"Cinema Paradiso"



Meses, até anos, tentando escrever sobre o cinema da minha terra natal, que por coincidência foi recentemente demolido. Como me ocorre com tanta frequência quando vou escrever, falar ou pensar sobre "algo em andamento", seja leitura recente, fato político, notícia de jornal ou sentido do mundo, eu me embolo demais nas palavras, não tenho noção clara do objeto, os sentimentos e as emoções se misturam demais jogando tudo que é cerebral ou articulado, estético ou elaborado, pra escanteio, deixando reverberar apenas as outras forças que ficam lá dentro, afiando as garras ao bote sem pedir permissão.

Em outros tempos, isso me deixou em enormes dificuldades com a vida acadêmica, por conta doa famigerada "data limite" pra entrega dos  trabalhos, a total incapacidade de fazer uma revisão honesta dos calhamaços de papel sem antes deixá-los decantar como um bom vinho por um certo tempo, e ainda por eu ser um eterno empolgado  com tudo que me vem à mente para a escrita. Apesar disso tudo não posso  reclamar, porque por outro lado  é ainda essa força, essa pulsão de vida que me mantém ligado ao desejo da escrita e à eterna busca da poesia. E, graças aos bons deuses, a poesia  nunca precisou de nada disso para fluir. Ela vem de "outro lugar" que não dos arquivos da razão.

E essa interminável procura pela poesia é a mesma força que em mim alimenta o gosto pelo cinema. E  guarda também uma outra fonte, desde criança. De uma natureza física, se posso assim chamar. Se fosse situar em um local e um tempo, a primeira memória vem mesmo do nosso "Cine Trianon", na cidade-jardim do interior do Espírito Santo, e era na verdade um prédio pequeno de arquitetura histórica, construído na era de ouro dessa região, coisa de quase em anos atrás, em 1924, quando ser uma cidade de interior tinha lá seu orgulho e independência muito justificados, e ainda não possuía essa aura psicológica de desqualificação e um certo descaso perante o "mundo grande" e economicamente poderoso das capitais espalhadas pelo nosso país, como infelizmente hoje se vê em contínua expansão.

Por definição, cinemas e teatros são entidades que simplesmente não deveriam ser destruídas. Caso viessem a ser desativados por alguma razão, ainda assim os prédios deveriam ser conservados para sempre. Pelas mesmas razões notórias que hoje se preservam os anfiteatros gregos criados há 3000 anos atrás, em homenagem a Zeus ou Dionísio, onde foram encenadas as primeiras tragédias que fundaram o ocidente, deveriam ser preservados e cultuados pela sua mágica memória. As peças e filmes que foram exibidos, a capacidade do ator, do artista criador, a beleza, a dor, a alegria, a reflexão necessária e fortemente instigada sobre os temas encenados que tantas vezes mudam nosso olhar sobre a vida e que no fundo revelam e incandescem a presença humana na Terra, tudo isso faz com que esses locais transcendam sua  designação como apenas  mais um espaço urbano qualquer. Seus locais de encenação, de exibição, depois de inaugurados, não são mais locais tipicamente físicos, com tijolos, tintas, madeiras e coberturas. Eles revestem-se na verdade da vida e das histórias de todas as pessoas que passaram por ali e deixaram impregnados nessa matéria bruta a energia de suas vivências, suas experiências e emoções que só foram possíveis em tamanha magnitude e beleza pelo fato de estarem ali, naquele local, nesse espaço-tempo, e não em outro qualquer.

Arrisco dizer que, se em qualquer processo de escrita e nas primeiríssimas aulas de qualquer oficina,  a dica principal do professor será invariavelmente "Evitem o lugar-comum, minha gente, se vocês querem ser escritores", hoje eu tô me lascando pra isso. Lugar-comum também é vida, e bordões ás vezes são a revalidação de processos coletivos assimilados individualmente através de uma força muito poderosa que transcende. Ora, e por acaso não é o amor em suas formas tantas vezes repetidas e tão pouco originais a bem dizer, o maior lugar-comum de todos? E por acaso, para todas as gerações que tiveram a felicidade de nascer já depois de mil novecentos e qualquer coisa, bem no início do XX, uma espécie de bênção por nascerem na época mágica do cinema? Pois digamos logo: não há invenção maior desde o livro, e olha que o livro, segundo boatos, parece ser bem antigo. O cinema, sim, e seu lugar-comum enquanto metáfora da luz e movimento que se acende sobre nossas cabeças no silêncio aveludado da sala com cheiro de pipoca fabricando uma infância com maior sentido; o lugar-comum do escurinho refrigerado da pegada nas mãos do primeiro amor ainda na deslavada timidez, a chance do primeiro beijo, quiçá das primeiras ousadias não narráveis neste horário para adolescentes em fúria hormonal que depois, la´fora, não se lembrarão nem mesmo de qual o filme que estava em cartaz.

Chamarei o querido "Cine Trianon", como era o nome oficial, de "Cine Paradiso", pela memória afetiva em analogia com um grande filme italiano (1988) do qual gosto muito, e que também fala de amor à sétima arte. O "Cine Paradiso" de Alegre tinha tudo isso, e muito mais. Situado na pracinha mais movimentada da cidade, alimentou por diversas gerações todo tipo de adorável lugar-comum que ainda será celebrado em ritual por milênios após essa singela fala, e preencherá de sentidos tácteis ou oníricos infinitas realidades que ainda ocuparão outras salas mundo afora. Uma pena que isso não mais poderá ocorrer naquele cinema, naquela cidade.  "Silêncio, meninos, porque não estão na casa de vocês", dizia o projetista "Gigante", um saudoso cidadão alegrense que além de projetar os filmes, ainda cuidava da disciplina da moçada em polvorosa antes das sessões. Ainda me lembro da vez em que parou tudo no meio, acendeu as luzes e desceu da sua cabine de comando para passar o maior esporro que já tomei na vida, quando fomos lembrados não aos gritos ou ameaças, mas com a luz acesa, ele sem alterar a voz, Gigante duas vezes com sua presença intimidadora pela altura, --e mais intimidadora ainda por sua gentileza e natural delicadeza, um gigante que se recusava a usar a força e falava com autoridade poética era muito mais poderoso que um ogro brandindo uma clava -- nos lembrou de uma poderosa frase de Rui Barbosa que eu não me lembro mais qual é , mas era sobre algo relacionado ao destino de uma nação em retórica sobre o  que nós, jovens, escolheríamos fazer dela. O cinema sendo uma casa ou algo como uma nave espacial a caminho do fabuloso desconhecido na imensidão de glórias e sonhos e a atitude grosseira que desempenhávamos naquele momento, na zoeira infinita do cinema sendo algo realmente reprovável. Vergonhas coletivas devidamente nomeadas, luzes apagadas, sessão continuada na paz dos deuses e uma lição pro resto da vida a respeito de cultura e habitação de lugares públicos. Toma, cabeçudo! O cinema... aahh

Sessões de matinée de domingo com os Trapalhões e sua interminável infância, Tubarão, do iniciante Spielberg e a música de suspense mais poderosa da sétima arte, Superman co o incomparável Christopher Reeve, e a cor de um verde Kryptonita que nunca me sai da memória , StarWars, a vontade de voar pelo espaço profundo e a primeira vez que vi um Cavaleiro Jedi bramindo o  belíssimo sabre de luz foram mágicas sessões de mundos e sonhos sentado a poucos metros do telão. Passando o tempo, mudança para as sessões noturnas, de sextas ou sábados , onde foram entrando as  sessões de Blade Runner, (assistido quantas vezes, meu deus, que eu já perdi a conta),  Lagoa Azul e Endless Love pra levar as "namoradas ou quase" dependendo do resultado pragmático da sessão, logo em seguida iniciados os rituais de passagem com as aventuras politicamente nada corretas das comédias universitárias americanas e por último, e não menos nobres, os primeiros filmes pornodidáticos a que tive acesso, ainda na surdina iludindo o vigia de portaria com a lorota de que nós aqueles garotos de 15-17 anos todos já éramos maiores de idade, mas isso ninguém precisará saber nunca porque com certeza não vou contar.

Quando deixei minha cidade pra estudar na capital, o cinema já estava fechando as portas, a construção histórica apresentava os sinais da idade, e as más políticas em todas as esferas de poder jamais se dignaram cuidados e interesses patrimoniais nessa questão, como ocorre reiterada e imensamente neste solo brasilis por toda parte, e a coisa toda veio abaixo recentemente, para tristeza de todos que passavam pelo local e viam, não mais o cinema em funcionamento, mas ao menos a fachada histórica que já era um dos retratos mais característicos da pequena e saudosa cidade "do Alegre", minha querida terra natal. Quem sabe o que virá no lugar, daqui a uns tempos? Segundo me informam os amigos de lá, hoje é apenas mais um lote abrigando ratos e mato próximo às margens do rio que corta ao meio a cidade. Algum Eike Batista da vida certamente surgirá daí a uns tempos pra reivindicar de alguma maneira  sua posse, seja comprando barato o que não tem preço, seja propondo mais um "milagre" de urbanismo para nossas tristes misérias urbanas, enfim, o espaço imaginário, espiritual, artístico, humano que aquele cinema ocupou, pelo visto jamais poderá ser ocupado por qualquer outra coisa nos nossos tristes dias contemporâneos.

No filme famoso do "Cinema Paradiso", mesmo depois de um trágico incêndio que põe tudo abaixo, surge um herói benfeitor que por sua conta e risco resolve retornar a arte ao que era antes, dando novamente uma chance à felicidade. Gostaria de acreditar nisso, mas algo me diz que vivemos por aqui uma vida sem heróis...

De meu lado, só tenho a agradecer : Obrigado por tudo, meu querido "Cine Paradiso do Alegre".