Relâmpagos





Quando nada mais te consola
em uma daquelas fases onde se duvida
até mesmo da própria vida como força capaz
de se sustentar impunemente
e você sente que nada que possa fazer
por mais grandioso que possa parecer
nada que realize no sentido humano de ação
lhe fará atribuir qualquer valor maior
à existência

Você se pega em pensamentos obscuros
sobre os paradoxos insondáveis
da sua própria mente a lhe pregar  peças
achando perguntas (e são tantas)
que não possuem respostas
achando respostas ( tão raras)
que possam preencher os vãos
do teu melhor espírito

Como se os discursos possuíssem alguma verdade
e não fossem apenas essas trombadas ridículas
que damos com as coisas
exibindo, com frequência, nossas imperfeições
como se não fossem apenas medições
funções e analogias sobre as coisas
navegando sempre
na superfície das coisas
sem jamais adentrá-las

Então, sentado na varanda
recém chegado da rua numa noite qualquer
na batida do vento de chuva forte
quando, antes de qualquer outro sinal de vida suspensa
 surge primeiro o cheiro que recende a terra molhada
e a luz  toda da cidade se apaga
e você fica por aqueles (cinco minutos,
meia hora, quem sabe? uma noite toda?)
apenas contemplando em silêncio o festival dos raios
coriscando indomáveis num perfeito quadro negro

Os olhos navegam na leitura do céu
aurora boreal intermitente
desenhando linhas incongruentes
efêmeras, delicadas e simultaneamente poderosas
(está longe ainda, o barulho dos trovões)
mas os raios continuam, e formam frases inteiras
na grande lousa que se acende e se apaga

Quem sabe não são palavras, o que dizem os deuses?
Zeus, Javeh, Brahma, Allah, Oxalá, Mãe-terra?
estreito os olhos naqueles estranhos caracteres
sinto-me repleto de uma outra energia, tão diferente
da que me compungia o peito apenas minutos atrás
que me esqueço de mim, esqueço-me do meu
tamanho risível, dos meus risíveis problemas insolúveis
 e as minhas insofismáveis questões de formiga

Essa energia plena que habita o ar, essas frases de luz
agora falam comigo, falam conosco, nesta noite mágica
tentam nos dizer algo, aos humanos,
será que devemos nos esperançar pela beleza
essa beleza contundente 
calando algo de mesquinho 
e excessivamente orgulhoso que ainda jaz em nós?

Querem nos inspirar pelo mavioso tom da chuva sobre as folhas?
querem nos dissuadir de nossas próprias entrevadas histórias?
querem mostrar que , por mais isolados no Cosmo que sejamos
              -- essa raça esquisita de humanos --
ainda há saída para nossa própria maneira de
destruir tudo?

Agora a tempestade chega de vez, em grande
 as nuvens cobrem os raios
e o que era brilho agora se tornou líquido
 denso, negro, rajados fios claros
junto à mais inconsolada noite, tudo explode, tudo treme
os vidros as janelas, a pintura caiada junto às paredes
eloquentes labaredas 
voluptuosas réstias de luz ao redor

Fácil de entender como nos primeiros tempos
reverenciava-se o raio, o trovão, as chuvas
porque simplesmente no meio dessa tormenta
quando mal se respira, e cada batimento do coração
pede licença ao trovão para continuar
não se sabe sequer se o dia raiará
e a beleza de tudo, junto ao medo
traduz em poesia
a plêiade de flashes boreais em que o verde é púrpura e o azul
ora torna-se vermelho, ora amarelo, tão rápidos e ricos
instantâneos de alguma câmera secreta no espaço
guardados no album invisível do tempo

A essas alturas  não sou nada mais
retorno à minha nulidade diante de tamanho poder
O turbilhão de ventos batendo janelas, gritos vindos da rua
a enxurrada descendo forte e se acumulando pelos desvãos
enquanto trepida o peito por dentro, molhado, tomado

Raios, a metáfora mais crua
de que tudo nessa vida transita íntimo
entre a matéria bruta
e a mais sublime energia
que me alimentem o espírito cansado com
suas falas de pura luz
e que o eterno medo que nos conduz
tantas vezes aos precipícios cotidianos
seja transmutado dia pós dia
ano após ano
em força nova para jamais repudiar a vida
mesmo quando dói

Chuva, chova em mim para que a planta que um dia fui
em viço, em coragem e esperança consiga renascer
mesmo diante do deserto constante da vida, das pedras e mais pedras
que a cada dia surgem mais fortes e duras e gigantescas
em nossos tantos caminhos
 que sendo pedras
e não podendo simplesmente serem explodidas
com a frequência que deveriam
sejam ao fim dissolvidas de volta ao chão
devolvidas à sua natureza mineral

Que o pobre animal
que teve a sorte de vir habitar este tempo-espaço sem rumo
tenha a esperança de ver, por entre os clarões quentes
que colorem a noite escura e úmida, a motivação contínua
forte e bela

 Que, na falta de outra relação de maior
familiaridade com a vida,
ele alcance ao menos com suas palavras a transcendência do óbvio
do pequeno, do mesquinho do existir sem saber os porquês
do persistir e ter que se perder em meio aos talvez
para descobrir dentro da vida uma outra vida 
que não meça seu tamanho ao se propor arte