MUDANÇA DE ESTAÇÃO

Discípulo do sol
Amante da chuva
Úmido, húmus, umidade
Hora e meia contemplando a chuva
da minha janela
Meu lugar perdido na cidade
(hoje de manhã tá frio pra eu me molhar lá fora)
Sobre o topo de igrejas
a neblina de picos carregados passando

Contemplo
os suspiros do mar subindo a serra
e prometendo mais temporal
até o final da tarde
As plantas já bem verdes da estação
a terra encharcada
recusando-se a absorver a água exagerada
e a chuva ainda assim derramando-se
e armazenando-se em pocinhas renitentes

Toda essa água é soberba
dissolvendo sentimentos
O ritmo das coisas se quebra
Seres de água surgem do nada
suplicando de volta aquilo que lhes pertence
Caracóis e lesmas ganham coragem
animando os sapos que saem no seu encalço
Formigas egoístas se retraem
Garimparam antes seus tesouros
e agora reúnem-se para as festas
a portas fechadas
O húmus se revolve, se encharca,
Transmuta-se
O húmus é o que seremos, em breve
quando voltarmos ao pó
e a chuva nos fizer líquidos
novamente
realimentando o belo ciclo

Todo sólido se derrete, quer retornar à origem
A chuva traz o silêncio por dentro das coisas
Os cachorros tranquilizam-se no seu canto
Os passarinhos (a maioria) se esconde
As pessoas
do cimo dos escritórios envidraçados
das portas das lojas
de dentro das janelas embaçadas dos ônibus
Todos param um segundo
no início da estação
e olham pra cima, olham pra rua
Vêem as partículas
percebem o céu se fragmentando
e silenciam
Estancam de quando em vez
dos seus afazeres
só pra absorver essa quietude abstrata
que se estabelece quando a chuva reina
Até as moscas e sua irritância dão uma sumida por um tempo
Tudo fica úmido por dentro, o couro mofa no armário
as roupas colam no corpo, o vento se molha
Um respeito, um ritual diante do ciclo da vida
Que só se torna perfeito depois das águas

O tempo mesmo, esse peso de pedra
dá uma aliviada
e contrariando seus princípios
sugere continuidade, permanência
contra todo  choro e ranger de dentes
quando a chuva chora
nosso choro se cala assim como a guerra
A chuva é a permissividade da Terra
Fértil, bela e promissora que se rende
À poesia de ser tocada pelo céu

É da vida,  permanecer
Como as chuvas que inauguram a estação
Ora exageradas, ora com sua latência
No jogo de uma rotina que pressupõe intermitência
A vida é essa coisa de vai, tenta, força, rompe, atravanca
Daí para, restabelece, olha para os lados
E quer saber se ainda existe a beleza
Depois de tudo
Apesar de tudo
E ela existe
Em toda parte
Às vezes vem forte
E sufoca, e parece que vai matar o coração que a respira
Às vezes é flor, é árvore, às vezes é bicho
É mulher, é criança, azar ou fortuna
A depender do ciclo
E encanta mesmo quando morde
E antes de desvelar-se de vez no abismo
Quando já estava na beirada
Súbito tudo para, e não há mais nenhum som
Apenas pra permitir aos instintos perceberem:
Todo romper, todo quebrar, todo descontinuar
é apenas o seu teatro subindo os panos
para receber os aplausos
para que o show nunca cesse
E a grande energia  que mantém todas as coisas
vivas e pulsando no mundo
possa existir
indefinida
e  incondicionalmente