INFÂNCIA



I.

Nasci duas vezes
A primeira, de parto natural
Primogênito das dores e suores
De minha mãe
A segunda,
Foi quando minha mãe
Leu para mim
As mil e uma noites
II.

Abre-te Sésamo!
Arcas e mais arcas de ouro
Rubis do tamanho de laranjas
Esmeraldas e especiarias
Tesouros inimagináveis
Belas odaliscas de grandes olhos negros
Embebidas entre luz e pele
Nos seus tecidos diáfanos
Cavernas secretas no meio do deserto
Mundos descobertos por um menino esperto
Camelos, incenso e tâmaras
Tapetes que voam a um simples comando
Gentes que habitavam ora palácios
Ora o mais sórdido das ruas
Gentes que singravam os sete mares
Em busca do desconhecido
Exóticas comidas e lâmpadas mágicas
Gênios
Que sempre atendiam aos três pedidos

III.

Um dia
(Acho que só consegui reparar bem
quando completei cinco anos)
Descobri que havia as meninas
Raça de criaturas diferentes, aquela
Cabelos compridos, vestidos coloridos
Sorrisos e pirraças
Horas podiam brincar com a gente
Horas não
Horas queriam brincar com a gente
Horas não
As bocas sempre pintadas de vermelho
E as artes de contar histórias
Desde cedo, o veneno da raça

IV.

Pedais para o vôo
Pequenos pássaros em bando
Abandonando o ninho
Para ganhar o mundo
Estradas de terra, túneis e cachoeiras
Tornar o mato seu primeiro lar
O cheiro do mato verde e quente...
A casa apenas como ponto de apoio
Uma vida vivida na rua
Sem teto e felizes

V.

Canelas raladas
Joelhos rasgados
Mordida de bicho
Cabeça remendada
A dor pulsante de estar vivo
Os pontos no queixo
Os pontos na perna
Os pontos na testa
Os pontos
A gente cria mesmo é por sorte

VI.

O querido cachorro Bandit
E sua mania de perseguir os carros
Uma hora aquilo tinha que acabar mal
Abelhada ferroada na cabeça
Sapatos destroçados na lida
Futebol de terreirão
Até o sol doer nas costas
Os pés lavados no merthiolate infernal
Por conta dos velhos cacos de vidro
A menina magrinha e feinha, pobrezinha
Que morava no bairro distante
E eu lhe atirando uma pedra
Depois de aguentar muita gozação
Simplesmente por dizerem
(Esses adultos maus)
Que ela era minha namorada
Por conta disso (e outras mais)
Demorei a perdoar meu tio J.
Sem ninguém ver
Fui lá pedir desculpas
Ela aceitou minhas desculpas
E nos tornamos melhores amigos
Passado um tempo
Ela ainda era magrinha
Mas eu não a achava mais nada feinha
E disse que ela podia ser minha namorada
Se quisesse
(Brigad, quer' não caus' q' já tenho
namorado)
Passarinho caído do ninho
Recolocado na árvore
Com esperança, carinho e calor
Importa mais nada não senhor

VII.

Sereno, friagem, gelado, pé-no-chão
Quatro proibições que marcaram minha vida
Nariz entupido
Asma, ar, falta, asma, ar. ashffff...
Injeções, bombinhas, máscaras
Nariz entupido
Asma, ar, falta, asma, ashhffff...
Noites insones e dias inteiros
A falta de ar, o desespero
Com muita natação
Aos dez passou
Me libertando enfim desse calvário
Mas a ansiedade, essa inimiga sorrateira
(Já internalizada no espírito)
Seguiria meus passos pela vida inteira

VIII.

Bola
Pique
Pião
Bolebas
Rolimãs
Pipas
Ou seria
Pipas
Bolebas
Bola
Pique
Rolimãs
Pião?
Para cada gosto
Uma nova estação

IX.

Aos nove, menino do mato
Mais bicho que gente
Desconfiado das histórias
(Como sempre)
Desconfiado por natureza
Das histórias contadas no catecismo dos sábados
Deus existe pai?
Deus existe mãe?
Por que tanta dor?
Por que tanto sangue?
Por que matar o próprio filho?
Na vida não há felicidade?
Sinto tristeza de alguém
Morrer por mim

X.

Aos dez, o amor
O pertencimento
Os fogos de dentro
O fogo
Mostrando-se aos poucos
O jogo
Aquele jeito de menina
Magrinha
( e bonitinha)
E sua eloquente tirania
Sobre meus olhos
Ela não mudou
Foi eu que mudei
A redenção, a dor-de-vida
Pela escravidão feliz
A descoberta sem par de ser criança:
Nascido duas vezes
Por obra de minha mãe
Jogado no mundo doido
Para descobrir como é que não se vive
Sem ser fraco
Sem ser duro
Sem ser aquilo que não somos
Liberdade é a gente ser de alguém




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Poema editado,
Postado originalmente em "O Aleph", em 12-3-17