ESTÉTICAS URBANAS E ALGO MAIS




























Que me desculpem os excessivamente contemporâneos, liberais, libertários ou anarquistas pós-modernos que sempre têm a tendência a valorizar em absoluto toda e qualquer “qualquer atitude” humana como ato artístico. Nem mesmo o mestre Aristóteles, um dos maiores pilares de nossa herança filosófica sobre o conhecimento do mundo, com toda sua cabeça organizadora e classificadora extremamente ampla, talvez admitisse tamanha abertura.



Para não me perder nas infinitas e densas discussões acadêmicas sobre estética e teoria da arte, falo aqui especificamente da contradição sólida que existe entre a pichação e o grafite, como atitude, pertencimento ou como propostas estéticas na ótica da cidade aberta, tendo seus muros expostos como verdadeiros painéis potenciais da arte ou do seu completo impedimento. Então, sem maior necessidade teórica que não seja ao menos complementada com a efetividade prática de uma boa e atenciosa andada por todos os cantos da cidade, há uma diferença sensível entre as duas propostas mais recorrentes de ocupação do espaço por vias estéticas, o picho e o grafite. Defendemos a idéia de que, como liberdade de expressão e reivindicação de um determinado espaço por alguma razão de ser, que pode pertecencer e ser legitimada em algum grau pela esfera política, social ou existencial urbana, ambas as possibilidades de expressão não devem ser rechaçadas, mas acolhidas da mesma forma, em igual status e importância, mas por viés diferentes. Enquanto defendemos a idéia de que ambas são, por si sós, linguagens, naquilo que propõem de comunicação com o “outro” e busca de reconhecimento dos seus signos, na efetividade estética isso se dá de maneiras distintas, e enquanto o grafite historicamente ocupa a nosso ver o espaço da arte, o picho permaneceria na órbita da linguagem escrita, pela particularidade dos seus signos. Enquanto o grafite é estetização, e nisso possui ainda muito da clássica opção ocidental pela imagem como forma, o picho, não necessariamente menor ou menos pujante na sua proposta ou no direito de se expressar, contudo quando o faz melhor, não o faz através da proposta de imagem, mas da expressão pura de palavras, frases, conceitos tipicamente verbais.



Como vivemos tempos quentes por aqui, nos últimos anos, antes de ser acusado de “reaça’ ou de ter minha singela opinião rechaçada a título de “não contemplar todas as mudanças necessárias ao advento do contemporâneo”, afirmo que esta minha visão não se dá por algum tipo de preconceito ou simples reprovação elitista dessa manifestação em si, o “picho”. Embora em termos pessoais eu tenha cá minhas reservas sobre a pichação de espaços notoriamente dedicados à memória histórica, como monumentos e outros ícones públicos, não sou absolutamente contra a existência da pichação, em si mesma, posto que ela pode vir a ocupar espaços essenciais onde a linguagem mais “clássica” ou vinculada ao imagético não tenha condições de se inserir. Exerço a crítica do picho na relação com o grafite neste texto apenas porque não a considero, do ponto de vista estético (embora em alguns momentos grupos específicos de pichadores possam reivindicar para si esse status), algo que atenda aos seus próprios pressupostos supostamente revolucionários, transformadores ou re-direcionadores dentro de uma ótica urbanística, para uma realidade melhor, mais ampla, mais inclusiva ou por fim, dotada de alguma beleza ou poder de contestação. Minha impressão é de que o picho não consegue atender aos seus alegados pressupostos de arte ou anti-arte “transformadora”, “questionadora”, e “direcionadora do olhar para uma nova era”, como muitos lhe atribuem, porque sua própria expressão estética está longe de exercer esse papel que caberá, na verdade, como defendemos, ao grafite, dentro da cidade.



Toda generalização pode ser injusta por natureza, mas na prática cotidiana e ritual da pichação, é comum encontrar grupos cuja única razão de existir parece ser apenas localizar o prédio mais alto para lançarem suas garatujas e assim se afirmarem contra um grupo rival, evidenciando um caráter maior de “demarcação de território” do que a busca da expressão de uma determinada postura em relação ao mundo. Na disputa pelo espaço urbano para recolocar em bases estéticas suas pretensões, é o grafite quem propõe essa transcendência do óbvio através da imagem, e não o picho. Isso porque é o grafite que se mostra enquanto proposta de linguagem e comunicabilidade sobre o contexto em que se situa, evadindo-se do hermetismo próprio do picho, quanto à simbologia da linguagem que normalmente nasce do seu próprio grupo, e muitas vezes nele permanece, sem maior alcance ou compreensão.



. A questão maior aqui nem é apenas estética, enquanto “embelezamento” a ser possivelmente atribuído ao grafite, ou uma potencial “crítica a essa beleza”, hipoteticamente característica própria do picho. Nem mesmo uma discussão de que, enquanto o picho deveria continuar sendo proibido, o grafite deveria por si só ter aquela permissão acobertada pelo “sistema” ( tese que contesto o tempo inteiro) mas situa-se muito mais sob a órbita própria da linguagem. Enquanto o grafite propõe diálogos e possui enunciados em sua esmagadora tendência mais claros e abertos a múltiplas leituras, o picho tantas vezes sequer parece saber o que diz, ou se sabe, e tem alguma intencionalidade, devido à sua rusticidade, deficiência estrutural ou imperfeição mesmo enquanto suposta linguagem, isso não consegue ser passado para outros grupos que não sejam apenas aquele determinado grupo específico, que já fala aquela mesma linguagem composta por sinais próprios, sua simbologia e os códigos para sua decifração, e através dessa linguagem mais hermética, torna-se praticamente inacessível para os demais que não pactuem com esses códigos. Dessa forma, não tendo enunciado, organização dos signos válida ou desprezando completamente o “lado de lá”, o interlocutor, o picho, independentemente de seu conteúdo estetizante ou não, deixa de ser ainda uma proposta linguagem enquanto a conhecemos, embora possua evidentemente inegável valor antropológico e mesmo histórico, por se constituírem como registros de uma dada coletividade.



Contra o mau humor dos excessivamente conservadores, que pensam que Grafite , picho e sujeira são tudo a mesma coisa, e que muro é lugar para ter apenas tinta lisa pura, tijolos ou outdoors com aquelas malditas propagandas, cada uma pior do que a outra, já estava na hora de admitir uma abertura maior da mente, além da libertação do espaço externo da cidade, que a rigor, sequer lhe pertence. São espaços públicos, por natureza, todos esses muros que são na verdade “grandes telas” disponíveis para intervenções que podem ser altamente benéficas para qualquer cidade, e não necessariamente apenas nas metrópoles. Também não pouparia minha crítica a quem argumenta pelo sentido invariavelmente “burguês” do grafite, contra o cabimento heroico e salvador da pichação como “verdadeira linguagem das ruas’, representante do "poder de não limitação da arte por conteúdos estéticos precondicionantes" etc. Reitero que a idéia não é rechaçar ou reprimir o picho, por si só, mas questionar seu papel diante de outra alternativa a nosso ver muito mais vasta e rica, como o grafite, na disputa pelos mesmos espaços. Nesse sentido, enquanto a nossos olhos a pichação é penas primal, ato reflexo da demarcação de territórios deste indivíduo ou deste determinado grupo em particular, geralmente para mostrar que são os donos daquele espaço. O grafite, ao contrário, é a elevação de todas as potencialidades do espaço urbano, esse espaço tantas vezes insosso e metrificado dentro de uma ótica limitadíssima condicionada pela arquitetura funcional dos grandes centros que exauriu-se completamente em suas potencialidades quando são tiradas do espaço mais elitista composto pelas corporações e instituições tradicionais (escolas, empresas, órgãos públicos, igrejas etc).



Saindo um pouco da cansativa introspecção para a vida real aqui fora, um dos exemplos mais vivos dessa realidade cotidiana, no meu ir e vir, é o próprio bairro de Jardim da Penha, em Vitória, onde resido há alguns anos. Bairro razoavelmente bem resolvido em boa parte de seus problemas, ainda sofre como ninguém pela incapacidade da arte mural ser impulsionada a ocupar seu verdadeiros espaço. Sabe-se do relativo egoísmo de proprietários de prédios, terrenos e comércios locais e da sua comum indisposição em ceder esses “painéis murais” aos nossos grandes artistas, e vê-se poucos lugares onde o grafite ainda pontua com suas cores. Enquanto isso, até porque sua proposta ainda não acolhida pelas nossas leis o reprime, o picho segue reinando livre nos interstícios físicos das urbanidades bairristas. Na prática, vemos em Jardim da Penha um grafite para cada cinquenta pichações, aonde pude perceber. Sim, já contei, nessas inúmeras caminhadas que tenho feito nas manhãs pelo bairro.... Está evidente, a um singelo olhar, toda a diferenciação de uma coisa e outra, entre pichação e grafite, a qualquer observador comum, que tenha a paciência de uns cinco minutos para contemplar. Aqui, sem teorizar, mas a um simples contato dos olhos, é possível apreender a diferença clara que essencializa cada uma dessas duas propostas. O grafite transporta, recria, utiliza-se, em sua estruturação, de objetos da própria arquitetura das ruas, dos prédios, das calçadas. Acrescenta cores, acrescenta novas perspectivas no dimensionamento do olhar. A pichação, longe disso, que evidentemente pode guardar ainda seus significados antropológicos ou políticos, até mesmo na luta para que sua atividade seja reconhecida em algum momento ou descriminalizada, contudo nos induz, conscientemente ou não, a olhar para baixo, incita o não-olhar porque seus sinais herméticos, aqui compostos em sua maioria de iniciais em letras de forma, frases de xingamento ou fragmentos de textos literários sem contexto, não faz ver, não faz pensar, não faz absorver o sentimento de qualquer idéia ou mostrar seu potencial de comunicação. Picho, portanto, nesse sentido não se mostra como uma linguagem, porque não comunica a ninguém a não ser ao próprio grupo ou ao próprio indivíduo, que possui seus códigos fechados de leitura. O grafite, diferentemente, ao menos traz em si uma proposta mais universalista de ser diálogo, porque sua temática é intencionalmente mais aberta. Ele transporta, conduz o olhar a uma outra realidade, superior porque mais bela, revitalizada pelo olhar renovado ou essencialmente modificado para perceber e revelar o que antes não se via, e que agora despertou no contato com aquelas cores, com aqueles sinais geniais do artista em pleno ato criativo que marcou positivamente o mundo em sua passagem por uma simples rua, uma avenida, os fundos de um prédio ou um armazém.



Pena que isso tudo, a contínua criminalização do movimento e o não chamamento ao diálogo dos pichadores, bem assim a resistência à expansão do grafite por inúmeras áreas urbanas potenciais, associado ao egoísmo controlador dos grupos que mantém as estruturas físicas da cidade sob seu domínio, ao que tudo indica continuará sem solução por muito tempo, reproduzindo como hoje se vê, à proporção de um grafite para a média de cinquenta pichações, uma vez que não há qualquer interesse público no assunto. As poucas e louváveis iniciativas em contrário refletem apenas a parceria isolada de algumas entidades privadas, algumas escolas, alguns condomínios mais ousados, um ou outro restaurante cujo proprietário tem olhar para algo além da mera caixa registradora. Os poucos grafites que há por J. Penha já valem a passada para perceber suas estéticas da contemporaneidade. Eu mesmo cansei de mudar meu trajeto a pé por essas ruas, para poder acrescentar no caminho o percurso onde há mais grafites. Evoé, grafiteiros! Que não se desanimem diante das dificuldades e que sua arte continue sempre em alta perspectiva, pra tornar nossas cidades mais pulsantes!