Depois da chuva

Como não seríamos tocados pelo sol que vem subindo a encosta depois da tempestade, como não seríamos outros depois de tantos dias expostos ao frio, ao calor, à chuva, às intempéries mas também à nutrição de raízes, folhas e espirito pelos ventos que nos conduziram em cada dia desde o nosso nascimento até o segundo que ainda não terminou na expiração, como deixaríamos de abençoar os frutos de tudo que fizemos, fomos ou quisemos ser nesta vida, se tudo no fundo é essa grande energia incontida, contínua, implacável, que não pode nem jamais deve ser parada se não formos no fundo apenas rascunhos de almas mesquinhas albergadas em corpos que não mais brilham. é o cantar do galo que racha o tempo na estréia da manhã, esse monte de salvaguarda passarinhos que desperta algo que ainda dorme quando tudo o mais lá fora já acordou faz tempo, é o passar da chuva, bela, essencial, transfiguradora de solos estéreis em terras férteis, potência capaz de mudar uma afecção qualquer, tola, perdida, em algo melancólico e bonito, um status poético que jamais poderia ser conseguido de outra forma, sem tanta paixão, sem tanto brilho, sem tanta água, líquido generoso derramado ora como lágrimas emotivas sobre as pontas da vida, ora lágrimas de alegria mesmo, por celebrar o fato de estar vivo e poder estar em sintonia com tudo o mais que nos circunda. status poético de chuva quando passa, e precisa dar lugar ao sol, à luz, para que o verde reassuma sua parte do jogo, e surjam flores, e novos caules, e o pocar contínuo e feliz de nova vida que existe justamente para isso, para nos lembrar o tempo inteiro do caminho natural das coisas. como deixaríamos de ser tocados pelo azul agora mais limpo depois de tanta água, esse contraste que justamente por bater na cara de nossas vidas tantas vezes cinzentas, escritoriadas, onibusadas, supermercadizadas, computadorizadas, criam a chance de mudar o olhar, o principal motivo de toda mudança, e através dele, revalorando, restabelecendo, reequacionando forças e matérias à nossa volta, esse demiurgo original criador que em todos habita pode enfim ter uma nova chance de moldar uma outra estética, aesthesis, sentido e sentimento de mundo por outro viés. sim, porque tudo no fim é esse sentimento de amor pela vida, mesmo quando a vida ameaça cessar, mesmo quando surgem tantas guerras, mesmo quando aparentemente o ódio é que parece tomar conta do mundo. tolas enganações. todo ódio surge mesmo por uma esfera passional que a todos perpassa, e só será revalorado em energia boa, criação, sentido e positividade histórica se houver uma outra força que o contraponha, que o reconsidere, que o revalorize, que aproveite sua energia passional para a poiesis necessária de viver. não pode amar quem nunca sentiu pavor, ódio, desgosto, ira, fome ou muita sede. são sentimentos relativos, irmãos, originados do mesmo ventre, possuindo o mesmo sangue. diante de nada ser, nada sentir, nada poder ou simplesmente se furtar aos chamamentos da vida, de alguma forma terá sido mais vivo, mais sábio, maior e mais generoso aquele que atendeu a esse chamado seja da forma que ele se apresente. apenas no depois, no momento de todas as ponderações, momento onde o temperamento e a real natureza do ser se manifesta, é que pode ser avaliado com maior riqueza se tal movimento, tal essência, tal ação é ou não realmente boa, ou teve bons frutos ou seu contrário. o fato comum a todos e inafastável é ter passado por toda essa gama infinita de sentimentos para sentir que , de alguma forma, se viveu. e que, por tudo aquilo que representou essa insubstituível experiência para aquele que a sente, tanto melhor terá sido se essa impressão nele, em seu âmago, em seu espírito, foi algo realmente grandioso, fora da órbita do comum e do ordinário. afinal, se somos poetas, e não porque escolhemos ser, mas porque a vida assim o quis, como deixar de sufocar a todo instante com a quantidade de beleza ao nosso redor, sim beleza de todo tipo, tortas ou retas, brancas ou pretas, e com todos os formatos e possibilidades. tantas vezes o que sufoca mais não é a beleza em si, mas o sentimento do belo e a incapacidade momentânea ou estrutural de não saber lidar com ele. como gerenciar a beleza em nossas vidas inscritas por outras forças mecânicas em órbitas que nos obrigam justamente a abdicar. sim, porque não são todos ou não e´a todo momento que quando range a máquina do mundo ,essa beleza se mostra assim tão fácil. existe a dor, existe o trágico. existe com tanta frequência o tédio que embaça o olhar. aprender a olhar , a sentir, será sempre um desafio enorme, para que a beleza que motiva e embala nossas vidas nunca cesse. olhos de poetas, sim, esse o único remédio, ou quem sabe, único caminho, para desfiguras quinas e concretos, resgatando no fundo de alguma masmorra nossa possibilidade de estar sempre com a beleza em nossa companhia, sempre apesar de. a vida, por fim, sempre vida, que ela continue eternamente enquanto nos sentimos vivos, penetrando pelos poros sem nosso consentimento, e que isso se dê sem limites dentro da órbita do humano, do inumano, do mineral, do cósmico, que a vida venha pelo sol rebentando muros às manhãs, no banho de cachoeira, na revelação da cor-pássaro que reinventa o olho, no colo da mulher que nos atinge sem permissão a qualquer momento do dia ou da noite, na perspectiva indômita da criança que nunca desiste de achar novas brincadeiras em tudo em que põe os olhos, na serenidade conformada, nunca derrota, do idoso que percebe suas forças diminuindo mas simultaneamente lembra-se de como elas foram bem empregadas quando jovem, e se orgulha disso, de alguma forma.
porque se em alguns momentos perdemos mesmo a certeza de sermos algo de sólido ou viável dentro do nosso planeta, quiçá dentro mesmo desse universo tão incomensurável que nos atordoa, ao menos uma certeza muito mais que cartesiana pode e deve nos impregnar a todo instante na vida, entre as batidas de sístoles e diástoles que nos fazem chegar, às vezes sofridamente, às vezes plenos, ao fim de cada dia: tudo isso só terá algum sentido, se durante a vida inteira, como atitude de batalha cotidiana, como disposição inamovível e conceito que aposta alguma coisa no belo acaso, é nos mantermos sempre como essas portas de percepção inabaláveis ao porvir. que saibamos ver nele, na vida, no presente, em tudo que temos e que nunca soubemos valorizar à altura, não porque somos mal intencionados ou incapazes, mas porque nosso olhar está tantas vezes perdido, que jamais nos saberíamos nos encontrar. às vezes o novo está na forma de rever o que tínhamos e não sabíamos. está ao nosso lado o tempo inteiro e não sabemos enxergar. tudo que tem de belo, instigante e necessário para uma Vida, assim em maiúsculas está em nós e não la´fora, no mundo, e que essa idéia necessária de renovação e permissividade de novo contato com o mundo, sem limites como atitude de vida, seja sempre nossa única lei: descobrir a beleza é saber ver, porque pressupõe um olhar que ora transcende, ora penetra a coisa, o mundo. mas também, descobrir a beleza é saber procurar aonde ela está para nós, de uma forma que possamos ser tocados por ela: uma lei de artistas para um mundo que precisa mais de beleza do que qualquer outra coisa. se não é da nossa categoria humana sermos perfeitos, e talvez mesmo resida nisso uma espécie de bênção, que sejamos belos, por saber ver a beleza das coisas.