Conhecendo melhor o inimigo


A luta interminável contra as garras de um inimigo sorrateiro: a depressão, e alguns preciosos aliados na batalha cotidiana, que vão surgindo pelo caminho. A idéia não é diminuir artificialmente o tamanho do monstro, mas transformá-lo em linguagem ,poesia, movimento e corpo, chamá-lo pelo nome e a partir daí, identificando sua natureza, utilizá-lo, transformá-lo em força criadora, vencendo-o em seu próprio território. Há várias frentes possíveis, mas a arte é espaço privilegiado nesse campo, porque permite criar para além de si, superando seja pela metáfora, pela sublimação, a personificação de vivências de alteridade do mundo, vivenciais ou imaginárias, mas sobretudo extremamente ricas e intersubjetivas, possam ser experimentadas de foma mais ampla que as tacanhas limitações físicas do mundo "real".

O ponto de partida é que o problema não ataca qualquer um, como diriam Kierkegaard, Heidegger e os existencialistas. Ou melhor, até podem atacar qualquer um, uma vez que as causas também não são únicas e nem se alastram num único e mesmo contexto. Mas a depressão como reação existencial e consciente a um mundo que não é integralmente aceito e legitimado como algo perfeito e acabado, e portanto precisa ser mudado, é algo específico, e mais própria de quem já ultrapassou o status mais primitivo da existência. 

A depressão como consciência exagerada de si ou do mundo só atinge a partir de um determinado grau de sensibilidade ou percepção, a quem tem pele para senti-la, seja por razão de formação ou predisposição natural, seja pelas razões históricas do próprio mundo, tantas vezes incontroláveis, que nos colocam de forma bruta e direta na vida.  Kierkegaard fala de Melancolia mas Heidegger chega a afirmar que só utrapassa o estado mecânico de sentimento do mundo e constitui projeto aquele que passou por tal status. Não há uma "escola" nem gradação possível pra isso. Não é nem mesmo proponencial. Não se pode ensinar isso. É um salto. Ou se está em condição de perceber e sentir a violência do mundo pela existência, ou não. O que fazer depois disso, já é uma outra história, e é o que vai definir o que se é, afinal. 

Quem não se espanta com o mundo, quem não traz em si esse "pathos", não muda nada ao seu redor, porque sente que já está tudo bem, e que o mundo sempre será assim mesmo. Quem não sente em si essa poderosa energia, que tanto serve pra sentir a perfeição do sabor doce, rico resinoso da maçã, serve para sentir o calor do sol aos poucos subindo pelos pés logo de manhã, serve para chorar ao contemplar um certo pôr-do-sol, serve também para fazer sentir dor maior do que qualquer outro poderia sentir, e tantas vezes essa capacidade desmedida de perceber a vida é causa em si do sofrimento. 

A questão a ser enfrentada, portanto, passa a ser bem pragmática: Como não se deixar destruir por um sentimento de mundo que potencialmente poderia fazer com que o transformássemos, o próprio mundo, ao mudarmos a nós mesmos em primeiro lugar? isso implica em deixar de se infantilizar diante da vida, e aprender a se conhecer melhor.
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Alguns aliados que, de uma forma ou outra, tocaram no assunto, cada um por seu viés próprio


Talvez um dos livros mais geniais que já foram escritos sobre a vida, em geral, além de ser um brilhante ensaio de filosofia, poesia, existência. Camus é antes de tudo um grande poeta, e mais coerente que Sartre, seu parceiro existencialista, na maior parte do tempo. Nesse livro, a analogia da vida com o famoso mito grego, do cara que rolava o tempo todo uma pedra morro acima, apenas para vê-la descarrilhar morro abaixo logo em seguida e ele ter que iniciar tudo novamente, é poderosa metáfora (esses gregos!) do cotidiano de bilhões de mortais que habitam o planeta. 

Simplificando, para Camus o problema da coisa toda é que a vida não tem "um sentido", como nos acostumamos a imaginar desde pequenos e em torno do qual costumamos orientar nossas vidas, traduzindo esse esforço na conquista de um plano, uma meta, seja pessoal, seja profissional ou algo parecido. Aquelas coisas do tipo : "O que você quer ser?" "O que você quer fazer quando crescer"?, perguntas do tipo enquadramento das pretensões dentro dos moldes de uma sociedade historicamente burguesa, onde a profissão é que vai na frente, abrindo ou fechando as portas para o que se pretende ser, e como se o trabalho pudesse de fato ser o único ou mais forte valorador da vida.

Daí que nesse processo o grande choque ocorre. Como esse "sentido da vida" é inventado, artificial, histórico e nós nos esquecemos disso pelo caminho, passamos a valorizá-lo como algo intocado e extremamente único ,precioso, como se a vida só se justificasse em todo plano se conseguíssemos por qualquer via alcancá-lo. Seja com a presença divina andando junto, ou mesmo sem ela, para os que seguem outra via, a o fato é que  todos se imaginam em situações ideais, no futuro. Seja no trabalho, no amor, em tudo que nos propomos realizar, essa situação idealizada é o tal "sentido", que segundo Camus, torna-se a causa da desgraça quando não alcançado. 

Como para a maioria das pessoas existe uma grande chance disso não ocorrer, a realização do sentido pelo alcance das metas, seja pela tragédia que eventualmente se abate sobre nós, seja por falta de recursos materiais, seja pela roda da fortuna que pode deixar de nos premiar com o que achamos "justo", enfim, caímos na afasia e frustração constante, no dizer de Camus sujeitando-nos à depressão e eventualmente ao suicídio. Daí a importância que esse filósofo dá ao tema, para ele o maior da filosofia. Não se trata de apologia mas crítica, porque no seu entendimento, é pura banalidade botar fim à vida pela falta de sentido, uma vez que essa zorra toda já não tem mesmo sentido, desde o nascimento e tudo o mais é invenção. 

Decorre daí o "absurdo" do mundo, que pode ser compreendido por duas formas, no mínimo: a  primeira é perceber e aceitar a transitoriedade e gratuidade da absoluta maioria dos eventos que nos perpassam, e na verdade estão fora do nosso controle. E depois, porque, não é por ter descoberto  que tudo é absurdo pela "falta de sentido", que deverão ser perdidas as outras opções de vida. Existe a arte, por exemplo, que cria sentido, e existe a resistência, a "revolta", que faz com que o homem , consciente das suas limitações e de algumas mazelas evitáveis do mundo (fome, mazelas sociais etc), possa agir para doar algum sentido às suas atitudes de vida, não necessariamente tendo que se comportar como a maioria, apenas bonecos comandados por um "sistema" alienante. Nessa atitude da revolta, há alguma semelhança com o "engajamento" defendido por Sartre, e com a "autenticidade" falada por Heidegger, como forma de se colocar no mundo, em atividade.






Lançado há quase 20 anos, esse livro de Andrew Solomon, baseando-se em suas próprias experiências reais para tentar recriar um ambiente humano interpretativo que possa lançar luz sobre as vivências continua sendo um clássico. Não é preciso ser nenhum especialista no assunto para ir direto ao ponto. Usando sua própria história e alguns relatos bem crus sobre a vida numa cidade como Nova York, o grande lance é a forma não-estereotipada e livre de jargões com que o autor trabalha. De um ponto de vista mais literário, colocando-se como personagem, evoca os grandes temas, tornando a leitura uma verdadeira viagem de autoconhecimento.





A poesia na narrativa imaginária de Yalom, ao descrever a hipotética vida de Nietzsche, e um acolhimento psicológico ao filósofo durante uma fase extremamente delicada de sua vida. Beleza de narrativa leve e ao mesmo tempo contundente, da apropriação das idéias e conceitos mais importantes de um grande pensador, feita com talento e magia.




Transformando os conceitos do amargo Schopenhauer em uma fonte de vida, esse livro que fala de terapia em grupo e vida social na América dos anos 2000, é uma grande receita para temperamentos amargos e melancólicos. Ao pegar justamente o filósofo considerado o mais "pesado" e amargurado deles, para trazê-lo à tona em suas receitas de vida, propõe o questionamento, por via literária baseando-se no seu amplo conhecimento de terapia de grupos, para introduzir o leitor na vasta experiência humana e comum de pessoas lidando com dificuldades no seu cotidiano, e a forma que encontram para resolver (ou não) os contextos em que estão inseridos, seja trabalho, amor, amizade, dependência química, projetos, família etc





Clássico dos curso de Psicologia, esse livro de aparência tão simples na verdade esconde uma grande síntese para introdução à linguagem corporal, mecanismo tão utilizado por algumas linhas da psicologia para a via interpretativa. Não pretendendo ser um "manual de ação", mas sim uma introdução, é um livro extremamente prático e rico para o conhecimento de si, ao servir como ponte para esse novo campo de saber : o corpo e seus infinitos. Aproximação ao tema da 'Bioenergetica' e Wilhelm Reich.


Uma das mais importantes obras deste que, a nosso ver, é o filósofo mais importante da virada do século XX, Michel Foucault. Historiador-filósofo, Foucault reúne as qualidades raras e díspares de ser, simultaneamente, esse rato-arquivista-de-biblioteca que acumulou tanto saber erudito em pesquisas extremamente originais, conjuntamente com a imensa facilidade de estar no mundo, com fala fácil, entrosamento com amplos setores da vida política, acadêmica e cultural. E é nesse "História da Sexualidade", em três volumes, a saber "I-A vontade de saber", "II - O uso dos prazeres" e "III - o cuidado de si", faz uma reunião de registros históricos como anotações de época, crônicas, narrativas literárias arrazoados científicos e inserções filosóficas, no decorrer de 2000 anos de sexualidade no ocidente. Obra monumental, que muito mais do que encher a cabeça de um balaio de letras inúteis, traça linhas viscerais como luzes para auxiliar a nossa própria compreensão do sexo como vida, como história, e principalmente como nossa relação com o corpo que tantas vezes é pensada mesmo antes de nascermos. Brilhante, para dizer o mínimo. O corpo como instrumento de resiliência, o prazer como poderosa arma contra o império das normas e a linguagem corporal como arte.





O relato cinza, duro, cruel e genial de um personagem introspectivo e extremamente mau-humorado, remoendo suas percepções paradoxais do mundo dentro de um porão da antiga Rússia, enquanto lá fora faz um frio insuportável de vinte graus negativos. Livro mais bonito e importante de Dostoiévski, embora seja um quase-romance de poucas páginas, com elementos de conto na narrativa. O poder criativo transfigurante da mente às prévias da "loucura". Paradoxos em profusão, sobre questionamentos irrestritos da vida, da religião, da moral, da ciência, do trabalho e acerca dos pilares da vida em sociedade. Não fica pedra sobre pedra depois dessas argumentações tecidas com tanto espírito, tanta veia " com o próprio sangue", como diria Nietszche, um leitor entusiasmado. A vitória parcial, persistente, corajosa e voraz de um tipo de vida que se esconde lá no fundo, nos subterfúgios de uma idéia de saúde, de corpo, de vida, contra as naturezas superficiais. O osso contra a pele: o sangue contra o suor. O que vem de dentro comandando o baile, enquanto alternam-se no palco as diversas músicas.