Moinhos



Delívrios II : D. Quixote


Selai meu melhor cavalo, senhor!
Minhas armaduras, minha espada!
hoje partirei com destino ao mundo
e na falta de inimigo á altura do instante, lutarei contra o que restou dos gigantes --eu mesmo, sozinho
(as criaturas que vos desafiastes)
enfrentando em combate os moinhos


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E se o mundo representasse no fundo, nada além de paródias, não houvesse de resto qualquer questão pela qual valesse a pena imolar-se em qualquer dor?

E se tudo fosse nada além das cenas de um filme sem sentido, sem roteiro sem fim aonde não coubesse  um diretor?

Brotaria de cada canto uma nova planta, respiraríamos outros ares, novos propósitos justificariam, ainda que de forma passageira, tantas vidas que  se apegam a olhares exteriores que não poderiam defini-las porque são olhares mesquinhos e desanimadores, olhares cansados sobre as possibilidades de viver?

Aí se ergueriam prantos diante de tanto terror , aí se instilaria o riso  (esse libertador), botando abaixo qualquer pretensão que não fosse apenas aquela de viver o dia, com a mais pura e sublime alegria
reconhecendo, do nascer ao poente essa espécie de dádiva involuntária em que mesmo com os chicotes estalando às costas ainda se recebe a cada momento um presente?

Que alma ainda se manteria de pé, quando por fim descobrisse qual é a essência vazia da coisa sobre a qual não se assenta um sonho, o vácuo do sonho dentro do qual não mora um delírio, a desgostosa inapetência de um delírio que em seu bojo não se alimentasse de cores, a palidez dos amores que só sobrevivessem de carne, a insuficiência da carne que jamais se motivasse de luz, a intermitência da luz que não tivesse atrás de si uma eterna chama?

Nesse palco onde nenhuma verdade sólida subsiste [porque somos apenas a medida de nossas convenções], não ganharia voz o louco, com sua desrazão tão séria, o único a não se perder por pouco
dentro de toda essa  miséria humana?

Selai meu melhor cavalo, Sancho!
Minhas armaduras, minha espada!
Um beijo de minha querida Dulcinéia
Arriba, meu valoroso Rocinante!

Por onde olhais
Vedes apenas moinhos
Mas eu me preparo todos os dias
É para lutar contra os  gigantes