A origem

Toda origem  guarda um pouco de tragédia. Se na ambiguidade do duplo que nos constitui, a  figura que te inaugura é  naufrágio, a outra pode ser resgate, salvaguardando os frutos sob o mundo que os abate. 


Não há destino que possa mais que o olhar de mãe,  que não quer ser substantivo pra se afirmar verbo intransitivo do amor incondicional mesmo quando tudo joga contra, mesmo quando o mundo joga contra, as paredes das coisas desabam sobre você e e o destino, tantas vezes vilão ,torce o osso da mais recôndita esperança, e todo o investimento dá com frequência em algum desapontamento
essa coisa-de-mãe que permanece acesa em toda mulher que ousou ser,  e jamais arrefece. Contrariando pressupostos filosóficos, há uma beleza-em-si em ser mãe, que não depende de mais nada, nem mesmo do sucesso ou insucesso do filho que se pariu no mundo. Porque ser-mãe é algo do reino do absoluto.

Perde umas lágrimas, umas rezas, umas noites de sono, dá com palmadas, carinhos, conversas
protege e alimenta no leite da persistência, a fé que um filho  possa ter na vida, [mesmo que ele desacredite de tudo o mais]. Ser-mãe, esse verbo intransitivo não classificável que se disfarça de substantivo pra quem não conhece: contadora de histórias, curandeira de feridas que tantas vezes
não estão na pele, motivadora coaching-team em tempo integral mesmo que o time perca, profissional de inspirar coragem mesmo quando tudo nesse mundo te inspira covardia
ou o cansaço de não valer o preço que te cobra, e  bate  de repente no meio da batalha aquela vontade de voltar correndo pra casa como era depois das aulas, pra ganhar o permissivo abraço
o mesmo abraço que  abria a porta das tardes a todo tipo de arte 

Vida-Mãe, Terra-mãe, uma força que se conjuga sozinha, se precisar, porque encerra uma completude. Qualquer associação é apenas benevolência, um sinal, uma premonição quando tudo o mais é a eterna repetição do mesmo e o corpo tantas vezes ferido, tardio na vida cala no silêncio o grito, por total desconsolo quando o mundo também grita e te desconsola (porque o mundo sempre grita, ensurdecedor) e  ninguém mais tem ouvidos nem tempo para a importância das suas verdadeiras verdades. Mãe, ovo frito com pão na merendeira, mãe merthiolate e água oxigenada na ferida do joelho,  mãe-a-febre-não-baixou-doutor, o que é que eu faço ás três da manhã, mãe -carregando-filho-no-colo pra levar mais um em sua sequência interminável de mais de cinquenta pontos  no corpo antes dos dez anos de idade, mãe que lidera sozinha uma trupe de tanta gente com comida boa na mesa, cabelo partido e roupa lavada pra escola, esporro e cobrança das lições nos cadernos, mãe-quase-tudo numa época sem empoderamento feminino e onde tristemente missão tão nobre tantas vezes se cumpria sem pódium.

Mãe, a fala que nem sempre se pronuncia mas você já adivinha o conselho, o remeximento por dentro do peito na expectativa do gesto, quando seus valores não coincidem com tudo o que há lá fora e vem
alguém que mesmo não concordando inteiramente com eles, ainda luta para que o que está lá fora ceda e seu projeto-de-vida de nome filho possa ter uma chance de existir.

Porque seus próprios valores são respostas  às agressões e situações adversas cotidianas e precisam ser inventados, cultivados condensados em memórias de superação . Quando nada cede e em algum momento da vida o pacote dos seus dias é o resultado tantas vezes inócuo de dar murros em pontas de faca, a reminiscência de uma situação de luta e continuidade lhe aumentarão a imunidade, e você engrossará as cascas para não fazer feio. Hà nisso uma homenagem e uma memória de mãe, que o conduz pelas mãos em um pensamento nobre de tentar vencer as bestas cotidianas em prol de algo maior.

É por issso que seus valores necessitam também ser fortes em memória da sua origem e determinados contra as intempéries contra toda hipocrisia, contra as baixas filosofias que diminuem a vida. Maternizar é arriscar-se ao papel vilão porque  tantas vezes representa não a melhor visão
mas a mais forte e arraigada versão da própria vida, na desacolhida que o filho persegue ao se lançar em vôos próprios. Em algum momento essa proteção toda será abandonada por necessidade, como o foguete que se lança ao espaço, e que até o momento final da decolagem encontra-se em aparas de correntes, até que possa decididamente rompê-las rumo ao desconhecido. ´É do status de mãe saber que isso vai acontecer um dia, e mesmo triste , aprender a se orgulhar porque cumpriu bem o seu papel. A tristeza de perder o filho para o mundo aconchega no coração de mãe ao vê-lo feliz.

Acolhimento e fermento necessário para aquele que desde pequeno criou-se no ensaio do mundo através dos seus olhos encantados dos seus gestos acolhedores, das histórias inventadas
dos braços que protegem confortando-se na substância-raiz de toda paciência . E se há alguma razão na vida, se da vida se espera alguma coisa, tem muito desse ensaio bem sucedido , não necessariamente em suas finalidades mas em suas intenções, ter inoculado na prole a difícil tarefa de ser gente, missão em que hoje ele se vê no mundo , ocasião de exercitar a cada dia novos gestos acolhedores , estender braços que possam também ser proteção e praticar  a virtude essencial da paciência ao esperar que o segredo da vida se revele um dia.

Reverberando esse ciclo virtuoso e aprendido na esperança renovada de que tudo caminhe em saltos
para um mundo mais promissor , e mesmo que esse mundo perfeito nunca se confirme,
a atitude benevolente para com a própria vida já terá valido a pena,  porque prenhe de  uma noção 
maior de amor: um amor de mãe, essa mistura de leite, destino e sonhos que nos permitiu existir.

Mãe, depois de tantas idas e vindas desse mundo , tanta porradaria seca tantas vezes inglória, eu calejado podia hoje fingir que estava mais crescido, independente, forte e resolvido, mas dá um desconto porque este animal arredio tá trocando tudo isso por esse colo com cafuné...