam nossas cidades ou levados a agir de forma inteiramente equivocada por ideologias ou religiões alienantes, a "Nós", auto-intitulados, a quem cabe alguma sensibilidade que juntamente com o poder de agir vai gerar a tão almejada "consciência transformadora de mundo", todos nós que sobramos e ainda brincamos de fabricar e soltar bombas e equilibrar numa balança descompensada a eterna lida entre Eros e Tanatos,  por quanto tempo recolheremos ainda   os restos de uma criança morta por violência  a cada dia dessa vida, sem jamais falhar, e depois ainda continuaremos buscando justificativas de todo naipe para tentar preencher um espaço, um lugar dentro de nós que jamais pode ser preenchido?

 Lá fora, no meio dos escombros, sempre jaz o filho de Saul que jamais retornará à vida.