Literatura e vida: Ser e linguagem. Relação entre gênero, forma e conteúdo. O Ensaio como síntese possível entre Poesia e Prosa

Ser e linguagem, forma, conteúdo e gênero literário. Escrever sobre tudo, alcançar a totalidade. Tarefa pretensiosa e impossível para o pensamento. Não há como apreender o 'todo", se isso mesmo, o todo, é algo que se apresenta a mim, não aos meus sentidos exatamente, mas principalmente a uma certa propensão intelectual como uma categoria da imaginação. Não há essa totalidade, isso é certo. Nem na natureza, nem na tal "vida exterior", aleatória e desgovernada. A arrumação, o sentido, o filtro que aglomera ou separa é artifício humano, e é por isso que a tarefa já fracassa antes mesmo de começar.

Dito isso, como alinhavar nessas redes neurais, afetivas, palavrísticas e de sons os infinitos significados das coisas e das inter-relações entre coisas sem arriscar-se a naufragar nesse pântano conceitual? Ora, o poema, meu caro. Já poderia Orfeu te revelar a resposta. Ou Heidegger, três mil anos depois, ao se encantar com Holderlin e a flauta mágica. Apenas o verso, o espargir palavras como vômito, a absorção da ameba ou o puro ato de canibalizar o que gira à sua volta, deglutindo e reprocessando isso tudo não de forma racional, mas primeiramente sensitiva antes de mais nada. O arranjamento possível pode muito bem vir depois, se precisar.

Ora, e todo dia e todo lugar não são , necessariamente, universos possíveis e imprevisíveis como pano de fundo para a i-realização do racional e versalização do ribombar da vida? fechamento contínuo de canais plantados ainda na infância sobre os humanos e que, sendo algo por si sós limitantes e superficiais devem sufocar-se para  simultaneamente possibilitar que as novas portas da percepção se abram em definitivo para tudo o mais que há? Essas portas para novas e mais profundas percepções podem ser abertas, como se vê na própria história, de diversas formas: pelo trágico, por estímulos artificiais ou , muito mais rara e tardiamente, por um espírito que depois de tudo aprendeu a sorrir.

Estou perto da janela do meu escritório, à noite, e toda madrugada passa um avião de cruzeiro das zero horas. É um avião gigante, daqueles que sequer podem descer ao aeroporto dessa miniatura de capital, e seu barulho silencioso e preciso, contínuo,  daqui ao longe, é diferente de todos os sons de avião que existem por aí nessas metrópoles, e me trazem a lembrança do filme "Expresso da Meia Noite", onde existe aquela locomotiva a sinalizar o tempo inteiro ao angustiado protagonista que está trancafiado numa cadeia próxima uma pequena e longínqua chance de fuga em meio às trevas e torturas que enfrenta na prisão. A poucos metros de minha casa há também uma estação ferroviária e me lembro dessa história diariamente, quando os trens entram e saem nos comboios com seu apito característico. Filme magnífico, o "Expresso", com aquela trilha sonora que arrepia até os ossos dos mortos. Vale rever.

Largo a rua, deixo a beirada da janela, de onde contemplo o tamanho do mundo, e cismo com meus livros sobre a mesa, pensando que prosa e poesia têm diferentes origens e destinos distintos. A prosa, em sua gênese, é articulação, cerebração, mediação e refazimento.  Numa idéia: o ponto aonde se quer chegar, porque há uma tendência do texto ser lavra, lapidação, depuração, sempre "a caminho de", considerando-se a influência e gestão do processo por aspectos corporais que envolvem a tensão lógica e racional, e uma suposta primazia do intelecto sobre os sentimentos, uma vez mais confirmando o julgamento da clássica dicotomia platônica "verdade racional" contra " o erro dos sentidos, instintos e sentimentos" com uma sentença em favor da razão, é claro.

Poesia é muito mais evisceração, sensação, plasmar o sentimento em algo concreto antes que ele desapareça, ou utilizar-se tantas vezes da memória para em algum grau reconstituir aquele primeiro momento, ainda não "pasteurizado" por todo um processo reflexivo, de modo a preservar inteiramente todo seu frescor e poder de evocação. Portanto, a poesia é muito mais ponto de partida do que de chegada, ou seja, "origem", em vez de "a caminho de", como afirmei sobre a prosa. Aqui existe  uma outra força motriz por detrás das palavras, que de forma consciente ou não, muitas vezes deseja cortar caminho e ir direto ao âmago do que se diz, em consonância com a apreensão dos sentidos sobre as "coisas do mundo". É óbvio que estou dissertando aqui sobre abordagens mais ou menos convergentes, mas há também as divergentes como o "Parnasianismo", que entenderiam a poesia também como um processo de elaboração extrema, de 'construção" e "engenharia lapidar" do poema. Apesar de seu grande valor na história, deixemos a concepção Parnasiana de lado, para objetivo deste ensaio.

A poesia , em sua origem, não-escrita, mas verbal, utilizava-se do forte instrumento do ritmo, da musicalidade, da marcação do tempo por compasso e em muitos contextos com a estimulação artificial dos sentidos com drogas, bebidas ou canções assimiladas para ampliar os estados limitados da consciência e fazer valer a força das palavras e da "embriaguez poética", geralmente obtida pela sua função mística, evocativa, utilizada em templos ou tantas vezes nas músicas e acompanhamentos das danças sagradas de diversos povos. Essa "embriaguez poética" tem  possibilidades infinitas de manifestação, seja pelo recorrente "êxtase religioso", tantas vezes já desmascarado e reportado como função orgástica ou prazer de natureza sexual sublimada ou também presentes em outras formas, como o próprio êxtase sexual em sua natureza mais pura, simples e declarada, que remete aos instintos animais que compõem fundamentalmente aquilo que denominamos de "humano". Isso embora ainda choque os mais conservadores, tem ampla aceitação tanto na psicanálise depois de Freud quanto nas suas interseções com o mundo da criação artística em suas diversas nuances, haja vista o sexon, além de possuir uma beleza intrínseca pelo ato em si, constituir-se ainda uma das forças mais poderosas e condicionantes que há em toda a natureza. Tal situação por vezes é enaltecida não apenas na literatura mas também em outras artes dentre as quais o verdadeiro erotismo atua como catalizador, desde que seja abordado em sua melhor compreensão , um tipo de arte nobre que justifica sua existência como potencializador da capacidade da tensão sexual, sublimada ou realizada, tornar-se um tipo forte de aliado no poder criativo da poesia. Direcionando o olhar a outros estimuladores do "estado estético, por curiosidade e puro paradoxo, ele ocorre mesmo quando uma poesia não necessariamente torna o sexo naquele momento um objeto temático. Significa dizer, quanto à potencialização dos sentidos através do "êxtase criativo" ou "embriaguez estética", que esse estado de espírito pode ser evocado por um estímulo específico, e no entanto esse mesmo deflagrador não precisa ser necessariamente o objeto do poema, mas serve em linhas gerais como propiciador de uma eletricidade  orgânica, um estado de ânimo que pode levar à melhor perspectiva de criação. O outro lado dessa argumentação é que no caso da prosa, em geral (excetuada a prosa poética, da qual falaremos mais à frente), não há um uso desse processo como na poesia, uma referência para seu eixo criativo, porque a forma lógica e eminentemente racional de organizar-se enquanto dialética argumentativa no correr do texto torna desnecessário tal estado, uma vez que não remete ao critério comum do que se convencionou chamar apenas de "inspiração" ou esse mencionado "estado estético", mas sim uma praxe que usualmente é expressa em termos de trabalho corrido dentro dos pressupostos que estabelece, com intuito de chegar a um caminho por contradições e eliminações até chegar a um conceito que não envolva contradição em relação às suas premissas já colocadas. Nesse aspecto, defendemos que é mais a poesia que prevê e incorpora "o novo', uma vez que sua demarche pressupõe eventualmente a não eliminação da contradição, do ilógico ou mesmo do irracional. Daí ser por natureza um fazer e um expressar que se torna, em sua própria prática, maior e mais rico do que a prosa, em sua natureza.

 Baudelaire e boa parte dos simbolistas franceses usava haxixe e absintho como estimulantes às raias da visão mais ampla, e embora, de fato em alguns momentos as próprias experiências alucinógenas tenham sido parte dos seus poemas, em linhas gerais foram poetas que tratavam de temas absolutamente tão diversos, dentro de um conjunto de criações e perspectivas que se colocaram enquanto movimento dentre os mais criativos da poesia contemporânea mundial. Há poetas que,  vivendo em época de guerra, produziram verdadeiras obras-primas, eventualmente tocando no assunto guerra, mas não obrigatoriamente; há poemas de amor candentes escritos por virgens , tanto homens quanto mulheres, que nunca tiveram experiência sexual; há sensações relatadas de êxtase contemplativo de artistas em pleno contato mais amplo com a natureza, campo, árvores, a sensação de liberdade que isso tantas vezes propicia, e indefinidamente, uma vez que para a imaginação não há limites, mas o que importa é frisar que o "motivo", a fagulha que incita ao estado estético não necessariamente "tem que ser" o mesmo para todos, nem o objeto temático do poema se vincula automaticamente através disso ao estilo preponderante do poeta criador. Mas o que torna-se a peça chave deste ensaio é a afirmação de que há necessidade do poeta, muito mais do que o prosador, em conhecer mais a fundo "qual é" o objeto deflagrador do seu "estado estético", e desse modo, mesmo que não tenha um controle talvez absoluto jamais alcançado de uma situação que envolve a criação, ao menos saber em que contextos mais favoráveis ou desfavoráveis ela poderia ou não ocorrer, com o intuito de alimentar os que o tornam criativo.

É nesse sentido, único, exclusivo, complexo e muito amplo, que defendemos a idéia de que a poesia, invariavelmente, quando tomado o poeta criador desse  espírito por estados mais elevados de corpo tornado alma (sim, porque todo grande poeta é apenas corpo, um corpo reconhecido, novo e cheio de si, espiritualizado, e sabe que a duplicidade histórica, o grande erro, atende apenas a interesses mesquinhos e hierárquicos das corporações eclesiásticas, e nada mais, ao criar a perniciosa e infantil noção de que há um corpo que vive na lama e um espírito que viverá apenas de luz), justamente "esta" transformação a princípio de ordem estética, ela transfigura também o homem , sua essência, seus contextos e seu lugar no mundo, porque ao transformar-se a si mesmo pela necessidade de se expressar quando tomado dessa energia , ele "vê o novo" e transforma também seu olhar sobre a vida e dos que os cercam, causando uma corrente poderosa e incontida. Este o verdadeiro poder da poesia.

 Existe ainda aquele êxtase decorrente da hiperestimulação dos estados de consciência com substâncias artificiais e uma outra, mais sutil e que parece ao menos a nosso juízo ter sido uma das forças mais atuantes naquilo que consideramos alguns dos melhores poemas já absorvidos: a força da 'embriaguez estética" , aquela que é alcançada pela simples contemplação ou vivenciamento da beleza, em qualquer de seus graus ou amplitudes. Neste último caso, talvez o ápice do momento de criação desejado por todos os artistas, mas ainda assim algo de tão melindrosa compleição, algo raro e de difícil equacionamento, uma vez que tantas naturezas humanas são intrinsecamente complexas e divergem entre si enormemente em sua história, gostos, formação, compleições físicas e inumeráveis outras questões. REcorrendo ao pensamento mais básico, basta dizer que o que é belo ou estimulante para um, pode não ser para outro, e assim por diante.... É comum notar em diferentes poemas, que pela própria experiência de sua leitura consegue-se de forma mágica compartilhar em algum grau do "momento" vivido pelo poeta, e isso não tem regra: há poemas extáticos, embriagados,sobre todos os tipos de emoção, desde contemplar as formas sugestivas de uma maçã madura, observar a natureza numa tarde ensolarada de outono, passear na beira do mar num dia simples de inverno ou mesmo ouvir uma canção específica num dado momento da vida. Não há como prever "onde " e "quando' esses insights vão tomar por completo o ser do poeta, a ponto de transtorná´lo, tranformá-lo, colocá-lo, ele próprio, em sintonia do que sente com o que vive e do que poderia expressar sobre isso.

 O "verso", no poema, diferentemente da "frase' , "sentença"ou "oração", na prosa, busca a subjetivação de forma mais direta daquilo  que está "fora" de mim, ou do que já está em mim como apropriação do mundo pelos sentidos. A saber, o poeta quer acessar  da forma mais imediata possível aquilo que de forma sinestésica seu corpo é que está sentindo, qualquer que seja essa sensação. Não quer pensar nas consequências dela, nem saber "o porquê" necessário de seu acontecimento. Pensar assim, nas engenharias da sensação para descobri-las e traduzi-las de forma mais literal, embora tenha valor na prosa e em outras formas de articulação da linguagem, é a morte da poesia. Nesse sentido, concordamos abertamente com o poeta Rilke, quando se infere de várias abordagens feitas sobre o assunto, principalmente do texto "Cartas a um jovem poeta, que se alguém que se dedica à poesia quiser  fazer realmente algo que tenha valor, e não apenas propagar fragmentos do seu ego aos quatro ventos como forma de simplesmente "passar o tempo" ou "criar fãs', se deseja buscar essências e não meros processos superficiais de repetição de padrões supostamente "vencedores" do ponto de vista de seus objetivos práticos e muitas vezes monotemáticos, que vão desde convencer alguém sobre "os melindres do amor", ou reportar a baixa literatura típica (e aliás bem velha, por sinal) dos "cinquenta tons de cinza" que hoje polui excessivamente os meios de divulgação existentes ( e paradoxalmente, não porque se utiliza do erotismo, mas porque absolutamente nada sabe sobre a verdadeira arte erótica), ou ainda, em casos bastante reiterados, se o poeta não deseja sempre ser um arauto imotivado de um certo pessimismo do espírito que parece contagiar e alimentar há pelo menos duzentos anos a civilização ocidental, então a busca constante dessa sinestesia primordial que quer remontar ao "primeiro momento" do frescor propiciado pelo contato do "ser poeta" com o seu objeto, é talvez a única forma de se colocar o artista de frente com sua melhor forma de buscar verdadeira inspiração. 

Poetas não podem e não devem se tornar monotemáticos. Amor é um tema, mas não pode ser o único. A guerra é um tema, mas jamais será o mais importante. A natureza exterior também já deu a razão de ser de algumas correntes , mas cada uma delas, que em momentos distintos caracterizaram diferentes escolas de poesia pelo mundo e pela história, apesar de sua relativa importância, não pode dominar a razão de existir de um poeta. A vida é maior e mais rica, e implica viver e ser poeta em absorver pelos outros sentidos o tanto de cores, sons, cheiros e vibrações que há para serem decodificados, inventados, transformados em sentido humano, quer sejam individuais ou coletivos, isso sem contar o tanto imensurável de sensações, emoções e experiências do ponto de vista "interno', de absorção e interação do mundo-ao-redor, que precisam vir à tona. Há necessidade de transcender o mero e pequeno mundo que me rodeia se eu quiser falar do que importa e sair da monotonia temática. Se eu quero ser poeta, devo me recusar a querer ser sempre o mesmo e falar sempre das mesmas coisas com a mesma abordagem. Isso, não por uma razão meramente estética, porque se o poema enquanto construção está "bem resolvido" no que se propõe, motivos não haveria, sob um olhar comum, para que alguém quisesse mexer "em time que está ganhando". Mas o que vem à tona agora, e vale salientar, é a pegada de Rilke sobre o assunto, quando lembra qual a relevância, não estética mais, nem a propósito da poesia por si, mas sim o quanto a palavra é algo poderoso, tanto do ponto de vista das maquinações do mundo, como também em se pensando sua capacidade de mudar os próprios indivíduos que escrevem ou que lêem e assim vivenciam, de alguma forma ,aquilo que está à sua frente. É neste sentido, e não em outro, que a criação poética deve, afinal, ser mesmo um maior desafio a quem cria, e isso não tem absolutamente nada a ver com "resultado" no sentido de agradabilidade ou forma "perfeita" de um verso em sua avaliação coletiva. Significa, sim, em melhores palavras, que tantas vezes serão os melhore poemas aqueles justamente que não são os mais populares , e quem deve saber desses efeitos e suas consequências é apenas o próprio poeta, e ninguém mais.

Nesse compasso, o poeta precisa ser fiel apenas a uma coisa: a um toque, um cheiro, uma música, no conjunto dos motivos possíveis de forma mais direta, ou quem sabe uma visão, uma memória do passado distante, remissões mais indiretas e diáfanos, ou uma imaginária projeção natural ou estimulada dos sentidos internos, ou tudo isso junto que neste exato instante move uma outra parte do criador que não é exatamente aquela conduzida pelo processo que leva à prosa. O que importa, neste caso, para diferenciar a poesia e essa desejável sinestesia obtida por meios externos ou internos daquele processo intelectivo típico da prosa, embora os dois possam ser processos internos, é que no caso da prosa, haverá sempre essa mediação de natureza mais lógico-racionalista da linguagem, enquanto a poética utilizará de uma subjetividade "irracional", se podemos dizer assim, que  por ser ilógica e muito mais intuitiva em detrimento dos processos intelectivos, torna obtuso tantas vezes o sentido geral  e comum das palavras através da utilização das metáforas, sentido figurado, que faz com que o sentido geral e universal, o tal "sentido literal", "sentido exato" disso ou daquilo morra, para que ele renasça novamente ,tornado único, especial, pela forma específica,  o olhar sequestrado que o poeta agora lhe dá.

No caso do processo criativo do poema, se houver uma posterior elaboração , ela vem sempre para tentar reafirmar e tornar mais transparente e vívido justamente aquele primeiro momento, do contato com o objeto que inspirou os versos. É também sentir essa ansiedade da possível perda do élan que conduz ao verso. Numa idéia: poema é o ponto de partida, e não de chegada.

A prosa poética, um terceiro elemento, que como o nome já diz, reúne elementos dessas duas perspectivas e maneiras de sentir o mundo atráves das palavras, embora se utilize de narrativas ou sequenciamentos elucidativos e acabe reforçando dessa  forma estrutural os textos cursivos  e rompendo originalmente com o gênero poético, possui contudo cadência musical, ritmo e fluição do texto com corpo de poesia. Neste segundo momento, portanto ,de forma contraditória, ela também resgata os elementos da poesia. Por isso é um híbrido, com tudo que isso pode de significar de enriquecimento ou de perda, conforme se pretenda ver. 

Conheço poetas que odeiam prosa, e vice-versa, prosadores que acham a poesia algo inferior. Os primeiros alegam que a prosa "mata" o sentido misterioso e mais rico do mundo ao tentar "dizer o que é', em vez de sugerir e deixar para que as subjetividades sempre presentes possam contribuir para um enriquecimento da leitura. Além disso, criticam a prosa por sua tantas vezes cinzenta apresentação, uma vez que , em suas alegações, tirar a musicalidade e a cadência da forma de se pronunciar palavras, elas perderiam muito sua cor original. Obviamente ,prosadores radicais rebatem em igual tom, criticando justamente o excesso de subjetividade que haveria na poesia, em geral, especialmente naquelas que usam metáforas muito restritas ou herméticas, o que traz ao texto uma não-universalidade, uma dificuldade que não é meritória por travar para a quase absoluta raça humana de leitores que se dispõem a ter um livro de poemas em suas mãos de um pedacinho de significado ou entendimento sobre qualquer coisa que esteja lendo.

Dado nosso gosto ambivalente tanto por prosa quanto poesia, e também as características dessa discussão entre prosadores clássicos e poetas contumazes, e sabendo-se de antemão que isso é uma discussão eminentemente ociosa, em que não há veredito possível, nem mesmo uma possível conclusão sobre a superioridade ou inferioridade dos combatentes na luta entre subjetividade, estética e ritmo (poema) versus universalidade, narrativa e lógica (prosa), passemos logo a outro aspecto mais interessante e que, a nosso ver, supera esses elementos entrincheirados do ponto de vista da preferência estética. A absorção da forma dentro do conteúdo, ou seja: O Ensaio.

Fã absoluto do gênero desde que tive a sorte e o grande privilégio de ter em mãos os "Ensaios", de Montaigne, na minha singela opinião é justamente neste gênero onde, talvez com maior liberdade, o espírito humano conseguiu alçar seus vôos mais altos. Não é à toa que dentre os autores que mais admiro, boa parte pode ser considerada ensaísta, uma vez que sua linguagem e sobretudo a "forma" que adotaram para se expressar não seguiu necessariamente, de um lado, a extrema subjetividade da linguagem poética nem seguiram , de outro, a suposta objetividade da linguagem científica ou, por aproximação, filosófica, de articulação lógica e analítica.
Sim, porque ressalvado o poder criativo da poesia, que por sua magnitude não encontra paralelo em nenhuma outra forma de escrita em razão da sua origem musical, seus interditos, das elipses, metáforas, dos não-ditos, dos seus silêncios e dos espaços infinitos de subjetividade que lhe conferem esse status, e ressalvada ainda a articulação normativa e lógica que rege as formas de prosa tradicionais de nossa cultura ocidental deste Aristóteles (deixem Platão de lado, porque aí já é outra história),é na superação desses dois momentos, um de extrema subjetividade que caracteriza a "poiesis", e o outro, supostamente calcado um pouco mais na tal objetividade, mais cartesiano, com maior fundo lógico e racional , que domina o conhecimento científico propriamente dito e boa parte do conhecimento filosófico, é no Ensaio onde tais elementos finalmente não estão em guerra permanente, mas encontram uma espécie de meio-termo saudável e até mesmo desejável para que o pensamento não seja tolhido por qualquer aresta.
Embora com estilos variados e com inúmeros temas abordados tantos quantos são os diversos ensaistas surgidos desde que o gênero despontou assim, já nessa sua forma moderna, com o grande mestre Montaigne, pode-se dizer que as características especiais da prosa utilizada por cada um é que vai definir a essência do seu estilo. Sim, porque até mesmo pela proposta não-acadêmica da maior parte do que se denomina por Ensaio, tal "espaço do exercício do pensamento" jamais quer ser diminuído em suas possibilidades simplesmente por uma questão de rótulo. No ensaio, diferentemente das formas de poesia ou prosa, não é o gênero que determina a forma, é o próprio Ensaio que já é a forma a que se propõe, na medida em que cursivamente vai estabelecendo ligações entre os objetos costurados por quem se dedica a explanar sobre tal ou qual ponto de vista, sem delimitar com um rigor excessivo, quase positivista, os termos do que está sendo articulado em uma idéia que se expõe.
Daí o ensaio,da forma como o vejo aqui, por não ser bem poema nem propriamente "Literatura' de um lado, e por outro por não ser bem prosa científica dissertativa ou "ciência" de outro lado , seria por isso mesmo, menor ou menos digno, ou quem sabe de leitura menos atraente do que seus pares? Não, porque é justamente o contrário que ocorre. É no Ensaio que o autor pode lidar com os elementos que lidam com a estética do texto e lhe conferem beleza, à moda da poiesis típica do pensamento literário(ainda que ele use regularmente prosa e não versos para explanação) e também pode usar todos os referenciais históricos ou científicos até os limites da racionalidade sem se aprisionar aos critérios aprisionantes das metodologias centíficas próprias , e sem que isso implique em avaliação negativa dos seus propósitos.
O filósofo Theodor Adorno qualifica muito bem essa abordagem rica sobre a possibilidade , quando no texto "O Ensaio Como Forma"...



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(continua.... desenvolvimento e diferenças  da experiência da prosa poética e diferenças e semelhanças com o gênero ensaio, enquanto estruturas de criação)