"Are you experienced?"


E trinta anos depois de conhecer , "isso" ainda me impacta e emociona como se fosse a primeira vez. Porque ouvi-lo é sempre um ritual e tem cara de primeira vez. Horas e mais horas de vinil quase furado de tanto ouvir as faixas.
Com sua criatividade e ousadia que jogaram por terra boa parte do "bom-senso" da composição musical tradicional, Hendrix mesclava pegadas do blues moderno com um novo tipo de rock, não necessariamente mais complexo em seu conjunto, na forma em que alguns outros grupos progressivos já vinham mostrando no final dos 60 e começo dos 70, mas com uma proposta de timbres e uma beleza nos solos completamente inovadora. Até porque havia um tipo de "especialização" em voga, e não era muito comum um exímio instrumentista também se aventurar nos vocais. Normalmente as funções na banda eram separadas. Alem de tudo, o cara tinha uma boa voz e mandava bem na forma de cantar , com muito feeling.
Ele trazia harmonias inusitadas (normalmente desaconselháveis nos padrões musicais) e abusava das melodias impactantes que muitas vezes eram tocadas em notas marcadas junto com a voz num solfejo jazz-blueseiro por pura provocação.
É hino americano tocado virtuosisticamente em forma de protesto, com milhões de bends elásticos e alavancadas furiosas, assim como os furiosos aviões bombardeando Woodstock como se estivéssemos no meio da guerra do Vietnam, é versão de música de Bob Dylan que se tornaria imortal "Like a rolling stone", é manifesto político e existencial sem perder o tom poético, é viagem pura lisérgica com nuvens púrpuras no melhor estilo "flower power" 70, e a delicadeza das eternas little wings sobrevoando sonhos.
Jimi, perfeccionista e permanentemente insatisfeito como criador, a ponto de fazer e desfazer a banda várias vezes com diferentes formações a cada novo projeto, a ponto de exaurir seus músicos em algumas sessões ao gravar 70 takes de uma mesma música em estúdio e ainda achar que a gravação final não ficara boa o bastante, demandava sempre novos efeitos, seu som pedia mais, e os timbres que havia não eram suficientes para que sua alma falasse tudo o que tinha a dizer.
Hendrix buscava o tempo inteiro a humanização do som da guitarra, e nesse sentido praticamente foi sob sua orientação que foi gestado e aperfeiçoado o pedal "Wah" para guitarra, aquela "ferramenta" incrível que detona na abertura de "VoodoChild", um efeito sobre o qual ainda hoje é sem dúvida um dos maiores mestres. Seu trabalho junto com desenvolvedores e engenheiros antenados do meio eletrônico mudou para sempre o padrão de amplificadores e efeitos em geral. Através da grande potência criada para os novos Amps como o precursor valvulado "Marshall", Jimi ainda fez um uso feroz do feedback, o tal retorno do som direto da caixa que faz vibrar de forma insana as cordas da guitarra e criam uma microfonia controlada, coisa usada hoje em dia por 9 em cada 10 roqueiros. Além disso, o pedal de "fuzz", por exemplo, um drive completamente diferente do que ainda hoje se vê, foi criado a partir de sua experiência e sentido de timbres.
Um traço curioso da personalidade, testemunho de vários documentários, filmagens oficiais e clandestinas de época e depoimento de diversos amigos era ao mesmo tempo o temperamento doce, a simplicidade de caráter e a facilidade de se comunicar com qualquer um, além da situação particular de nunca ter lidado muito bem nem com dinheiro nem com a pressão excessiva do showbizz. O cara se apresentava hoje num ginásio lotado ou em pleno Woodstock, para muito mais de 100 mil pessoas e amanhã num ginásio universitário na Suécia, para pouco mais de quinhentos gatos pingados, e sempre com o mesmo espírito alucinado e envolvido na música.
Alguns artistas normalmente são bons porque aprimoraram algo ou foram ruptura com relação a algo, mas sempre algo subjaz como "pré" ou "pós" na maioria das artes e contextos sob os quais se analisa. Jimi era diferente porque simplesmente seu som parece que nasceu do ar. Não há precedentes nem continuadores, embora haja milhares de influências posteriores sobre tudo que é som. E além disso, aquela Strato. Meu Deus, que som é esse? Nunca antes e nunca depois uma Fender soou igual...
Acima de tudo, Jimi também foi a personificação ímpar de toda uma era, a "contracultura" que de forma geral nas artes plásticas, cinema, literatura e particularmente com muita força na música, com sua atitude e suas roupas exóticas e coloridas, seus cabelos longos e a proposta do coletivo contra o excessivamente individual mostrava ao mundo ainda envolvido em ideologias questionáveis e guerras sangrentas que alguma coisa estava errada com a tal "racionalidade cartesiana" que constituiu o ocidente.
É por isso que ainda hoje, quando paro pra ouvir ( E Hendrix é daqueles caras que a gente tem que parar pra ouvir, porque é quase inadmissível a situação de ouvir Hendrix "enquanto se faz outra coisa", enquanto dirigimos, enquanto escrevemos, enquanto falamos sobre qualquer coisa) tenho a nítida impressão, ou pra dizer melhor, uma impressão estilo "Purple haze" de que Jimi, se de fato não era um tipo de Extraterrestre, ele era na verdade um som.