Identidade


Teus cabelos em cachos  breves sobre os ombros
resgatando em mim
o que era só escombros
Eu refazia-me em contemplação
da vida nova
em tuas expectativas

Enquanto giravas no centro
dessa  roda imaginária
a boca sempre viva
a cintura incendiária
Às tuas costas,  apenas
o reflexo intermitente de
um outro sol


E nos meus olhos
um halo caleidoscópico a parir estrelas
aquele vestido longo, aceso sobre teu corpo
girava no espaço descontínuo de uma tarde infinita
costurada por sombras e luzes
ludicamente intercaladas sobre a grama

Subitamente tomado por aquela visão
eu  apenas ria, como todo aquele que ama
e sente a beleza tocá-lo eternamente como um contínuo flerte
apoiando as costas sobre o colchão macio e verde
sorvendo, com tanta sede o resto de vinho naquela taça

Um começo de céu a se derramar com toda a graça
em baldes cheios sobre os lírios do que deixei para trás
A paz formava-se em todo o imenso e líquido azul
e eu contemplava a luz a desenhar pequenas
geometrias dançantes sobre teu corpo de seda
enquanto o sol turvava-se em fumaças brancas
dissipando labaredas num céu irretocável de outono

Foi então que senti, pela primeira vez, que tudo valia a pena
e o único sentido do mundo era uma mulher
isso dissipou em meu espírito as dúvidas
como as nuvens livres daquele instante
sem contestações, tumultos
ou as barreiras que existiam antes
numa certeza vibrante de plena aceitação

Tua presença era real
brilhante
e mágica em seus movimentos
meus olhos em delírio calmo a desacelerar o momento
o gosto em minha boca de cada longo fio de cabelo
translucidando a passagem entre esferas celestiais
amores ancestrais, histórias  desmedidas
a flagrarem minha ansiedade
no ébrio desejo de vir à luz

A cada volta que fazias,
como uma menina na ciranda
a sombra sobre o chão
a dança como quem anda
sobre o ar  teu vestido em roda
se espalhava feito Liz
Cortando e pintando de novas cores o espaço
eu te acolhia cansada nos meus braços 
para acalmar meu coração

Ao lado
por todos os lados,
a grama alta e baixa e tenra
pássaros, terras e e cheiros
flores de todos os tipos nos canteiros
árvores, rosas, jasmins e calêndulas
olfato cativado para  o ver
olhos fechados para a liberdade de  ouvir
o olor da relva e dos pastos 
ao redor impregnando inteiramente
a carapaça daquilo que eu já fora um dia
E naquele segundo de eternidade intocável
eu sentia o tempo como algo palpável
uma fruta doce que se come
um torrão de terra que se pega 
na palma das mãos
uma abelha carregada
de néctar retornando ao lar

Deitada nas sombras frescas do dia
(alimentando ainda uma outra fantasia)
sob largas copas, me olhavas como quem vê
o mundo pela primeira vez
e mesmo assim  não vi medo no teu olhar
pois era tua curiosidade
e tua melhor ousadia 
que me perguntavam sobre a vida
derramando pródigas alegrias
sobre as coisas do mundo
e eu me escondia de ti
(no peito aberto)
por apenas um segundo
e te escondias de mim
por mera alegoria
em tua própria concha de não saber
ao fingir que sabias tudo

À inefável pergunta, deixavas apenas
que meu sorriso respondesse
extasiado e contido
contemplando o tempo fugaz
evitando que meras palavras
perturbassem aquela paz
tu me davas o único sabor do mundo
pelo teor do teu batom vermelho
e o teu coração me abraçava forte por dentro
fogo, terra, ar e água se agitavam
enquanto tu ainda dançavas
sobre aquela grama úmida e doce
misturando um a um os elementos

Veias batendo forte sob a fina pele da minha têmpora
tu conduzias todo o futuro de encontro a mim
enquanto eu pressionava teu corpo sobre a grama
e tornamo-nos  apenas um naqueles mágicos instantes
tornamo-nos bichos, tornamo-nos amantes
tornamo-nos enfim, num êxtase
um grito de afirmação da vida
como aqueles antigos Celtas
e os povos primitivos
a própria terra celebrando
o amor no  espírito lascivo
que incita continuamente
a sugar a seiva de viver
a Terra lúbrica
acolhendo-nos
em seu cio

Juntos navegamos a tarde contra o vento
embaixo de um sol poente
dissestes dia
e o chão se fez leito
dissestes noite
e o céu se cobriu de estrelas
sobre o tapete persa de peles eriçadas
tua pele contra meu corpo
teu gosto sobre meu rosto
minha identidade
abdicando para sempre 
das falsas credenciais 
para absorver a tua

Sobre o chão do instante
o mundo conhecido 
perdia suas familiares formas
ganhávamos então novos cheiros
esquecíamos o aprendido primeiro
e abandonávamos todas as normas
para  experimentar novos sabores
novas razões
novos  sentidos de existir
aprendendo novos contornos sobre a vida
assimilando tua essência de flor
aceitando os espinhos
amando até as feridas
aos poucos fui migrando de mim
e abandonando tudo que me naufragava 
na busca de uma boa razão

Tornei-me cada dia menos dúvida 
a cada dia  mais certeza
a cada dia um pouco mais de ti
enquanto aos poucos me abandonava
absorvendo  tua beleza
enquanto tu tomavas o caminho inverso
e largava tua primeira casa, tuas bonecas
e teus jogos de criança 
para te tornares  minha por inteiro
num todo que fizesse algum sentido

Em parte
porque enquanto te descobrias
alguém- para -mim
inaugurastes ao mesmo tempo
o meu próprio sentido
no que sou- para- ti
em parte porque agora tu não eras mais
apenas fragmentos de pesadelos perdidos
tu não eras mais as fábulas de princesas
encantadas pelo sonho dos teus pais
não eras mais o puro esquecimento dos dias
nem a solidão de ainda não ter me conhecido
neste espaço-tempo improvável e irreal 
que todos ensaiamos habitar

Agora as peças finais tão esperadas, 
que de tão guardadas te havias esquecido
numa velha caixa embolorada 
trancafiada há anos em algum sótão escuro
esse jogo finalmente encontrava seus encaixes perfeitos
neste puzzle infinito e rarefeito
quando, abandonando-me de mim mesmo
tornei-me outro ao te absorver
e abraçando a minha nova vida
quando decidi  partir
e tu te tornavas finalmente inteira 
porque revivias tua essência verdadeira
ao doar algum sentido
para alguém fora de ti...





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editado 22-11-17