O POLITICAMENTE CORRETO É CHATO?






 Vivemos uma ditadura do " discurso politicamente correto?". Nos últimos tempos, tanto na análise de matérias jornalísticas, postagens em redes sociais ou mesmo no bate-papo entre amigos mais chegados, tenho testemunhado diversas expressões de insatisfação com o que parece ter se tornado senso comum. Os depoimentos, com poucas variações são uma espécie de condenação à “perda da liberdade”, no sentido de que, se alguém tentar exercitar qualquer opinião original, passa a ser considerado um subversivo do mais alto risco, sujeito a todo tipo de intempéries, desde os mais usuais e previsíveis xingamentos de facebook até levar uma cusparada ou uma pedrada na rua. Não são poucas as demonstrações nesse sentido, incluindo os amigos e conhecidos do mais alto gabarito intelectual, humano, científico ou artístico, que ora reclamam e fazem barulho, ora simplesmente se calam diante dos tais dedos ameaçadores surgidos não se sabe bem de onde, após o assentamento inconsciente de que a era atual seria a mais correta e incomum da história, do ponto de vista ético, social e existencial .


Essa constatação, segundo uns mais exaltados, ao contrário do que poderia sugerir, não teria tornado o mundo um “mundo melhor”, mas com certeza um “mundo chato”, “previsível”, “vigiado” e “banal”. Uma época que, segundo testemunham, agora se encontra cheia de paladinos da nova ordem que se julgam capazes de dizer o que é certo e o que é errado sem maiores fundamentos, apoiados apenas nas ideologias políticas de plantão. Essas mesmas ideologias baratas que no fim das contas revelariam, depois de décadas de uso e abuso do poder, que não passavam mesmo de apenas mais uma ideologia de plantão. Resumindo, o discurso do politicamente correto seria, na verdade, a típica história do cego que quer conduzir a procissão. A hipocrisia conduzindo tudo, e eliminando a possibilidade de expressão natural dos indivíduos, tudo em prol de um discurso genérico, insosso, calcado em valores impraticáveis. Todos sabem ou deveriam saber que no fundo, os que alegam isso em sua defesa, tanto numa briga no meio do trânsito quanto no fervor intelectual de uma aula na faculdade; no alto de uma acalorada discussão real ou virtual, ou depois de uns copos de vinho ou umas garrafas de cerveja numa happy hour no boteco de lei, de alguma forma deveriam saber que essas atitudes politicamente corretas são impraticáveis, mas alguns ainda insistem em apregoá-las como o melhor caminho para o rebanho. Alegam ainda que o “estado de afirmação do politicamente correto” sobre todas as cabeças seria, mesmo, a hegemonia do superficial que quer se mostrar profundo, mas se esquece do mais óbvio, em seu trajeto impositivo: esquece-se que em todo humano há também um quê de bestial, que nossos inconsciente esconde histórias nada louváveis e a capacidade de olhar para si mesmo através da total liberdade de consciência e de ação (liberdade que aliás é castrada pelos discursos do politicamente correto) é o que evidencia, na verdade, por ser antinatural, o lado que precisa ser pacificado e chamado para a luz. Ao contrário do que seria a tese hegemônica incutida no “politicamente correto”, essa coletividade impositiva segundo eles naufraga num erro tosco de atitude, uma vez que baseia-se, em sua construção, em normas de comportamento e assentimento coletivo, e diminuem o individual de sua força “natural”.


Nessa mesma época em que despertei para o assunto pela frequência com que ele sempre surgia pelos poros ao meu redor, acabei involuntariamente participando como um mero observador aleatório de um típico debate de Facebook, desses mais recentes, e não me lembro ao certo qual o fato-raiz que originou a discussão, mas seus pressupostos estavam relacionados mais ou menos à forma que exponho a seguir: Um dos polos (o autor do post) argumentava que, ao contrário de décadas ou séculos atrás, mais notadamente após o surgimento das idéias iluministas na Europa, onde por influência do Liberalismo a introdução aos contextos ou grupos sociais era colocada primeiramente pela referência ao indivíduo, em suas considerações, opiniões e vivências, normalmente expressando-se inicialmente pela forma: "Eu penso que...." , hoje em dia, após as inúmeras transformações que ocorreram na órbita das liberdades individuais que foram sendo suprimidas em favor de uma coletividade estúpida que se aloja em um certo inchaço do Estado, se alguém quiser ainda ter alguma idéia ou demonstrá-la, deveria obrigatoriamente começar assim: "Perdão por expressar minha opinião. Por acaso, eu tenho uma!!" . O proponente do debate continuava ainda nessa linha, dizendo ainda que, mal bastava você se expressar de forma mais sincera em qualquer assunto ou contexto o que realmente pensa ou sente sobre aquilo, e logo vêm os chatos dizendo que, segundo sicrano ou beltrano, segundo a doutrina acadêmica em moda no momento, ou segundo aquilo que eu mesmo penso, mas não tenho coragem de revelar em público e portanto exerço meu mister somente na arte do recalque, venho agora lhe dizer que isso não é "correto", que isso não deve ser dito, que aquilo lá não é conveniente. Excetuando-se os casos onde isso possa eventualmente ter alguma relação com a estrita preservação da vida humana, mas no restante dos noventa por cento onde o assunto é mera opinião sobre a vida, o autor pedia encarecidamente para que se calassem as coletividades mudas para que fosse dada voz a quem quer falar e tem realmente o que dizer, e que assim o indivíduo, nos moldes do melhor liberalismo clássico, pudesse exercitar sua liberdade para revelar aquilo que realmente pensa, sem temer a costumeira patrulha remunerada que a cada dia aumenta mais, onerando os cofres públicos.


O outro polo do debate, em suma, contraargumentava dizendo que, se por um lado, no que diz respeito às supostas liberdades de dizer o que se pensa sem se importar com o contexto, a pertinência da fala, sua adequação, ou os efeitos gerados pela força de suas palavras, talvez tenha havido uma redução da amplitude de movimentação do indivíduo dentro dos valores que professa, de outro lado houve uma real conquista de um outro espaço, sem dúvida muito maior do que havia antes por estas terras, aonde a expressão de uma certa “coletividade” passou a existir numa seara que anteriormente era marcada apenas pelo puro e frio individualismo. De fato, argumentava o debatedor, em contraponto à tese do post, que as novas políticas que mal ultrapassaram pouco mais de uma década de instauração no país, já haviam se provado enquanto eficientes instrumentos de ocasionar a inclusão social, a inclusão educacional, propiciar melhorias de renda para setores antes muito vilipendiados e ainda fazer existir, não apenas no âmbito do mercado, mas num nível maior , talvez existencial, ampla parcela da população que ainda não tinha um nome e nem espaço, através do surgimento e manifestação das minorias antes não reconhecidas. Continuava, ainda, concluindo, que se era verdade até certo ponto que o advento do “politicamente correto” limitava o fio da navalha sobre o qual deveria caminhar o indivíduo em sociedade, pois começava por regular e mesmo vigiar, de forma saudável, os limites da permissividade do discurso e das atitudes ao garantir inegavelmente a inclusão e portanto a existência e perpetuação de novos grupos compostos também por novos indivíduos que antes não tinham voz dentro da complexidade da estratificação social, o politicamente correto portanto não era assim tão ou nada repressor, mas transvalorador e instaurador de uma nova ordem.


 Seguindo em anonimato dentro da rede social, apenas na observação desse debate acirrado (mas relativamente contido dentro de um nível intelectual e respeitoso como poucos que vi até hoje na grande rede), analisando ambos os pontos, não há como não concluir em favor do segundo debatedor, e contrariar voluntariamente uma boa parte dos amigos que ainda pensam como a linha exposta pelo proponente do post, porque o politicamente correto veio realmente pra ficar, e que bom que tenha surgido com tanta força na última década!


Imagino eu mesmo, viajando nas hipóteses práticas de uma ou outra abordagem, para viabilizar sua experiência aplicada a um ou outro caso, somente para teste. Na minha infância, eu pessoalmente escutei, e não foi uma nem duas vezes, mas enxurradas de piadas, todo tipo de bullyng, atitudes de “brincadeiras” toscas e fora-de-hora, para não dizer criminosas, sobre todo tipo de assunto: era piada “de gay”, “de preto”, “de puta” “de judeu”, algumas ainda comumente associadas a defeitos usuais em portadores de necessidades especiais, e por aí afora. E digo ainda, que era tão normal ouvir isso quando eu tinha lá entre meus dez a quinze anos, que nós, que vivenciávamos aquele período onde supostamente “o mundo era mais autêntico, menos chato e os indivíduos sim, possuíam verdadeira felicidade em sua liberdade”, que quase ninguém achava nada daquilo irregular, antiético, desumano. A idéia do que vem a ser “racismo”, “homofobia”, “misoginia” e tantos outros desqualificativos da enorme diversidade humana veio apenas muito depois, assim como a inerente necessidade de, primeiro reconhecer que eles existem, legitimar seu espaço, dizer seu nome e acolhê-los como integrantes do “Nós” social.


Portanto, sinto muito (ou nem tanto assim) reconhecer contra os defensores radicais de uma certa liberdade ou liberalidade nas falas e atitudes no que diz respeito a um certo sentido ético da existência em sociedade. Felizmente não há mais aqueles “velhos tempos” onde o mundo era puro leite e mel para uns, decididamente os ingênuos e muito alienados ou os que usufruíam de situação específica de um “status” muito favorável tanto racial quanto existencial ou econômico dentro da velha ordem, e daí poderiam realmente continuar “achando graça” numa situação tragicômica de fundo ético ou estético, como se por trás disso não houvesse um outro mundo . E que tanto melhor que tenha havido essas mudanças, e que elas não parem jamais quando o excesso de individual puder ser reeducado ou alertado sobre a capacidade de “ver o mundo” com olhos mais ricos, descobrir novas nuances dentro daquilo que se convencionou chamar humanidade, e que saia desse processo mais enriquecido para uma nova ordem social. Não, como nos ensina cotidianamente essa lição às vezes tranquila, às vezes dura, definitivamente o “politicamente correto” não é chato, mas  urgente e inafastável...