A função do trágico nos contos de fadas


Literatura infantil e videogames “violentos”. A violência fundadora contra a disneylandização da infância.



(Trad. direto do alemão:  Tatiana Belinky , com ilustrações primorosas de Janusz Grambianski. Ed. Paulus, 2016)





“Os contos infantis, com suas luzes puras e suaves, fazem nascer e crescer em nós os primeiros pensamentos, os primeiros impulsos do coração. São também contos do lar, porque neles a gente pode apreciar a poesia simples e enriquecer-se  com sua verdade. E também porque eles duram no lar como herança que se transmite”. (Jakob e Wilhelm Grimm, 1812)


1)“Então a rainha chamou o caçador e lhe disse: _Leva a menina para o meio da floresta, não quero tê-la diante dos meus olhos. Tu deverás mata-la de trazer-me seu pulmão e seu fígado como provas. (...) Ao libertar a menina no meio da floresta, por conta própria, o caçador sentiu como se lhe tirassem um peso do coração, porque não precisou matar a menina. E como naquele momento passasse por ali um pequeno cervo, pulando, o caçador matou-o, tirou seu pulmão e seu fígado e levou-os à rainha, como prova”. (Branca de Neve)

2)”O lobo então pensou consigo mesmo: Esta coisinha nova e tenra, ela é um bom bocado que será ainda mais saboroso do que a velha. Tenho de ser muito esperto, para apanhar as duas”. (Chapeuzinho Vermelho )

3)”Sabes de uma coisa? Respondeu a mulher, amanhã bem cedo levaremos as crianças para a floresta, onde o mato é mais espesso. Lá acenderemos uma fogueira e daremos a cada criança um pedaço de pão; então iremos trabalhar e as deixaremos sozinhas. Elas não acharão mais o caminho de volta para casa, e estaremos livres delas”.//Então disse a bruxa: “Acorda, ,preguiçosa! Vai buscar água e cozinha alguma coisa boa para o teu irmão, que está lá fora no curral e precisa engordar. Quando ele estiver bem gordo, eu vou comê-lo (João e Maria).


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Embora pareçam falas tiradas de um filme de terror para adultos, essas três citações em tradução direta do original foram extraídas das fábulas para crianças “Contos dos Irmãos Grimm”, publicadas originalmente em 1812, na Alemanha. Da versão editorial que se popularizou pelo mundo, constam um total de cinquenta contos, e em boa parte deles a naturalidade com que se fala da violência é similar ou um pouco mais dura até, do que os trechos acima. E isso num livro para crianças, de mais de duzentos anos atrás. Hoje, contudo, ao se falar em “histórias para criança”,  “literatura para crianças”, ou ‘filmes para crianças”, normalmente a idéia que se tem do grau de exposição da criança em perspectiva de sua faixa etária mudou radicalmente, tanto nas estéticas quanto na forma de apresentação dos motes que dão origem às fabulações, os enredos etc. Por outro lado, no desenvolvimento de videogames, principalmente nos jogos com perfil de lutas marciais ou de guerra, aboliu-se há um tempo essa noção pueril que veio tomando lugar nas estéticas normalmente destinadas às crianças no mundo das artes desde algumas décadas atrás, e é possível mesmo encontrar-se no mercado jogos destinados a faixas etárias bem jovens com uma estética e roteiro de ações bastante violentos, em comparação.  O que há de “certo ou errado” nessas propostas e qual a motivação? O que é permitido e o que é proibido, em se tratando da violência simbólica que transita em torno ou compõe o núcleo da forma artística que se apresenta à interpretação? Qual a origem dessas narrativas, em especial, dentro da denominada "literatura infantil" e quais são as razões factuais do eixo girar em torno de um determinado tipo de violência ou, conforme o caso, o eixo ser extirpado justamente por conta da violência e ser substituído em sua essência por outras formas narrativas ornamentadas supostamente com maior "delicadeza do gosto" ou da omissão de partes e contextos da violência simbólica e originária do conto/fábula com a sua consequente diminuição do poder evocativo, formador ou artístico? Como ambas as estéticas , violentas e não-violentas se baseiam em narrativas e se constroem como parâmetros do universo infantil ainda nos dias de hoje,  de onde é que veio isso e qual o seu valor?

Afinal, como se apresenta a nós o primeiro questionamento ao analisar o tema em seu perfil histórico, onde e quando foi eventualmente criada a primeira narrativa de um humano (ou algo a que assim pudéssemos chamar) para um amigo, um parceiro sexual, um filho, um neto? Evidentemente, não há como precisar o momento exato em que isso surgiu, mas considerando o registro comum, de base antropológica, de que a oralidade é de origem muito mais antiga que a escrita, se contarmos ainda os sons tanto corporais quanto os produzidos artificialmente com objetos mesmo rústicos, como ossos ou pedaços de madeira (algo por si só de mais fácil elaboração do que as inerentes dificuldades comunicativas dos complexos signos da escrita), é de se imaginar que qualquer que tenha sido o “momento zero” das narrativas humanas possíveis, o primeiro passo seguinte foi dado numa muito provável comunicação verbal e sonora conjuntamente com a confirmação formal da existência de algo que só a partir de então  poderia de fato ser chamado de humanidade, pela primeira vez. Porque é justamente a narrativa da nossa espécie, independentemente da forma utilizada, o que nos  situa e humaniza.
Juntamente com essa indagação primeva, logo vêm outras  para ampliar nossa imaginação questionadora a partir de um dado instante, como procurar saber quando exatamente aquele primeiro ato de “contar”, de “narrar”, de forma séria ou lúdica, guerreira ou ritualística, quer tenha sido apenas oralmente ou a contação de uma história acompanhada de  mímicas e teatros em frente a fogueiras para o grupo reunido, passou a fazer parte com frequência das tradições daquele determinado clã ou tribo,  ou em que outro momento essas narrativas, agora não mais representantes diretos apenas de uma saga individual real ou imaginativa, objeto do delírio das mentes mais flutuantes ou registro de memória dos mais velhos, mas sim algo de domínio coletivo transferido para o contexto do grupo, algo que transcende a mera individualidade e até mesmo, acrescentando algo de inafastável importância que passaria a fazer parte de sua essência, subitamente passou a ser  legado para as futuras gerações como memórias universais a serem ensinadas ou um contexto palpável de preceitos de ordem ética, ritual-mística ou apenas lúdica? Em que momento aquelas simples e caricaturais representações passaram a ter seu conteúdo administrado de alguma forma pelo grupo que a gerou, e assim sucessivamente, ao se constituir numa narrativa oral transmissível às futuras gerações?

Porque é inegável, no andar da história, que em algum momento mais à frente, se o mundo ocidental não abandonou completamente essa forma, ao menos passou a deixar mais de lado a cultura oral para se dedicar quase que exclusivamente aos registros escritos tais narrativas, repletas de valores e sentidos apropriadores únicos do mundo , daquele mundo em particular , que é analisado coletivamente pela ótica do grupo, e que então passou a constar com a solidez de algo quase inquestionável no seio do pequeno núcleo familiar, clã, tribo, e no futuro, das próprias nações. Ou seja, as narrativas, tanto orais no início, quanto escritas, tanto embasadas em fatos ou eventos reais acontecidos e apropriados de forma mais objetiva ou fantasiosa, como no domínio da leitura mítica do mundo fenomênico, ambas as origens mais tarde, serviram a longa mão como base para conceitos e vivências coletivas tais que embasariam bem mais tarde os valores de povos e países a se formar. Daí a importância original dessas formas narrativas na constituição da essência de um povo, de uma nação, e a justificativa de voltarmos nossa atenção ao que se produz nesse sentido, particularmente no seu caráter "formador" sobre as novas gerações, a infância propriamente dita.

E é nesse contexto onde imaginação e realidade, ou melhor dizendo, imaginação e apropriação de determinada maneira de apreensão da realidade, conjuntamente com  traços de pesquisas e registros antropológicos em algum momento se dão as mãos para revelar o quanto de importância formadora, agregadora e perpetuadora dos grupos é que possuem essas narrativas de toda ordem. Neste ensaio , deixando um pouco de lado o contexto de surgimento primevo e partindo para a experência posterior em que analisamos o surgimento e desenvolvimento do “conto de fadas” a partir da baixa idade média, a intenção é direcionar o olhar para um gênero específico de narrativas com suas próprias particularidades, gênese temporal e remissões simbólicas aos tipos desejáveis e estereótipos que pretendeu codificar, para dessa forma inaugurar e perpetuar valores e comportamentos, ou quem sabe, coibir no seio do povo ou da nação que os gerou, não é de outra ordem a descoberta que se faz, tanto no que diz respeito ao seu surgimento em nosso meio por legado histórico e tradição, de forma mais moderna e contemporânea, como assim também a grande mudança que se detecta particularmente nas últimas cinco décadas, este o ponto a ser ressaltado aqui.

Da forma como os conhecemos, nossa referência mais direta aos "contos de fadas", as tradicionais "Fábulas para crianças", elas têm origem moderna na baixa idade média, onde facilmente são identificáveis o estilo de vida comum à economia feudal, os códigos de honra e vassalagem e a presença estética de castelos, dragões, cavaleiros e a paisagem típica do período, conforme conhecemos também pela documentação corrente do período nos livros de história. Como integrante daquele ambiente povoado por guerras, influência simultaneamente eclesiástica por conta de uma igreja  dominante e ao mesmo tempo pelas vias místicas que povoavam em paralelo a imaginação dos europeus do período. Isso norteou durante séculos a tradição de vários contadores de histórias e em várias lendas e fábulas típicas de várias partes da Europa, que ainda são muito conhecidas nos dias de hoje. Contudo, não apenas esses contos originais passaram a sofrer uma "releitura" a partir de um dado período da nossa história recente, e não apenas isso, o gênero foi refundado em uma nova base de valores numa época específica, que queremos acreditar ter-se iniciado há mais ou menos cinco ou seis décadas atrás. As características essenciais dos "contos de fadas", na forma integral como foram criados e divulgados foram  drasticamente mudadas pelo advento do chamado “cinema infantil” e o desenvolvimento da nova expressão gráfica e valorativa através do cinema americano dos anos 50, e mais tarde através dos “videogames” de jogos para crianças, ambos grandemente inspirados pelo advento da ” nova  literatura infantil” e produção da cultura em massa. O primeiro, como uma tendência que depois se espalhou pelo globo, criando um novo conceito de "infância" calcada na idéia genérica de que havia a necessidade de se colocar uma suposta "maior delicadeza do gosto" nas histórias e com isso, supostamente menos violência real ou simbólica nos enredos.  O segundo movimento, ao contrário, recolocando a violência no seu papel fundador e originário, ao ressaltar a necessidade de ação para as tramas levadas ás telas dos computadores. Há aqui, ainda, uma outra linha de abordagem que poderia se estender pela acepção mais ampla dos termos violência, quando se analisa por seu contexto "real" ou "simbólico", a metáfora, portanto, ou a ação, sendo que normalmente a literatura se utilizará com maior frequência , por sua própria natureza, da violência simbólica, de metaforização e de elaboração subjetivas, enquanto os games, de outro lado, usam linguagem visual reflexo do olhar cotidiano, em busca de um maior realismo e impacto.

Tomando outro caminho que não o de enveredar apenas nos aspectos psicológicos dos termos relacionados à violência, mas sim seu contexto social, nossa tese é que, diferentemente dos contos como aqueles publicados pelos Irmãos Grimm (literatura) onde o terror e o trágico contextualizados na forma de violência original são elementos causadores e integrantes  necessários como valores para a formação de consciência e reação ao mundo pelos infantes, e mais ainda, considerando fundamental que esse elemento seja trabalhado e legado primordialmente pelo instrumento livro, contado ou lido, enfim, legado pela literatura, com toda a especificidade formadora que isso enseja, houve notoriamente dois grandes momentos de ruptura com essa base no século XX. Primeira e mais ampla, a partir dos anos 1950, na América, houve uma importante apropriação e posterior desvirtuação significativa do gênero “conto de fadas” principalmente pelo cinema infantil de base cultural/ideológica americanos fomentados pela grande indústria que tiveram em Walt Disney seu grande cavaleiro templário. Num segundo momento, mais específico a partir de 1980, também houve a alteração essencial desses conceitos pela independente indústria do entretenimento criadora dos “videogames para crianças”, no sentido de se refutar consciente ou inconscientemente aqueles parâmetros de “infantilidade” ditados e propagados pela Disney, com a inserção de conteúdo novo com maior aceitação do fator violência para a construção da normalidade de personagens que usam meios menos ortodoxos para alcançar seus objetivos. À parte as regras de mercados que procuram criar produtos de consumo cultural para valorizar seus respectivos padrões industriais, isso reflete não apenas a escala da economia, mas uma mudança sutil no comportamento e configuração do modo de pensar das novas gerações a se formarem principalmente no contexto pós-segunda guerra mundial.

A gigante companhia de cinema e entretenimento Walt Disney Company, a partir da década de 50 nos Estados Unidos, e logo em seguida para o resto do mundo, foi a principal responsável pela alteração das noções de valores tanto estéticos quanto éticos na criação (recriação) e adaptação de histórias ou contos de fadas para o cinema, e por via indireta, para a dita literatura infantil de boa parte do segmento mundial, que passou então a vivenciar e a divulgar os catálogos de filmes e personagens de notória fama e carisma para o resto do planeta a partir do seu nascimento. Essas histórias e personagens, pasteurizados com relação às fábulas e personagens originais, fizeram uma releitura para a ótica da sociedade industrial americana dos anos 50, conforme valores que precisavam se adequar ou ser extirpados definitivamente do seu âmbito maior. Compreensível que lendas, mitos e histórias sejam utilizados para criar e recriar continuamente valores dentro do contexto social, alavancando tipos ideais e banindo comportamentos execráveis dentro da nova ordem. De certa forma, não se conhece sociedade em qualquer tempo que não tenha agido de forma similar. Sãos os valores consolidados, tanto morais quanto instrumentais que formam e dão coesão aos grupos, permitindo sua perpetuação no tempo. Ocorre, contudo, que tal valoração-revaloração dentro do terreno da arte cinematográfica operada em princípio em larga e massiva escala pelas organizações Disney trouxe efeitos genéricos dentro do tema de se pensar a “Infância” do ponto de vista da tolerância ou exposição a determinados valores como a violência ou a falta dela, e os comportamentos desejados ou repudiados para cada órbita analisada mudaram radicalmente, de forma a contemplar agora não mais aquela gênese européia e de base medieval onde a violência e o contexto advindo de um mundo feudal regrado por códigos de honra, magia e conquista de objetivos materiais pelas próprias mãos essencializavam as virtudes necessárias e desejáveis. E é evidentemque isso ganha larga sustentação num mundo pós-guerra capitaneado pelos Estados Unidos,  tendo como pano de fundo uma guerra fria que chegava aos seus anos mais duros. Valores sociais e econômicos em conflito e em afirmação no mundo inteiro, num constante embate, contexto que não apenas não passou despercebido pelas artes da propaganda capitalista, como passaram em grande parte a integrar seu núcleo em nascimento e prodigiosa expansão mundial.


Já em final dos anos 70, também inicialmente na América do Norte e depois espalhando-se até meados dos 80-90 pelo resto do mundo, houve uma drástica mudança na acepção dos termos de violência x não-violência que veio à tona por conta do desenvolvimento de jogos eletrônicos de videogames, em massiva escala no ambiente de lutas marciais e jogos de guerra, contextos violentos portanto. Hoje em dia ainda se debate á exaustão nas redes sociais, nos lares e no ambiente acadêmico a eventual pernosticidade desse jogos para a (má) formação dos jovens, considerando-se o recurso frequentemente utilizado da violência como potencializador da sensação de “adrenalina” dos jogos, um estimulador da sensação de bem estar e motivador de novos aprendizados dentro desse novo ramo de entretenimento.

De todo modo, o conflito que se coloca em algum momento é: os “contos de fadas”, de forma pasteurizada e ideologizada à maneira Disney são ou devem ser a melhor forma de se legar uma determinada idéia formadora do mundo ás crianças? Ao se eliminar dos contos originários qeu podem ser considerados, por sua integralidade na visão de um mundo imaginário radiante mas umbilicalmente vinculado ao retrato antípoda de dor, tragédia e não-realização pela presença constante dos monstros, das  bruxas, e das crueldades frequentes perpetradas por humanos, não se eliminaria também com isso um importante valor formador das novas gerações de crianças, que é justamente a chance de desenvolver nelas uma faculdade de lidar com doses maiores de medo, imprevisto, consciência da 'dor do mundo", em detrimento do seu puro e simples mascaramento por uma maquiagem superficial e colorida que garante sempre um final feliz e não-conflituoso? E pensando a questão por outro lado, onde a violência foi resgatada em nossa cultura contemporânea através de alguns tipos de videogames , se pensarmos a questão pela ótica de seus detratores, homologados pela forma "Disney" de se pensar a infância, o  gamesde natureza mais violenta são seria  necessariamente um mal-formador de crianças, no sentido de incentivar-lhes a noção de atitudes violentas como respostas a situações vividas e eventualmente formadores de criminosos em potencial, por ludicizar a morte figurada nos jogos como algo banal?

Nosso entendimento mostra até agora que a Disneylandização do mundo, ou seja, a apresentação às crianças a partir da idade comum que se concebe para a normal alfabetização e/ou conhecimento das histórias e fábulas, feita da forma pasteurizada, artificialmente privada do trágico, da dor, dos esqueletos que movem o mundo, é algo potencialmente mais danoso do que seu contrário, ou seja, da apresentação de um dado tipo de violência ou situação drástica ou trágica de perigo, da qual ela tenha que construir por si só, uma eventual saída do problema. Essa disneylandização, a nosso ver, piora a formação das novas gerações de crianças por diminuir as potencialidades integrais de compreensão e vivência do humano, entendido aqui como a chance de variar entre a mais plena felicidade e contentamento ao mais trágico evento de total sucumbência á dor ou ao fado. As fábulas para crianças, ou os contos de fadas originais, com inúmeras situações com finais trágicos ou cotidianos infelizes dos personagens, da forma como propuseram os irmãos Grimm, exemplo utilizado neste ensaio e similar a outros tempos e autores de mesma formação, apesar de à primeira vista supostamente utilizarem linguagem e figuração de fatos inapropriados às crianças, estão na verdade, criando principalmente pela literatura, que sugere  a formação imaginativa de mundos em construção, a possibilidade dessas mesmas crianças, ao se reconhecerem nos próprios tipos criados bem como as situações negativas, terem contato com o terror, o trágico, a dor dessa forma representada, possam por si mesmas construir suas próprias saídas para os problemas dados, num nível simbólico, com vistas a fazê-lo também no futuro.


Tal situação é elemento de formação simultaneamente individual e coletiva, porque predispõe de forma benéfica tanto a um indivíduo a criar suas pontes para resolução feliz ou não de suas questões, quanto predispõe também o grupo para que em alguns momentos, coletivamente se imaginem saídas possíveis, o que cria, por si só, elementos importantes e inafastáveis de agregação social. Ao pasteurizar definitivamente os contos de fada originais por outras fábulas de muito mais fácil digestão e paladar,  e portanto preenchendo com maior superficialidade suas telas, a Disney colaborou durante mais de cinco décadas com a enorme obstaculização da formação de valores mais apropriados para a vida, no que tange à idéia de produção de filmes para crianças, seguida do conceito de uma “literatura de massa para crianças”, influenciada por seus conceitos industriais de estética desejada/execrável.

Da mesma forma, e por sentido inverso, concluímos ainda que é intfalsa a idéia de que videogames desenvolvidos tendo como elemento de ação a necessidade de violência para atingir seus objetivos, tais como lutas de artes marciais ou de guerra não necessariamente têm alguma relação com a formação de padrões e/ou pensamentos ou atitudes de violência decorrentes. Por óbvio, isso não é o mesmo que dizer que a violência pura ou simples do ato em si, poderia ser respaldada ou legitimada por seu contexto político, social ou ideológico. Seria dizer que não há como legitimar por exemplo uma atitude nazista, homofóbica, cruel com os animais sem motivo, misógina, racista etc. O texto se refere á violência pura do ato simbólico, e não à ideologia que o legitima, que deve ser validada ou criticada segundo seu contexto social e humano, além de parâmetros universais de justiça.

Uma crítica a nosso ver muito pertinente é apontar, tanto no que diz respeito aos contos de fadas no padrão 'Disney" que regem amplo universo dentro de nosso meio, quanto os games violentos, se ambos não seriam , mesmo que por formas diferentes na acepção de violência ou nã-violência como parte de sua estratégia de cooptação das mentes e espíritos dos infantes, também formadores de valores pré-sugestionáveis e de mais fácil digestão por parte do seu público-alvo? Ou seja, se a Disney com sua ideologia notoriamente  burguesa gerada no auge de uma américa industrial ou os games ao disporem em tela determinados padrões de estética ou guerras já pré-programadas não poderiam, por si sós, induzir a formação de valores manipuláveis nas mentes dos jovens envolvidos? A resposta a essa questão muito apropriada é difícil e não há como fazer afirmações definitivas no objeto singelo deste ensaio, mas desde já , pela natureza estetica e existencialmente superior do objeto-livro, afirmamos desde já que a proposta originária, fundante, essencial, do conto de fadas na forma como se apresenta integralmente não apenas pelas narrativas dos Irmãos Grimm, como também de outros autores com o mesmo perfil , por trabalhar muito mais o contexto imaginativo, capacidade inerente da literatura, oferece, por si só, um ambiente mais rico para a reflexão crítica, ao ao doar às crianças as ferramentas básicas através das quais elas próprias é que construirão suas próprias saídas. Portanto, há uma notória superioridade da literatura nesse campo, sobre o cinema e sobre os games eletrônicos, no caráter de melhor formação do imaginário contestador.

Portanto, o que enxergamos na análise ora desenvolvida é que , na relação entre violência simbólica de videogames e violência real de comportamentos individuais ou coletivos ou incentivação ao crime, não há sequer estatisticamente uma comprovação que relacione tais fatores, e segundo o tema de desenvolvimento deste ensaio, pensamos mesmo no deslinde em oposição a essa controvérsia; acreditamos que , dada uma certa proporção de idade, que deve ser respeitada entre a própria classificação genérica da infância a fim de não se dispor um filme próprio para 12 anos para uma criança de apenas 4 anos de idade e daí por diante, dito isso, não apenas não há relação entre violência simbólica com violência real como arriscamos dizer que a confrontação da violência simbólica dentro do ambiente virtual praticado no videogame eventualmente pode até mesmo servir ao seu contrário: ao atuar como uma catarse coletiva para um dado tipo de violência que poderia não ter espaço em outro lugar da linguagem comum habitada pelas crianças, que como se viu acima, foram alijadas da idéia da dor, do trágico e do terror “para seu próprio bem” por práticas disneylândicas adotadas como valores-padrão no mundo inteiro a partir da década de 50, poderão enfim se deparar com essas situações e tentar encontrar uma saída para essa problematização. Visto deste novo prisma, é quase paradoxal afirmar isso diante da ordem de valores vigentes, mas é como se o videogame onde há violência contextualizada para se atingir o objetivo estratégico do jogo pode mesmo ser pedagógico ao se colocar virtualmente situações verossímeis de negatividades para que o indivíduo jogador tenha que, por si só, achar caminhos para solucioná-lo.


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Ensaio publicado originalmente em 02-06-16 - em "O Aleph"