TROTE





Ela subiu no ônibus toda assim, meio sem graça. Chinelos, bermuda jeans e camiseta, com uma mochila nas costas.  Pintada da cabeça aos pés. O rosto, os cabelos e o corpo todo marcado por diversas cores. Traços de verde na roupa com cabelos tingidos de azul, os braços riscados de listras  laranja e as pernas de rosa, tudo polvilhado com bastante purpurina e o que parecia ser um pouco de trigo também. Saíra para o ponto de ônibus próximo ao portão lateral da universidade, onde acabara de haver um trote de recepção aos calouros. Entrou sozinha e passou pela roleta assim, meio inibida sob os olhares inquisidores de todo mundo. Uns riam baixo, outros não entendiam muito bem do que se tratava. Na falta de outros lugares disponíveis, veio se sentar ao meu lado. F., 21, aparelho ortodôntico nos dentes, aprovada no curso de publicidade da federal, pelo sistema de cotas. Tira da bolsa a Revista "Trip" com Criolo na capa,  "Daft Punk" tocando na playlist.  Intrigado, fui logo puxando conversa: Debaixo de tanta tinta , muita atitude e conceitos. Experiência anterior com publicidade em eventos e dois anos de trabalho numa rádio da capital. "Minha chefe me incentivou a fazer esse curso. A publicidade é a arte de mostrar que a vida pode ser boa, apesar de tudo".

Eu, do alto da suposta experiência de vida dobrada ao menos em idade, mas nem tanta em consciência de mundo, acobertando conceitos demais sob uma melancólica existência, rendia-me àquela original energia jovem, que aliava a simplicidade do gesto à magnitude das expectativas, coisa própria da idade. Como fazem todos os tios adultos nesta fase em que já se sentem "os velhos" da parada, eu viajava na maionese (só pra usar uma expressão bem nova). E pensar que em algum momento,  quando surgiu  há alguns anos atrás, cheguei um dia a me posicionar contra a tal "política de cotas raciais" no ensino.  Menos por medo de ver uma política inclusiva dar certo, e muito mais pela preocupação latente de que, ao contrário, iniciassem no país uma política oficial de formação de guetos. Na forma como estava sendo implementada, eu ainda temia intenções populistas e um tanto de demagogia por parte do governo, uma vez que possivelmente o problema não estaria adstrito apenas à questão do "ingresso" na universidade, o que era contemplado pela medida, mas principalmente na "permanência" posterior do aprovado no curso de sua opção, o que pressupunha um apoio muito além do que estava sendo anunciado, e de difícil realização no país porque ninguém até então falava nisso. De forma diferente da proposta que se instaurava, entendia que a alternativa opção por “Cotas sociais”, com prevalência do fator de concessão da bolsa obedecendo a um critério possivelmente mais “econômico” do que “racial”, talvez pudesse ser melhor sucedido. Do jeito como estava, passava-se uma idéia duvidosa de que em vez de ajudar realmente a quem precisava, pela via econômica e universal, do necessário apoio e fator que a priori transcende o caráter dito “raça”, isso poderia eventualmente criar uma idéia de proselitismo às avessas, aparentemente criando um discurso de ação afirmativa racial, o que por si só não é ruim, mas na prática posterior exibindo um protecionismo desnecessário e possivelmente desvalorizando e rebaixando a urgente e histórica questão social defasada em nosso país por uma má compreensão da questão racial em substituição, em vez de solucioná-la nas suas verdadeiras raízes inseridas na pobreza disseminada por toda parte.

Não conhece a vida, quem teima em achar que na razão reside a felicidade. Redondamente enganado como eu estava, e como me mostrou o próprio desenlace dos acontecimentos relacionados aos últimos anos, fiquei mais feliz estando errado do que o contrário. Daí que, há quase década, eu me tornei um dos mais ardentes defensores da política de cotas raciais. Do tipo chato, inclusive, que compra briga em fila de padaria e nos almoços de domingo em família. Primeiramente, em razão de um raciocínio muito básico, para o qual eu não tinha atentado. “Cotas raciais” não pressupõem em momento algum a contrariedade ou impossibilidade de simultaneamente se atender a questões de natureza social. Portanto, podem andar juntas e não necessariamente se excluem uma à  outra, conforme ficou demonstrado, de forma muito feliz. Depois, porque ao contrário do que se especulava (critério aliás que advogo deveríamos sempre adotar para o caso da teoria conflitar com a prática, privilegiando portanto a vida real em detrimento de abstratas confabulações) a própria experiência efetiva demonstrou às escâncaras que não houve um índice de evasão significativo dos alunos que assim ingressaram na universidade, e para isso foi e ainda é essencial a constante expansão e a retomada de alguns programas em mesma sintonia como concessão de moradia estudantil, refeições de qualidade a baixo preço nos restaurantes universitários ou a complementação da subsistência nesta fase por bolsas de pesquisa e ensino-aprendizagem. Antes se tratava de conseguir chegar a isso, para cada vez ampliar mais o leque de coberturas em quantidade e qualidade. Hoje, no país pós-golpe, trata-se, primeiro, de não perder o que foi conquistado e resistir em trincheiras razoáveis contra os espoliadores da nação.

De outra mão, ainda em favor dessa poderosa política de inclusão, também não houve , excetuando-se as mídias excessivamente conservadoras de sempre ou manifestações execráveis e localizadas de cunho notoriamente racista aqui e acolá, uma espécie de repulsa em maior escala, pela maior parte da sociedade, ao “status’ do estudante recém-ingressado ao curso superior por conta de utilização do sistema de cotas, e uma das principais e inusitadas prospecções ainda mostrou que em diversos cursos, a maioria por sinal, ainda sequer se verificou a tão profetizada queda absurda do rendimento universitário em disciplinas, por conta da conhecida origem desses jovens, em maior escala, pertencentes aos perfis de famílias com menores rendimentos. Como depõe em favor dessa tese, o recente e brilhante filme "Que horas ela volta", que trata justamente do assunto como tema central, a maior parte dessa moçada estava mesmo era precisando de uma chance na vida, e está sabendo valorizar muito bem o que conquistou depois de duras lutas. Coisa bonita de se ver.

Logicamente houve, e ainda há, problemas pontuais nas políticas de equidade que precisam ser resolvidos, afinal trata-se de um sistema em constante aperfeiçoamento e que pressupõe muito boa vontade do Estado em querer atuar de forma firme e decidida na louvável formação acadêmica da parcela mais carente da população. E por ter uma natureza de justa retribuição do Estado à população, aonde a prestação do benefício se dá em reconhecimento, ainda que tardio, dos efeitos pernósticos que o racismo ocasionou na história do país por conta da escravidão, ainda traz em seu bojo desde sempre o cunho virtuoso de ser algo inadiável em um país como o nosso, que muito distante de ser de fato, em sua realidade cotidiana, o tal “país cordial” tão propagado, gradativamente mostrou nas últimas duas décadas, possivelmente pelo advento das redes sociais e da facilidade do indivíduo se mostrar num contexto público mais amplo, que possui sim, senão abertamente como de forma lamentável em algumas sociedades historicamente racistas, uma espécie de racismo tantas vezes velado e imiscuído dentro da forma de se falar, de se pensar a coletividade e de se cassar reiteradamente as oportunidades por políticas historicamente excludentes, o que por si só também não deixa de ser inteiramente lamentável da mesma forma.

Quando tratamos de  formação social, ethos e rumos de toda uma coletividade, não se confirma o ditado de ‘pau que nasce torto, morre torto”, mas sim são devidas e cabidas quaisquer transformações que mudem para melhor o contexto individual ou social. Nada como uma boa realidade pragmática para defenestrar teorias funestas e abstratas. Depois de ficar uma imensidão divagando enquanto conversava com a nova universitária, sinto que foi uma beleza poder verificar que eu estava errado, e que essa prática se tornou um sucesso retumbante, reiterando o caráter de inclusão social e expansão do "status" acadêmico intelectual para uma amplitude muito maior de pessoas que jamais teriam de outra forma qualquer acesso à educação superior de qualidade além-muros do campus , depois de décadas de alienação injustificada. Não fosse por isso, quanta gente como a garota F., que andava no coletivo a essas horas, estaria hoje provavelmente sendo coibida de traçar um futuro mais promissor dentro de um país que há muito já deixou de ser promessa, e quanta gente perderia a presença essencial desses jovens com seus projetos renovadores.

A essas alturas, mal disfarçando na conversa a empolgação com a vida nova que se descortinava, ela já falava como publicitária (e feminista empoderada), sobre a última campanha da cerveja tal, e em como o papel da mulher era pequeno dentro de um ambiente de mídia essencialmente masculino. Que isso era por conta de uma história equivocada e que em breve mudaria porque havia novos valores em vias de serem difundidos. Praguejava contra a indústria dos medicamentos que fazia propaganda de substâncias tóxicas como se fossem o caminho da salvação, escondendo o veneno por trás do remédio apenas para entupir as pessoas de novas doenças e locupletar-se com os bilhões de dólares a mais. Falou também sobre o "marketing espiritual" das novas igrejas neopentecostais, ,os famosos 'Biblionários" da fé e em como eles lotavam aquelas arenas cheias de pessoas simples e crédulas, apenas para lhes arrancar o couro dos últimos trocados. Sua antiga chefe a havia prevenido, nos tempos da rádio, sobre os perigos da fé tornada propaganda por dinheiro. "Sábia criatura", pensei aqui com meus botões...

Chegando ao Centro da cidade, F. despede-se, ia pegar outro ônibus pro terminal de Campo Grande e sua inicial expressão tímida e apreensiva pelos efeitos do trote universitário subitamente se ilumina depois de assumir-se no mundo pela nova profissão que a espreitava logo ali, no futuro. Aqui, comigo, torço para que dê tudo certo, e tenho também uma certeza : não sei explicar exatamente , em detalhes, o que foi que deu errado com o país até hoje, e os porquês minuciosos de termos naufragado tantas vezes enquanto nação antes mesmos de zarpar do porto, mas uma coisa o futuro apontava: A geração de F. estava aí pra mudar essa situação para muito melhor. Resistindo com golpe, ou empoderando-se no momento certo.


_"Desculpa, acho que te sujei de tinta, a cadeira ficou toda colorida...."

_"Nada não. São essas tintas que fazem a vida valer a pena"...




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editado em 06-03-17