PARA UM AMIGO QUE SE VAI

(em memória do poeta  e filósofo alegrense Marcos Silva Oliveira, 
que completaria 60 anos neste mês de abril)

Nasci para ser incompleto
esta a minha sina
mas a ansiedade me extermina
e cego do meu destino
vou me lançando vida afora
esbarrando em tudo e todos
procurando aquele
um-o-quê que falta
(e nessa vida tudo falta)
com o mau jeito e a inconsciência
que também foi a de meus antepassados
Em que lugar me prometeram a eternidade?
Aonde estava meu momento intocável de poder tudo?
Minha história humana irreparável de ser o dono do mundo?
Para onde foi meu dom de dizer a essência das coisas
ministrando minha dor disfarçada de torpe verdade
enquanto o mundo assustado pairava no ar por instantes
no aguardo do olhar ensandecido
do meu mais pesado espírito?
Viver a verdade sempre dói
no entanto, sou feliz ainda agora, amigo
porque você existiu e foi bom estar em seus pensamentos
como você sempre estará  nos meus
quando paro, mesmo que por uns segundos
para perceber ainda hoje sua luz que jamais cessou
Sou feliz por você ter dito a mim o que eu sou
o que sentia em sua imensa sinceridade
(esta jóia tão rara)
casada em teu ser no encontro feliz
(e ainda mais raro)
de uma incomum integridade
com aquela descuidada, amorosa e dedicada
essência das verdadeiras amizades
a incapacidade de prejudicar
ao teu amigo, por palavras
ou gestos vis
A nobreza em existir.
Feliz por ter dito a mim
aquilo que eu sou
mesmo sem eu ainda ter
descoberto em plenitude o que eu era
e o que eu viria a ser
Dizias o que pensava, sempre
mesmo quando instado duramente
pela torpeza do mundo
Tua coragem o quis assim, destemido
E calava-se no mais ermo silêncio
apenas pela delicadeza de não dizer uma verdade
a quem não teria estrutura para suportá-la
Como a chuva, que se sabe forte demais
sobre um canteiro de flores recém-plantadas
e sussurra, apenas, num sereno
pequenas gotas para não afogar a beleza
Tua voz, que com frequência, empolgada,
tornava-se o  gesto eloquente
a me convencer frequentemente como o único som
em que eu podia confiar
alimento para o caminho à espreita
quando parti em busca de mim sem despedida
para achar o outro que em meu peito habita
Este outro que tantas vezes me deixou insone
por noites e noites infinitas
este outro que tanto me impele
como por vezes me repele
até que eu estabeleça uma relação produtiva entre nós
ou até que eu me afunde de vez
no abismo de não ter conseguido
(não há vida sem tentativa e vontade)
Ser humano pressupõe a travessia
a corda tênue desfilando sobre o abismo
e torno-me infeliz no próximo minuto, amigo
porque não possuo  todas as rodas do mundo
a girar em meu favor
e continuo sendo infeliz às vezes
porque não nos veremos mais um ao outro
Sua presença, que minha alma
e minha melhor memória
mostraram ser insubstituível
mas que a dor espalhada
de sermos muitos perdidos
num planeta solitário e sem juízo
Este momento de sua presença
que tentei aprisionar, feito um pássaro fujão e arisco
simplesmente para alimentar meu ego dependente
e excessivamente suscetível
a  felicidade engaiolada que tive em minhas mãos
por apenas um segundo
(tempo em que jurava ser o mais feliz do mundo)
esse pássaro tremia e soluçava
e suas penas se desfaziam aos horrores
enquanto eu somente olhava, sem nada poder fazer
num descuido derrubei sua gaiola ao chão
que assim se partiu em mil pedaços
liberando enfim, o ser que é feito de puro vôo
para sua caminhada no espaço
era  a felicidade partindo
porque percebeu em sua  imaginada plenitude
que mostrava-se  também como a cadeia mais cruel
No peito de quem a deseja ardentemente
e pensa não possuí-la
ela cria abismos, empareda, desentranha
e para quem acha que a tem presa
impunemente nas mãos
vicia, cega e desumaniza.
Voe em paz, amigo, porque
nascestes para asas.
Voe leve com a brisa.


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poema editado, publicado originalmente no blog "Castelos de Ar", em fevereiro 2013.