Varal


Para F, pela parceria de uma vida.
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"Poesia é a arte do delírio"

Abandone as fantasmagorias!
é o que diria a vida, se falasse assim tão delicada e incisiva no meu ouvido

Porque tudo que é bom tudo que ama tudo que é da esfera do afeto pressupõe corpo


E apenas as doenças é que se multiplicam por ausências
infilttrando-se no que não é matéria
para suprir  lacunas consentidas
por conceitos

Viver é ter vivido. Retorne a mim teu  corpo exuberante exótico vibrante de sólidos e formas que tenho a sorte imensa de possuir, e que me entorne na alma o caldo da memória rica de um passado que não passou porque está em tudo

O que as nossas roupas ainda diriam de nós,  que não tivesse sido concebido antes em gestos sem pecado, em cores, em cheiros, pelo discurso eloquente e descuidado dos nossos corpos sobre a grama ainda úmida  de sereno neste sítio?

O que restaria para secar ao vento, agora que todo desejo, toda fome e toda comida absorveram-se mutuamente, sem sobras, e tudo o que foi lavado, enxaguado e dependurado para secar ao sol é nada mais  que meros esqueletos mudos de algodão, linho e seda?

Meu corpo de linho, tua alma de seda em lençóis de algodão
Despidos dos nossos sentidos que lhes amadureciam o cheiro?
Despidos de toda a terra com a qual compartilhamos segredos?
Despidos de toda árvore, toda folha, toda relva hirta ao redor?
Despidos dos futuros compartilhados e memorizados de cor?
Nutridos com a fluidez de nossa saliva, e amaciada ao relento

A lingerie vermelha, incapaz de conter a força do teu sexo
úmida, túrgida, refulgindo à luz azul dessa quente manhã
o vestido em flores, agora a povoar de cores o imenso gramado
as grandes toalhas de longos fios, macios dedos sobre o teu corpo
derretido depois do banho morno enlanguescer tua minha pele

Não esqueci, mesmo tentando às vezes com verdadeiro afinco
nossos pares de blusas enroscados no arame do fim de tarde
nos interstícios do tempo,  quando entrava a mudança de estação
e tomando-nos pela mão, o inverno dava seus primeiros sinais

Aquela casa simples, as telhas, madeiras e os velhos umbrais
ganhavam o sentido desfragmentado de nossas duas vidas
não deixávamos a friagem chegar pelas velhas cobertas,
a fustigar nossas peles agasalhadas e as pernas encolhidas

A sucessão dos dias, então, era algo quase perto da perfeição,
e não se rebelava em giros alucinados no relógio, tempo passivo
objeto apenas dos nossos desejos, e afastado da lida de bom grado
esvaziado de televisões, de celulares, computadores, se extinguiu

Nessa experiência única de controlar o que a vida controla
descobríamos, em mortal segredo, o que ninguém parecia ver:
que a linha inexorável de seguir em frente como mero rebanho
havia sido aniquilada, no início meio sem ciência ou propósito

Depois desdenhávamos do rigor cadavérico do senhor das estações
por passarmos então a nos governar por nossos ritmos corporais
nossas fomes, nossos gozos, nossas dores e contidas fainas
descobriram os espaços perdidos de quando o mundo surgiu

E olhando-nos, a nós mesmos, como éramos antes de estar aqui
pouco tempo atrás, minutos antes de despirmos nossas vaidades
é que enfim pudemos perceber do que não deve ser feita uma vida
o quão despercebida, desnecessária e quase sempre desmedida

É a imposição do tempo que não é o nosso próprio sobre nossos corpos
o quanto de dor, angústia e a tamanha perda de sentido nos causa
girar sempre, sem descanso, no pulso cruel do tirano de parede
e, de forma feliz, como foi possível, ainda que por segundos

Habitar um outro espaço que se guardava, distante, no mesmo mundo
e aquilo que durante tantas estações foi o vilão inconsequente
de repente transformado na solidez inextinguível do inteiro dia
na infinidade de sentidos inexplorados e intocados da plena noite

É justo quando sou tomado pelas minhas melhores nostalgias
no cair da alta noite, e as criaturas querem sair para ver o que há
as lembranças me chegam muito mais sólidas, repletas de alegrias
não porque o que chamei  felicidade seja algo inerente ao passado

Mas porque percebo, feliz, que foram momentos gratos no tempo
onde o próprio tempo, desta vez trapaceado, foi deixado de lado
para que a intensidade de fragmentos que já se sabiam inaugurais
não seriam regulados pela mecânica das horas e sim por outros sinais

Abraçando aqueles instantes como o que havia de mais precioso
estendendo, para o bem ou para o mal, os limites de suas cores
esquecendo voluntariamente o exterior do mundo e seu governo
é que pude, enfim, abandonar-me à real experiência de existir

E confesso que ainda hoje, o vento balançando essas roupas
incitando as danças,  quando o festival de texturas, tecidos
e paletas de todas as tranças ascende no ar como cauda de pipa
revoando meu corpo até os mais  esquecidos quintais

Eu queria ter de volta os aromas lavados no enxágue
os teus pelos decepados e colhidos no algodão
queria ter de volta teus lúbricos líquidos que uma vez perdidos
estendidos e esterilizados, quarando ao sol depois de lavados

Apartados do meu corpo, se extinguirão