"O que se cala não nos cura" (Poemas - Casé Lontra Marques)


"O que se cala não nos cura"
(Ed. Aves de água, 2017 - 
(Livro contemplado Edital 2016 Funcultura, categoria “Poemas”)

" O som das coisas se descolando"
(Ed. Aves de água, 2017)

Como começar uma resenha que, no fundo, não e´ resenha coisa nenhuma, talvez seja uma “pseudo resenha” ou quem sabe  muito mais uma celebração, uma homenagem e um agradecimento? Pois inicio este textão, novamente sem me desculpar ou pedir perdão a ninguém, primeiro porque amo textão meu e textão dos outros. Com os temas variando desde criação de cachorros e manutenção de guitarra a política, turismo e gastronomia, sempre leio todos, e confesso que, independente de concordar ou não com tudo que leio, eu talvez só continue pelejando hoje em dia nessa estranha rede social de facebook (divina? maldita?) justamente por causa dos textões.

Bora lá. A primeira imagem que me veio à cabeça depois da experiência de imersão no mais recente livro de poemas de Casé Lontra Marques, e mais uma vez  um belo título “O que se cala não nos cura” (certamente os deuses nunca abandonaram o autor na escolha desses títulos fabulosos), foi um depoimento de G. Rosa, comentando sobre um então recente lançamento de Clarice Lispector, onde ele diz que não apenas lia Clarice por conta do texto em si, pela sua evidente qualidade literária, mas muito mais para aprender sobre a vida.  O novo livro de Casé, e eu diria mais, como tenho tido a sorte e a felicidade de acompanhar seu trabalho nos últimos três anos, o conjunto da obra desse fantástico autor me leva sempre ao eterno retorno da experiência de JGR sobre os clarões de Clarice.

Que honra, que sorte e que sentimento de mundo nos toca ao sabermos que o presente pode ser sim, tão rico, nós que temos a nostalgia do que já foi, nós que habitamos a atualidade e que  não tivemos a oportunidade de conviver com a época do modernismo, ou sermos contemporâneos do Bruxo Carioca,  não nascemos em São Petersburgo ou Moscou para ver brotar um Tchekhov ou Dostoievski, não caminhamos com Rimbaud, Baudelaire nem os simbolistas na França nem presenciamos, mais do que um trabalho individual, algum movimento coletivo desses que só estudamos nos livros de história da arte ou da literatura, movimentos que,  a partir de um momento zero no tempo, começaram a erigir ou destruir, ou quem sabe se erigir “ao destruir" um antigo sistema.  E é pela qualidade de trabalhos como este, de Casé, já em novo lançamento duplo, por sinal, reiterando a sua veia prolífica, porque conjuntamente com este livro “O que se cala não nos cura”, contemplado pelo Edital Funcultura de 2016 na categoria “Poemas”, veio também , ambos pela editora “Aves de Água”,  “O Som das coisas se descolando”, que com sorte desfrutamos de duas propostas diferentes e ambas extremamente ricas. Enquanto o primeiro é avassalador e apoteótico em suas sístoles e diástoles semelhando a pulsação de marés ou de um corpo vivo e sôfrego no aprendizado contínuo de si, corpo que deseja  cada vez mais vida, o segundo, mais introspectivo e filosófico, é também mais contido em palavras, uma contenção que talvez pudesse sugerir um outro corpo, ou quem sabe o mesmo num momento mais calmo, em repouso (numa rede? Embaixo de uma árvore no campo de um dia bom? Atrás da janela de um ônibus ou trem, enquanto a paisagem se descortina suave? Ou um corpo que embarca em memórias sutis de sua própria presença imaginária no mundo?) Sobretudo, um corpo que está à vontade com o movimento incessante do mundo lá fora enquanto cultiva  algo que vai ali por dentro, naquele fenômeno a que alguns atribuíram o nome de “transcendência”, um espaço inominado que outros chamaram espírito, ora denominaram mente, esse perdido de nós que transita entre o corporal e alguma outra coisa que simplesmente se descola, como na sugestão encampada pelo segundo título , e a partir daí vai viajar por planetas desconhecidos, embalados por esses versos.

A princípio, não gosto de comparar poetas, se a pretensão não é apenas didática.  Poemas são cavalos selvagens, mundos calientes ou glaciais em gestação, e tantas vezes incomunicáveis, incomparáveis,. Cada poeta é o trágico e o lúdico no momento de sua própria poesia, e é mesmo raro ver um escritor que seja o mesmo a cada livro. Talvez isso ocorra com mais frequência no campo da prosa, mas não no da poesia. Melhor, até, porque assim pode-se incorporar abertamente quantas máscaras ou representações forem necessárias para que a ação se forme na amplitude do espírito criador e no poema, sendo a brincadeira séria entre máscara e essência, representação e real, o mote do jogo. Não é outro o poder da metáfora. O estilo de Casé, sua marca registrada, se existe, não é fácil de identificar. E isso nem é necessário para que os versos tomem as veias. Há um autor para cada obra, ou quem sabe, um autor para cada página, dependendo do contexto. Em alguns momentos, um autor com falas, em outros um pré-autor que convida pra viajar e consolida-se apenas no outro, que o lê. As pontes móveis entre versos e estrofes e o espírito de arquiteto perfeccionista  que junta cacos, pedaços de paus e telhas para (re) compor novos ambientes, porque eternamente insatisfeito com sua própria engenharia,  criados em “A densidade do céu sobre a demolição”, deram lugar ao imaginário de Bosch para Crianças do caleidoscópico “Pandareco”, essa presença de uma criatura multiforme e multicor que está em tudo, como possibilidade, e não está em nada, se não houver a fagulha que inicia. 

“O que se cala...”,  na minha leitura  não encontra parâmetros nas outras obras recentes do autor, nem mesmo referências mais imediatas e locais na poesia da nossa terra. Tomado isoladamente pela  diferenciação no rigor e amplitude de pesquisa associados à experiência existencial da linguagem no perfil que se propõe, o texto é síncope que nos enche de um tipo diferente de esperança: a do complexo que é possível, às  vezes extremamente necessário, e nem de longe pedante, porque ao contrário de recentes modismos, simplificar pela simples “vontade de se mostrar simples”, como um modismo ou superficialmente por um juízo externo que não o estritamente vinculado à criação, pode ser, no fim, a maior vaidade e a verdadeira empulhação.

Acreditando no presente como realidade capaz de ser transformada, e no papel da linguagem como principal vetor, não mais nos acomete  agora aquela coisa bela mas ingênua da busca nostálgica do “espírito de época” residente apenas num possível passado, como o personagem do filme “Meia noite em Paris” do Woody Allen, na vã tentativa de encontrar uma espécie de positividade alienante como se houvesse ainda hoje, depois da morte das utopias, algum grande movimento concreto e plenamente identificável ao nosso redor, e a realidade não fosse assim, feita na verdade de pequenos gestos e uma cotidianidade de obviedades, desbrilhos e  lutas, que amanhã ou depois encherão o olhar dos historiadores em retrospectiva. Impõe-se acreditar no presente, e a coisa torna-se mais interessante exatamente neste momento que vivenciamos , como em poucos  antes da nossa história, uma das principais tragédias na ordem pública de que se tem notícia . Nunca se perderam tantos direitos em tantas frentes , nunca um Estado foi tão canalha ao trair explicitamente os fundamentos que o legitimam numa República, nunca foram sabotadas tantas conquistas, seja do ponto de vista individual ou coletivo. Nunca o trabalhador, o estudante, o servidor público em todas as instâncias e regimes, nunca o pequeno e o microempresário, os cientistas, os professores, nunca o idoso foi tão intensamente humilhado como tem sido nos últimos três ou quatro anos. Nunca nos perdemos tanto de nós mesmos, no sentido de deixar de enxergar um caminho coletivo possível para um avanço do que  a idéia plena de nação, de povo independente e altivo, capaz de interagir e sustentar ou enfim ser totalmente responsável e sintonizado com um governo que o represente de fato, um governo que possa elevá-lo e ampliá-lo em seus mais nobres anseios para um futuro qualquer de maior elevação. Vivemos inteiramente uma época de caos. E como olhar por cima disso? Como navegar no centro disso, e passar por isso sem dor? Sem perdas? Luta! Sim, necessária e urgente, mas do ponto de vista individual, como não deixar de acreditar? Todo artista é um apostador. Sua obra é testemunho e portador de um tipo de fé, de certa forma, inabalável.

E de repente, é como se ouvíssemos ecos de grandes pensadores ou líderes naturais que vieram antes de nós, em situações de mundo tão ou mais adversas do que vivemos, mandando de longe seus avisos. Há matizes para todos os gostos, mas eu pessoalmente nunca me esqueço de uma passagem de  Nietzsche com seu olhar sagaz, duro e movido por uma coragem que somente ilumina os profetas que nada temem, nos dissesse  agora, pensando especialmente no ambiente sobre a arte para um mundo em ruínas: olhe, lembre-se daquela lição sobre a história, a decadência e o papel da arte. As relações entre as coisas não são tão simples e óbvias, e tantas vezes os contrários ou as faltas é que impulsionam. Na Suíça, trezentos anos de ordem, previsibilidade e harmonia geraram o relógio Cuco e alguns métodos de fazer iogurte. Na Itália dos Bórgias, três décadas de terror,  heresias, implosão da moral e dos costumes, guerras intermináveis e um mundo desabando sob os pés, gerou a Renascença. Resguardadas as proporções de tragédias ou vidas humanas perdidas em guerras nefastas, talvez seja análogo o momento, quando vemos “apesar de” tudo que acontece de negatividade, como a diminuição ou total extinção das verbas destinadas à cultura em todas as suas variantes, a iminente recessão ameaçando todo o país por conta de políticas clientelistas de encomenda para banqueiros e grandes empresários, e mais uma enormidade de coisas contrárias, “apesar disso”, a arte não para. Não pode nem deve parar. A música e o teatro, captando essa vibração, andam mais pujantes do que nunca. Esforço e mérito pessoal dos envolvidos, à míngua de maiores incentivos. O cinema, algo estatisticamente maior e mais caro do que a média das atividades artísticas, concentra seus esforços e produz ininterruptamente, mesmo a tantas penas. E nas letras, não pode ser diferente, e olhando por cima da poeira, não há como não dizer que testemunhamos um momento rico, de certa forma.

O mundo cai lá fora, mas  é em textos  corajosos como este de Casé, que se levanta  para dar seu recado, juntamente com mais meia  dúzia de poetas e outros tantos bons prosadores, só para lembrar aqui em minha memória de nossa terra, escritores de todos os gêneros, que produzem coisas belíssimas e fortes neste momento, todos absolutamente envolvidos na pele de algum tipo de guerreiro de uma nova ordem que ainda não se nomeou. Mas vai.  Guerreiros em diversas frentes, lutando contra todas as adversidades, tanto financeiras quanto no terreno da moral de ocasião, do mero preconceito, da inculta dificuldade estrutural de se produzir literatura e arte para um país que pouco lê, guerreiros com coragem mais do que suficiente para bradar suas palavras essenciais para o restante dos viventes, seja essa palavra uma vivência de amor, um convite à luta, à compaixão, à crítica, ao pertencimento, a um novo olhar sobre o mesmo que revela o conteúdo da diferença que liberta. Falar, aqui, é, no sentido inspirado pelo texto pujante no resgate de uma dada corporeidade em plenitude,  forte estratégia de parar o tempo, atrasar , sabotar ou estagnar por instantes esse tempo externo alienante, maquinal, do relógio , para que os processos corporais, físicos, tanto orgânicos quanto estéticos (porque ser corpo é ter em si a possibilidade de aesthesis, como pensavam os gregos, um sentimento que se enuncia na forma de linguagem) possam aperceber-se de si, e através dessa consciência, subverter a ordem que lhe tentam impor. Um corpo que deixa de repetir, martelar, programar, obedecer, para perceber o suor, o próprio umbigo, o mastigar, o deglutir, o copular, retribuir o olhar que nos olha, estar dentro desse corpo vivo é exercer um poder sem precedentes sobre os grilhões que nos tentam impor o tempo inteiro por vias tortas.

Sobre a obra, em particular,  e sem cometer a temeridade de tentar conceituar ou definir, sinto que o  fluxo contínuo e orgânico de “O que se cala não nos cura” (um livro de um único poema, que vai se desenvolvendo conforme a respiração) tem, diferentemente de outros trabalhos do autor, uma continuidade e interconexão textual entre fôlegos que praticamente impedem pensá-lo, o texto, apenas como parte, isoladamente. Tentei, inutilmente, para compor  a epígrafe dessa pseudo resenha, apanhar aqui ou ali uma bela tirada, mas foi só observar, uma a uma , como são belas e como entre si  se compõem como um esqueleto vivo, e como causa frustração perceber que tirar este osso ou aquele poderiam talvez desmontar o edifício corporal inteiro, ou ao menos mascarar sua beleza. Depois das três dimensões em que se retratou  “Pandareco”, o livro ilustrado “para crianças” mais importante desde “Alice”, de Lewis Carroll, e depois da prosa poética, aliciadora em sua musicalidade,  de “A densidade do céu sobre a demolição”, cujos momentos mais inspirados me levam a imaginar alguém como Rimbaud fazendo algo no terreno do Hip Hop,  “O que se cala não nos cura”, é um título feliz também por ser na verdade um grande alerta existencial, por ser uma aposta na linguagem como saída para o que é humano e por  remeter explicitamente à complexidade e amplitude dos temas  tão caros à psicanálise, este saber extremamente valioso, hoje  mal compreendido e vilipendiado por equivocadas apropriações. Enquanto os reforços contemporâneos da visão positivista de mundo ressurgem aos poucos, recarregados com a munição pesada da “nova psiquiatria” e outras ameaças ao corte da fala e à liberdade de pensar, esse resgate da via psicanalítica, ainda tão viva, como uma nova aposta na fala, contra tudo e contra todos, essa espécie de filosofia antiplatônica do corpo,  oportuna e extremamente necessária por repudiar o senso do excessivamente lógico em favor da estética dos sentimentos e da história pessoal contra as estatísticas.

A fala, sim, a fala. O som, o movimento, a palavra. A cura. As neurociências, em geral, agora paramentadas cada vez mais por conceitos que procuram mascarar a velha e conhecida  dominação do corpo, dominação do pensamento, o controle dos discursos, exibindo novas drogas indutoras da obediência a  iniciar-se cada vez mais cedo no controle das crianças, cerceando-lhes as infinitas e naturais formas de expressividade e contando ainda com cada vez mais complexos exames médicos “determinantes” e a pirotecnia para tentar localizar ou forjar “o mal” na saúde desse homem , um ser estático e determinado , abstrato e a-histórico  que em uma  visão tacanha e dogmática será sempre um ser composto de “dados” com características previsíveis, manipuláveis e tristemente controláveis. Um tempo que propõe cada vez mais o esquecimento e a substituição gradativa ou súbita de todo saber que “demore em obter resultados”, que novamente se proponha como arauto da verdade ao dizer que em chapas de eletroencefalogramas, tomografias em 3-D, ou em laudos médicos que afirmam com todas as letras que ser criança ou pensar a diferença são crimes inafiançáveis.  Voltar-se novamente à (re) conquista da corporeidade, nesse sentido, é uma vitória sobre si mesmo. Um espaço a descoberto que se abre para o espírito corajoso. Não se pode calar, sob pena de se inviabilizar qualquer processo de “cura”. Que falem as crianças, que falemos todos nós.


“O que nos cala não nos cura” é um retorno benéfico ao “Corpo sem òrgãos”, resgatando a peste de Artaud contra o sistema, resgatando Deleuze contra a alma decadente de um capitalismo terceiro mundo em que ninguém mais acredita,um corpo flexível e multiforme, indeterminado e indisciplinado para as velhas ações, reeditado pela via nobre do poema que desinstrumentaliza as formas para reassimilar novas vocações: um corpo que não quer mais se calar porque encontrou uma voz, e essa voz não e´mais adestramento, é sobretudo um corpo não mais exaurido pela maquinação da rotina, agora é um corpo perigoso, revolucionário no sentido poderoso que essa palavra tão desgastada e esquecida pode recuperar. Nesse momento onde as estruturas  ameaçam ruir, que saibamos construir nossa Renascença poética, que a poesia que não se cala possa ser um caminho de cura, não no sentido comum do termo, algo estanque, um medicamento para um mal, mas como um processo revelador de uma verdade, o expor em praça pública “fantasmas” muito bem escondidos, ato corajoso que gera caos e feridas para logo estabelecer cicatrizes , e em seguida,  num segundo momento, continuará ferindo para sucessivamente curar-se e relançar-se no mundo, sem nunca ter um fim. Porque ser gente é nunca ter acabado. Porque a fala nunca pode se calar, sob pena de não haver humanidade. Que as palavras que não se calam sejam novamente uma referência à fé que se tem ou se deve ter na linguagem, como início, meio e fim de qualquer processo que media a condição humana. Que possa vingar essa  fé,, esse acreditar sem dogmas, agnóstico e sublime porque movido por seu próprio olhar gerador de vida, uma fé que somente um criador saberia identificar e resgatar nas ruínas de um tempo onde pouco se vê de alento. Obrigado, poeta, por diagnosticar nosso tempo!  Uma vez mais.