Pique

Escondido na varanda, luzes de anonimato apagadas para ver  a molecada brincando de pique na rua. Já são quase dez da noite, e por uns instantes a forte chuva deu uma trégua por aqui. O suficiente para a galerinha entre sete a dez anos vazar da festa de aniversário da casa da vizinha e ganhar a rua com estardalhaço. Queimada, manda-rua, pique-pega, ora quem diria? Crianças sendo crianças, sem impedimento visível ou babá eletrônica. O estouro tradicional da pocada de bolas, saída direto da grande garagem para o espaço público, ganhou ares de final de copa de mundo.

Diferentemente do período em que morei em apartamento --essa necessidade mordaz que angustia alguém que durante a maior parte da vida sempre preferiu o espaço mais amplo e privado de uma casa --, as festas de aniversário da pirralhada nos condomínios sempre me pareceram algo bem tacanho e burocrático. Palhacinhos contratados, animadores profissionais, o velho pula-pula, alguns pais meio entediados ou afundando na cerveja ou jogando a famosa conversa fora, conformados com a previsibilidade ou enlouquecidos com a agitação da molecada num salão geralmente pequeno e com muito eco, capaz de barrar qualquer baile funk ou igreja envangélica nos decibéis.

Quem será o gênio que inventou animadores de festas para crianças? Sim, não há dúvida que a coisa tem lá seu toque de genialidade. Desobriga pais, tios e convidados de ter que arcar com o árduo entretenimento de uma dúzia ou mais de pequenas feras, vorazes entre os docinhos, refrigerantes e o temperamento sempre agitado. E ao mesmo tempo dá uma cansada mais do que oportuna nessas criaturas de energia inextinguível, completando o pacote da noite. Bom, mas essa é a visão organizacional do "negócio de festas", associado ao comodismo dos pais & cia ltda.

Alguém já parou pra pensar no lado da criança? Bem, não vou falar das festas temáticas a rigor, onde o pai e a mãe geralmente parecem mais preocupados do que os filhos pra saber se a pequena realmente está igual à Cinderela ou à Pequena Sereia, ou se o pirralho está usando a armadura do Homem de Ferro do jeito certo. Mas,  embora seja moda, imaginar um animador, e geralmente adulto, contratado pra sua festa não é ter que admitir que não se pode realmente ser criança sem pagar um alto preço.

Pra tirar a dúvida sobre esses pensamentos e reminiscências, fico olhando os moleques e gurias aqui, correndo em frente de casa, numa gritaria dos infernos, bola pra um lado, menino pra outro, escondendo-se atrás dos carros, soltando tracks no meio da rua, que por sinal (e felizmente) é uma rua sem saída, com maior segurança para todos eles. Não é difícil ver entre os topetes os pequenos líderes da arruaça. Não é difícil ver entre eles próprios, alguns que se conheceram há mais ou menos uma hora, e já se estabelecem: uns são os generais em campo, outros são bons soldados executando ordens, outros ,em ação estratégica de reabastecimento, iam e voltavam lá de dentro trazendo mais doces, salgadinhos e refrigerante pra alimentar a tropa.

Dentre eles, há os próprios líderes mirins, que geralmente são os mais zoeiros, porque têm que dar o verdadeiro exemplo de como se fazer uma bagunça de respeito. Com experiência, talento e uma energia inesgotável, comandam daqui, dão dicas de lá, sacrificam-se na frente para convencer que aquela brincadeira proposta é melhor do que outra. Não tem um adulto pra atrapalhar, e o mais velho dos moleques parece que ainda não chegou aos onze, com suas canelas finas e tênis de skatista.  Um menorzinho, aí pelos cinco, já caiu e ralou o joelho, eles deram um cafuné rápido e a criatura já voltou pra zoeira mais motivado que antes. Há muito tempo não via tantos gritos de criança juntos. E olha que a rua é grande. Fecharam tudo, e os motoristas, pra passar com seus possantes, tinham que pedir com muito jeito.

O fato é que, sem pai e mãe, de um lado, sem celulares ou tablets, de outro, sem animadores ou palhacinhos profissionais contratados, sem cama elástica ou pula-pula, piscina de bolas ou o terror artificial que esteja mais na moda hoje em dia, a molecada se divertia como se fosse no meu tempo, século e meio atrás. Aos poucos o movimento vai diminuindo, à medida em que chega mais próximo das dez, e a buzina chata dos pais esperando os filhos bem na frente da minha janela não me deixa mentir. Enquanto isso, balançando na rede no intervalo entre chuvas, este meu passatempo idolatrado, fico pensando em quem é que planeja as festas para a criançada, quem comanda as atividades de interação entre os idosos, quem é que (valha-me Deus), planeja e executa essas fatídicas reuniões e dinâmicas de equipe nas empresas e nos órgãos públicos, fazendo com que a gente acabe perdendo de vez a fé na humanidade? Quem autoriza e legitima, no fim das contas, alguém me diga,  todo tipo de "planejador", "empreendedor" "recreador", ou sei lá que nome tenha, nos dias de hoje, mais esse tipo de infeliz que se lança à aventura do self-made business num mercado canibal que habita à nossa volta, essa espécie de técnico de lazer sem qualquer inteligência ou vida que imagina que a melhor idéia de lúdico está realmente aquelas coisas banais e repetitivas que saem de suas mentes tão burocráticas.

Bora deixar as crianças exercitarem sua própria essência, porque a infância de alguma forma é um portal, uma atitude-mundo destemida para uma vida maior? Bora deixar as próprias crianças se divertirem à sua maneira, dentro do seu próprio espaço, através da sua linguagem própria, porque certamente elas encontrarão um elemento muito mais rico e lúdico para sua expressão no mundo?