Cabelos do vento

Era algo de não se falar sobre
mas sim de sentir a presença
contemplar, ir ter com os olhos
acolher o silêncio eloquente
no fundo do peito, deixar
que a sensação boa
mergulhasse
e se multiplicasse
em nervos
em pele
em uma espécie
estranha de felicidade

Que poderia dizer eu
do alto de minha
não-sabedoria
do alto ainda tão raso
de tudo que me falta
abandonando todos os esteios
das minhas vãs filosofias
da minha parca ciência
ou da vontade de mudar o mundo
um mundo que sequer
sabe da minha existência
que poder me
reconduziria
ao topo do nada
porque tão pequena
e carente de sentido
é a perspectiva da vida humana

Um pôr-do-sol, um simples ocaso
seguindo seu curso como qualquer dia
e pouco antes da luz sumir
detrás dos morros
naqueles minutos mágicos
que  antecedem a tomada do crepúsculo
onde a luz é diferente de toda a luz do dia
e o efeito de seu toque na superfície das coisas
faz com que seu verdadeiro brilho
apareça em sua plenitude
é onde o verde se torna mais verde
revelando sua essência
o azul sob o fundo do céu
é a definição do próprio azul
e o cinza negro das pedras
reveste-se de um metálico oleoso

As nuvens ralas muito altas
absorvem todo o excesso de prata
porque alimentadas pelo vermelho
que se apronta no horizonte,
sobrepujando o laranja e o amarelo
que reinavam até esse instante
e na ponta do fim dos olhos
sobe longe um sopro de vento
como corredeira  morro acima
além das fronteiras do muro do quintal
o sopro que passou por mim há pouco
e partiu mais além
e acaricia como um braço de ar
o topo de todo o mato alto
a cobrir a serra
aquele mato verde, no contato do vento
verde-claro, verde-escuro, musgo no fundo
comportando-se como ondas
no mar revolto
com subidas e descidas
o braço de ar acaricia
o topo da vegetação
seguidamente, lentamente
esse grande espírito anímico
passando suavemente
as mãos pelos próprios cabelos
que descem longos pelas encostas
durante trinta minutos
que pareciam uma vida

Deus, se há
está longe da forma e substância humanas
é qualquer coisa longe das religiões
e está muito além do que se convencionou
como sagrado
porque encontra-se ao alcance das mãos
não é a transcendência
mas a imanência
o segredo mais bem guardado
Deus é o próprio mundo
porque em sua manifestação incontida
poética, trágica, lúdica
ele retoma a posse da matéria
todo o tempo por uma força estética
é um deus brincalhão e artista
que tropeça ao lidar com a justiça
lixa-se para qualquer tipo de glória
faz pouco caso da idéia de harmonia
e não se concentra num ponto, em particular
para transformar a natureza das coisas
se pode, ele sendo Deus, dedicar-se
o tempo inteiro a mudar o olhar
com que as percebemos