Pássaros


Tentou a primeira vez. Era devotado e meticuloso, sempre cuidava daquele bichinho como se fosse gente da família, mas apesar do encanto e de  tanto afeto, foi apenas ele virar as costas um segundo e o famoso gato angorá do vizinho invadiu a gaiola do Canário Belga  com tudo, deixando para trás somente algumas penas amarelas e as grades quebradas.

Tentou da segunda vez, com cuidados redobrados, mas mesmo assim, por uma fresta da imensa gaiola velha de embaúbas, onde havia um remendo imperceptível de bambu verde para consertar o estrago anterior, o novo  canário dourado-verdinho fugiu, para não mais.

Da terceira vez, resolvido a se tornar um criador, conseguiu casal de pássaros (novamente a fixação por canários-belgas), conseguiu gaiola-mansão, aprendeu técnicas, adquiriu também um grande ninho de amor e sombra para os bichos chocarem família. Tudo ia muito bem. Os ovos vingaram, dali saíram três filhotes que faziam imensa algazarra e gostavam de ser alimentados de manhã bem cedo com pequenas porções de polenta e gema de ovos. Até que num banho de sol pela manhã, enquanto o garoto voltava do mercado justamente onde comprou  jiló maduro, couve, pimentão e ovos para preparar o novo banquete dos bichinhos, as formigas (que ele nem sabia que eram carnívoras) nesse intervalo haviam invadido tudo, mataram todos os três filhotes dentro do ninho, e o que restou da cena desoladora nem valeria a pena narrar. Os pais, desesperados por perderem os filhotes e não terem mais o que fazer, acharam um novo buraquinho na gaiola frágil e partiram pro mundo naquela  manhã calada e fria.

Abandonando canários, reanimou-se novamente depois de um tempo, com um filhote de Melro que ganhara do avô paterno, durante uma visita a Teófilo Otoni. O avô ficara sabendo da história dos canários belgas e tentava ajudar. O novo passarinho só faltava falar. Inteligente e barulhento como é próprio dos Melros, esses mini-corvos tropicais, não tinha criatura com maior empatia. À menor presença do garoto na redondezas, arrepiava-se todo na cabeça para receber cafuné, cantava e girava de um lado para o outro dentro da grande gaiola de metal, e vinha até gente da vizinhança para ver que bicho diferente e cantador era aquele. Mas ele bicava a mão dos curiosos e sabia quem é que tinha energia boa ou não. Por obra de mau-olhado, segundo os entendidos de bruxarias, ou por obra de doença típica dos pássaros, segundo os desavisados atendentes de lojas de ração, ou ainda por conta da péssima ração que o próprio dono do armazém estava vendendo nos últimos tempos, o fato é que um belo dia o Melro falador apareceu revirado de barriga pra cima no fundo da gaiola, sem mais explicação.

Da última vez, por mais incrível que fosse o espírito e a persistência do garoto em teimar contra esse aprendizado tão básico: natureza trágica irremediável da própria vida, não era Canário nem Melro, mas Coleiro. Laranjeira, dos bons. Olhos escuros mascarados, bico destacado com bigode, peito verde amarelado com aquela faixa característica no pescoço. Enquanto livre, cantava o mais belo e forte "tuí-tuí' no galho da castanheira como se não houvesse amanhã. Cantava na ponta do telhado de laje, impondo respeito aos rivais, nos galhinhos finos dos pendões de mato carregado de sementes e na ponta da antena de tv fincada nas telhas sobre o prédio mais alto da rua.

Semanas solto num certo verão de férias, o garoto ouvia seu canto dia após dia invadindo tudo pelas manhãs ainda neblinadas de pouco sol e restos de noite. Ele se apaixonava perdidamente pelo pássaro. Queria moldar-se a seu canto, transformando o mundo inteiro em canção. Até que, por pura arte, persistência e alguma técnica aprendida dos mais velhos passarinheiros, a sorte do alçapão do menino que o capturou, depois de muitas tentativas, com esperteza e manha à frente dos concorrentes. O pássaro o escolheu como algoz. Ainda inconsciente do ato de tirania disfarçada, o garoto comprava-lhe o melhor alpiste, limpava com capricho sua gaiola todo santo dia, conversava com ele, colocava música pro bicho ficar feliz. Era tê-lo por perto e cessavam as melancolias antes mesmo de nascer. Sua arte foi também sua maldição. Avisado tarde demais, pelos mais entendidos em passarinhos, descobriu que coleiros, em período de acasalamento  não podiam ser presos porque cessavam o canto, entristeciam, deixavam de comer e aos poucos iam morrendo.

Amigo, quem já teve passarinho sabe: Canários Belgas são pássaros de cativeiro, criados há gerações sem saber como é o mundo lá fora. São belíssimos e de belo canto, mas não sabem a liberdade. Perdê-los foi sentir abater sobre si suas duas tristezas: a dor da perda em si,  e a de pressentir a morte certa do bichinho lá fora no mundo, soltos, sem saberem como se virar, presas de algum gavião, gato ou mero atropelamento pelas ruas enquanto ciscavam alienados suas comidas de gaiola inexistentes. Depois de um tempo, o garoto engolia seco e tocava em frente por sentir que não fora exatamente por sua culpa o desfecho. Esforçara-se para que tudo corresse bem e a fatalidade tomou conta do destino.

No caso do Melro, o mesmo sentimento. Fora pássaro criado pelo avô desde filhote, colhido na natureza depois dos pais perderem o ninho pelo mais recente desmatamento que lhes tomou casa e sustento. O Melro não conhecera os pais nem a liberdade, que haveria de reclamar da cela? Tratado e treinado na gaiola desde cedo, via nas grades batidas de metal a beirada do próprio firmamento. Aconteceu de ganhá-lo como presente, e tomou conta dele como a coisa mais preciosa, com dedicação e carinho, ele era todo atenção e mimos com aquele Melro falante e interativo, e  depois de muitos anos ainda não sabia a possível causa da sua morte. "Coisas da vida" , como dizia a sábia avó.

Coleiro é criatura diferente. Bicho bravio do mato, com raça, petulância e topete para jamais ser domado nem depois de muito tempo de gaiola. Ele pacifica,  depois de uns meses, apenas em simulação calculada de  não morrer se debatendo, mas seu espírito -- guardado em outros ares -- nunca se curva. Às vezes não aceita , e simplesmente se recusa a cantar depois do cativeiro. Uns simplesmente morrem de desgosto, com gaiola posta, casa, comida e água com fartura. Por que prender uma criatura dessas? Estar humano é  ser desumano? Todos os coleiros têm aquele mesmo ar arisco que os fazem se baterem na gaiola durante dias, meses, até se sentirem condicionados em seus esforços inúteis por aquele ambiente quadrado, mantendo no peito uma respiração sôfrega de fera que não quer entregar os pontos, a alma perdida em  beleza , canto e encanto do som tornado corpo terno flutuante de puro ar. O mundo aqui foi mais duro em seu ensinamento, e o quarto tom da morte, entoado em sustenido maior e  mais sagaz: agora não era apenas, como nos outros casos, a fatalidade misturada à perda do bicho cativado para o mundo. Aqui fora deliberadamente a ação do garoto que entrou no destino do bichinho para fazer  toda a diferença ao tirar-lhe a liberdade pássaro e encerrá-lo pra sempre detrás das grades. E com esse último passarinho, quase se foi também o menino, sentindo-se um monstro, apaixonado e doente de tristeza por meses a fio.

Amargada a mais dura e definitiva derrota, depois de apanhar tanto, ele desistiu de tentar prender novamente qualquer bicho de asas. Na verdade, não apenas "de asas", mas desistiu de vez de tentar prender qualquer coisa nessa vida, porque percebeu que enjaular uma criatura cuja essência é liberdade é perdê-la pra sempre de si.

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(texto editado, publicado originalmente em dez/2017)